Agrotóxicos: na linha de frente da superexploração dos recursos naturais

Raquel Júnia – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Pesquisadores discutem como o Brasil chegou ao estágio atual de maior consumidor de agrotóxicos do mundo a partir da análise da inserção econômica brasileira no modelo capitalista.
Após a crise de 1999, a economia brasileira se inseriu no mercado mundial como grande provedora de produtos agropecuários e minerais. Acreditava-se que esta seria uma solução virtuosa para o país em um cenário de recuperação da crise econômica. Mas a escolha do governo brasileiro sustentado pelo pensamento hegemônico capitalista teve e ainda tem um alto custo para os brasileiros: a superexploração dos recursos naturais. O histórico é descrito pelo pesquisador Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Guilherme participou da mesa Agrotóxicos e Modelo de Desenvolvimento, junto com Horácio Martins de Carvalho, da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e o presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf), Vicente Almeida. A mesa, coordenada pelo pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Marcelo Firpo, fez parte da programação do Seminário de Enfrentamento aos Impactos dos Agrotóxicos na Saúde Humana e no Ambiente, realizado nos dias 4 e 5 de junho, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Para Marcelo Firpo, a análise do problema dos agrotóxicos no campo da ecologia política permite entender o lugar dessa prática no atual modelo de desenvolvimento. “A mesa traz discussões centrais no ponto de vista da economia política, da luta pela reforma agrária e da busca da prática de uma ciência engajada porque vai atrás das necessidades da população. É uma ciência cidadã, em prol da saúde coletiva e da justiça ambiental, que se articula e se renova permanentemente a partir das estratégias de produção de conhecimento compartilhada com a população e com os movimentos populares”, introduz.

O professor acrescenta ainda que a articulação da academia e dos movimentos sociais em torno da denuncia dos efeitos dos agrotóxicos precisa servir de exemplo para outros tipos de enfrentamentos necessários. “Nesse momento vários outros problemas se intensificam em outros campos: na questão dos conflitos urbanos ligados aos processos de industrialização com grandes complexos siderúrgicos da produção de aço e do alumínio para exportação; nas contradições relacionadas ao modelo de transformação das cidades em grandes centros de negócios global – estamos vivendo várias contradições com a Copa do Mundo e as Olimpíadas; além de uma série de problemas de saúde ambiental com Belo Monte, a transposição do Rio de São Francisco e várias formas de mineração – não só de ferro, mas de urânio, bauxita, entre outras. São práticas que cada vez mais buscam transformar recursos naturais e recursos públicos em lógicas de negócios”, problematiza.

Perspectiva macroeconômica

Guilherme delgado define a relação dos agrotóxicos com o modelo de desenvolvimento, que dá título à mesa, como um esforço de construção ideológica de um pensamento contra-hegemônico. “Modelo hegemônico, na nossa perspectiva, não corresponde ao atendimento de necessidades básicas da população brasileira em todos os sentidos, não apenas na saúde”, fundamenta. Nesse sentido, Guilherme aponta a inserção da economia brasileira como exportadora de bens primários no início do século XXI, como resposta a quase 20 anos de estagnação, como uma das dificuldades a serem enfrentadas quando se têm em vista outro modelo de desenvolvimento. “O sucesso econômico de cadeias agroindustriais e agrominerais na inserção internacional com vista a resolver o problema das contas brasileiras é apresentado como solução pela qual nos libertaríamos da dependência externa. Isso foi apresentado como salvação da pátria pela via conservadora, sem mudança da estrutura agrária e sem mudança das relações internacionais”, explica.

Segundo o pesquisador, essa nova inserção externa com a aliança de grandes cadeias agroindustrias, grandes proprietários de terra e o estado vão permitir que no segundo governo FHC, nos dois mandatos do governo Lula e agora no mandato de Dilma seja articulado um pacto de economia política que vai conferir aos setores rurais e agroindustriais um poder econômico e político sem antecedentes na história da República – com poder econômico, midiático, acadêmico e parlamentar. “Esse pacto vai resultar em um conjunto de políticas econômicas e sociais que viabiliza um peculiar projeto de acumulação de capital para o setor primário, com um caráter altamente concentrador com a justificativa de o Brasil estar preparado para responder a um desequilíbrio externo”, detalha.

Guilherme observa que, no entanto, o projeto requer uma ultra exploração dos recursos naturais, para suprir outros déficits, como o da indústria, que permanece desaquecida. Neste contexto, algumas cadeias agropecuárias são eleitas para promover o desempenho produtivo, como as cadeias da soja, das carnes, celulose, etanol e do açúcar, além das cadeias minerais, entre outras. “A expansão das áreas de lavouras em 10, 15 anos é inusitadamente alta para os padrões brasileiros do passado, a área cresce 5% ao ano em média. Associado a isso há a intensificação do pacote técnico da revolução verde nas áreas antigas e novas. Então, ao lado da expansão horizontal, há uma intensificação da utilização da matriz técnica da revolução verde sem nenhum benefício para a saúde humana e sem nenhum grande componente de inovação de produtividade no sentido de inovação técnica industrial”, analisa.

O pesquisador alerta que os custos desse modelo hegemônico, como a dilapidação da biodiversidade, o assoreamento dos rios, a perda dos solos, a contaminação por agrotóxicos, não tem expressão monetária e acabam sendo custos sociais, para o conjunto da sociedade, não entrando entre os custos privados e não onerando a competitividade do exportador. “Aquilo que era apresentado como solução agroeconômica salvadora da pátria, que teria tirado a situação de déficit econômico, que aparentemente conseguiu resolver a crise com a aceleração das exportações primárias, só foi verdade até certo momento, porque a partir de 2008 o país volta a ter fortes déficits de conta corrente e continua tendo até o presente. Só que esses déficits são ainda relativizados, porque há um movimento de capitais externos que continua a irrigar as nossas contas e o problema da falta de competitividade externa de outros setores, como da indústria, não aparece como problema grave nas contas externas”.

Para Guilherme, o pensamento contra-hegemônico, que considera os custos sociais dessa superexploração dos bens naturais tem uma dura batalha para questionar o modelo hegemônico. “Não tenhamos ilusão. A bancada ruralista e os setores ligados ao pacto do agronegócio e o estado brasileiro estão associados de forma umbilical nesse projeto de acumulação de capital pelo setor primário”, ressalta. Ele acrescenta que esse projeto é mais ardiloso e mais difícil de ser combatido do que, por exemplo, o projeto implementado pela ditadura militar, porque conquistou corações e mentes na academia, na mídia e no Congresso. “Assim como na discussão do Código Florestal, da Reforma Agrária, a resistência a esse padrão bate de frente com a aliança de poder que domina o país a quatro governos, onde o poder executivo é refém, não sei se um refém ‘à moda de Estocolmo’, um refém que se apaixona pelo sequestrador ou não, mas é refém desta bancada ruralista e do pacto de acumulação de capital pelo setor primário.Portanto, construir o pensamento contra-hegemônico é importante no sentido de desarticular esse pacto”.

Braços cruzados diante do alto consumo de agrotóxicos?

Para Horácio de Carvalho, da Associação Brasileira pela Reforma Agrária (Abra), é preciso considerar os motivos que levaram o Brasil a se tornar o campeão mundial de consumos de agrotóxicos com pouca resistência da sociedade civil, apesar da crítica que ganhou mais força no último ano da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e em Defesa da vida. Ele cita uma frase da filósofa Marilena Chauí para contribuir na reflexão sobre como o país chegou a esse estágio “insano”. “Ela [Marilena Chauí] diz que o Brasil é uma nação invertida, primeiro se começou o estado e depois a sociedade. E essa lógica perdura até hoje. Vivemos hoje num contexto que podemos dizer que o estado é máximo para o capital e mínimo para a população. E isso permite que a própria concepção que se tem da sociedade civil seja como se ela fosse emanada do estado. Então, a sociedade civil brasileira se expressa na síntese das políticas públicas compensatórias, ela é a expressão de um processo que o [Herbert] Marcuse chamou de consciência feliz, no qual mesmo as pessoas subalternas e exploradas se sentem felizes em função de um processo político-ideológico que as coopta e leva a uma desmobilização política”, analisa.

De acordo com Horácio, esse processo contribui para uma situação na qual a população demora a reagir ou reage pouco. E é nesse bojo que houve um imenso fortalecimento da empresa capitalista no campo, com uma omissão do proletariado rural e dos camponeses. “Para se ter uma ideia, dos 5,2 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil, 4,6 milhões são de camponeses. A lógica da reprodução capitalista no campo está em 22 mil imóveis, que tem 51% do valor de produção. Essa situação ainda consiste em uma liberdade completa para fusões e aquisições e uma presença dos oligopólios transnacionais”, exemplifica. Nesse quadro, segundo ele, há uma imensa apropriação privada da natureza, com a incorporação de 2003 a 2010, de 100 milhões de hectares aos latifundiários, sendo que apenas 1/5 dos imóveis possuem documentos legais. “O governo tentou regularizar as terras na Amazônia com muita propaganda, isso foi se esvaziando e hoje não se fala mais nada porque a natureza do Brasil está destinada ao grande capital monopolista transnacional, desde sheiks árabes até estatais chinesas compram terras no Brasil”, critica.

O pesquisador cita ainda a orientação governamental que agrava o quadro ao retirar da pauta da agenda política a reforma agrária e além disso, tenta reduzir as áreas de preservação permanente, as reservas indígenas e terras quilombolas. Horácio exemplifica a situação de financeirização dos recursos naturais com uma reunião que ocorreu em Washington, em abril de 2010, cujos anfitriões eram o Japão, os EUA e a União Africana, durante a Conferência Anual do Banco Mundial sobre Terra e Pobreza. “Entre esses países se acordou com o apoio do Banco Mundial, da Fao [Organização de Agricultura e Alimentação] da Untacd [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento] e do Fida [Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola] uma proposta chamada de código de conduta dos investimentos internacionais nos países do hemisfério sul, ou seja, houve um acordo de regulação ética, mas uma ética do Banco Mundial evidentemente, de como os investimentos devem se dar no mundo porque há uma luta internacional, uma busca entre os capitais para se apropriar do restante de terras agricultáveis em todo o mundo. Mais ou menos uns 250 milhões de hectares passíveis de serem apropriados”, lembra.

Para Horácio, a reprodução do capital do agronegócio na agricultura tem uma sustentação dos aparelhos de governo. “É tanto dinheiro que chega a ser imoral. Em 2010 houve cerca de 90 bilhões de reais de crédito para o agronegócio para gerar um PIB de 120 bilhões. Então, não se paga a conta. Tanto é assim que foram editados leis e atos do Conselho Monetário Nacional para repactuar a dívida as dívidas agrícolas entre 1995 a 2008. Então, é excelente ser empresário capitalista no campo porque se tem muito crédito e não se paga a conta”, ironiza.

O pesquisador acredita que é preciso assumir o discurso positivo da agroecologia praticada pelo campesinato e não pela indústria do agronegócio, para combater o discurso hegemônico dos latifundiários. “Esse discurso exige também uma nova leitura do campesinato, precisamos reconsiderar esse campesinato à luz de outras categorias, como a autonomia camponesa, a modernidade camponesa, outras formas de cooperação associadas a uma proposta estratégica que pressupõe a expansão do campesinato com a reforma agrária. A agroecologia tem que ter uma base social, não pode ser um discurso vazio. E, hoje, 2,4 bilhões de pessoas no mundo são camponesas”, reafirma.

Pesquisas públicas para o agronegócio

Segundo o presidente do Sinpaf, Vicente Almeida, a Embrapa investiu 170 milhões em pesquisas no ano de 2011, apenas 4% delas voltadas para a agricultura familiar. “No ano passado, os trabalhadores do MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores] pediram audiência com o presidente da Embrapa e ele não atendeu. Conversaram com o Ministro da Agricultura, o Ministro do Desenvolvimento Agrário, com o Secretário da Presidência da República, mas não conseguiram conversar com o presidente da Embrapa. Em fevereiro, tivemos que fazer uma ocupação na Embrapa com as mulheres da Via Campesina e o presidente se negou a falar o termo agrotóxicos, disse que o termo correto é defensivos. Na Rio+20, toda a agenda da Embrapa está articulada com a agenda da Confederação Nacional da Agricultura”, denuncia. De acordo com Vicente, há hoje 17 instituições estaduais de pesquisa no Brasil, mas em muitas delas, os trabalhadores estão sem reajuste. Ele cita a Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro (Pesagro), onde os pesquisadores estão sem reajuste há 12 anos. Segundo o sindicalista, todas as instituições estaduais têm em seus quadros 2032 pesquisadores, enquanto a Embrapa sozinha tem 2.500 profissionais.

Para Vicente, alguns dos principais exemplos das contradições do agronegócio são os dados sobre a insegurança alimentar da população brasileira. Ele observa que apesar de o agronegócio brasileiro ter uma produtividade estimada para 2012 de cerca de 160 toneladas de grãos, ainda há mais de 60 milhões de brasileiros com quadro de insegurança alimentar, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios [Pnad] em 2009. Outra contradição é a alta dependência de recursos públicos. “Temos um quadro no qual a tecnologia gerada para o campo brasileiro, ao invés de reduzir as condições de risco para os trabalhadores, para os consumidores e a sociedade em geral, eleva as condições de risco ambiental e social. Isso deveria inclusive ser um critério nas pesquisas que a Embrapa faz. Se fizermos uma análise dos transgênicos, por exemplo, o que observamos apenas no cultivo da soja de 2004 para 2008, é que a área plantada diminuiu cerca de 2,5%, mas o consumo de agrotóxicos aumentou 31,7%. Isso mostra que os transgênicos elevaram a dependência de agrotóxicos elevando o risco dos que aplicam o veneno e da população que está no entorno”, diz. Segundo Vicente, a análise das culturas em geral mostra que a área plantada teve um crescimento de 4,59% de 2004 a 2008, enquanto o consumo de agrotóxicos cresceu 44,6%, dez vezes mais do que a área plantada. Ele acredita que o a porcentagem de crescimento dos agrotóxicos pode ser ainda maior, uma vez que não entram nessa conta os venenos contrabandeados.

O pesquisador acrescenta que o modelo do agronegócio vai além da superexploração dos recursos naturais. “É que o Breilh [Jaime Breilh] apresenta para nós da acumulação por pilhagem, com características como fraudes, extração violenta de bens naturais com assassinato de trabalhadores e lideranças, corrupção dos agentes de estado e o esgotamento completo dos recursos naturais. E quais são os alvos principais desse modelo de pilhagem que usa o agrotóxico como vanguarda? As populações economicamente vulneráveis”, diz. Ele cita os dados do Relatório sobre conflitos no campo elaborado anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) como exemplos da “pilhagem” praticada pelo atual modelo de desenvolvimento. “São dados assustadores. Em 25 anos tivemos 1614 assassinatos no campo e apenas 91 casos julgados. E o mais alarmante o número de ameaças de morte que aumentou de 125 para 347 em 2011, aumento de 177%. Os conflitos estão se dando até menos pela posse imediata da terra e mais pelo modelo de desenvolvimento que quer se implantar sobre força e pilhagem nesses territórios onde vivem indígenas, quilombolas, ribeirinhos”, finaliza.

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