Conferência discute a importância de um marco regulatório internacional para os agrotóxicos

Por Iris Pacheco e Roberta Quintino l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Foto: André Gouveia.

Na quinta-feira (28), ocorreu na Câmara dos Deputados a conferência Rumo a um Marco Regulatório Internacional para Agrotóxicos. O objetivo foi estimular a reflexão acerca da utilização indiscriminada de agrotóxicos, suas consequências para a saúde humana e o Meio Ambiente.

Considerando que o atual quadro mantém uma profunda discrepância global entre o Norte e Sul, que expõe os seres vivos de forma desigual a produtos altamente tóxicos, entende-se como prioridade estabelecer regras internacionais que controle, e, na melhor das hipóteses, a longo prazo, proíbam a comercialização e uso dessas substâncias no Sul Global.

A mesa de abertura contou com diversos deputados que fazem a luta no campo institucional legislativo, tanto em âmbito federal, como estadual, tais como o Deputado estadual Renato Roseno (CE), autor de uma legislação que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará nos últimos anos, e o Deputado federal Nilto Tatto (Dep Federal – SP), que afirmou a importância de manter o debate atualizado que envolve esse cenário e citou os diversos custos que esse sistema gera aos país. ”Se a gente colocasse só os custos na saúde íamos entender que é o Brasil quem carrega esse modelo de agricultura, o ‘ogronegócio’ nas costas e não ao contrário como o agro tech afirma em sua propaganda.”

Além disso, o Ministro Paulo Teixeira (Ministério do Desenvolvimento Agrário) também marcou presença junto a curadora do evento – com especialistas nacionais e internacionais – Larissa Bombardi, que é professora do Departamento de Geografia da USP, integrante da Aliança Internacional para a Padronização de Agrotóxicos (IPSA) e pesquisadora associada do CESSMA na Europa, onde vive exilada. 

Bombardi apontou que o lobby das grandes indústrias em prol do uso de venenos ainda é um dos principais entraves à luta contra os pesticidas. “Tem uma parte das substâncias altamente tóxicas que a União Europeia (UE) já baniu, mas a mesma UE, por meio das suas empresas, controla pouco mais de um terço das vendas mundiais e vende essas substâncias que não são toleradas no seu próprio território. E o que acontece é que hoje a América do Sul é o lugar do mundo que mais consome agrotóxicos, enquanto na UE houve queda de cerca de 3% nos últimos dez anos.”

Enfrentamento aos impactos dos agrotóxicos

Ao longo de todas as décadas de luta contra os agrotóxicos no mundo, diversas foram as iniciativas realizadas. Arnaud Apoteker, da organização “Justice Pesticide” na França, falou sobre o Tribunal Monsanto como uma iniciativa da sociedade internacional a fim de obter indenização pelos danos causados e pautar também o banimento dos agrotóxicos. Além de criar comoção política pública em torno do tema, tal qual o debate da crise climática. 

“O que precisamos é uma justiça sanitária semelhante à justiça climática que está colocando o mundo de cabeça para baixo e poderia ser o modelo para enfrentar as companhias vendedoras desse veneno”, afirmou Apoteker, complementando que quando se fala em mudança climática, também estamos falando sobre o ataque que essas substâncias promovem ao meio ambiente.

Subindo ao norte da América Latina, chegamos no México, o país responsável por domesticar e aprimorar o milho tal qual conhecemos hoje, há anos vem travando batalhas intensas em defesa de um território livre de transgênicos e agrotóxicos. Segundo Fernando Bejarano, da Rede de Ação sobre Pesticidas e suas Alternativas no México (RAPAM), o país ainda tem 204 agrotóxicos altamente perigosos e ativos, destes, 151 são banidos em outros países da Europa e também da América Latina, além de terem restrições de uso na China. 

Ele citou ainda que a Campanha Nacional sem milho não há país (Campaña Nacional Sin Maiz no hay país) realizada em julho de 2017 por mais de 300 organizações OSCs, ONGs e acadêmicos foi fundamental para promover pressão no âmbito legislativo e pautou a renegociação do capítulo agrícola do NAFTA (Acordo de Livre Comércio do Norte) para retirar o milho e o feijão da lista de transgênicos. 

Em dezembro de 2020, resultado da combinação da pressão política social e nova relação de forças no congresso, o primeiro decreto presidencial para eliminar gradualmente as importações de milho transgênicos e glifosato com referência do princípio de precaução foi estabelecido. No entanto, sob as pressões do setor agro principalmente, em fevereiro de 2023, ocorre uma atualização e se destaca que não é autorizada a importação de milho transgênico para consumo humano. Mas é permitido para a indústria.

“O milho nos EUA é apenas uma commodity. Embora a exportação de milho no México não seja em grande quantidade, eles não podem tolerar que um país pegue sua soberania e atrapalhe os seus negócios. Então eles influenciaram internamente representantes produtores de milhões, deputados e senadores, o conselho de grãos”, explica Bejarano. Uma decisão final deve acontecer em novembro deste ano. 

Atualmente, a mudança de governo no México possibilitou um novo debate para reverter parte das políticas neoliberais para proteger camponeses e apoiar a soberania e a segurança alimentar. A nova presidente eleita, confirma a não importação de milho transgênico, mas manterá uma pausa na eliminação do glifosato. Embora uma nova agenda socioambiental esteja em foco neste ano e uma coalizão que demanda uma transição nacional na defesa da agroecologia é incorporada, pela primeira vez, à agenda nacional. 

Participantes lotaram o auditório da Câmara dos Deputados para debater regulação dos agrotóxicos. Foto: André Gouveia.

Capítulo Brasil

Muitos são os dados, estudos e denúncias realizadas por diversos setores da sociedade brasileira que são direta ou indiretamente impactados pelos agrotóxicos. liderando o ranking dos países que mais consome agrotóxicos no mundo, um crescimento de 78% nos últimos dez anos, o Brasil tem tido sua história marcada pelo enfrentamento direto à uma guerra química, silenciosa e letal. 

Um dos principais oponentes tem sido a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que há 13 anos, promove ações, lutas, formações e cria incidência política para que o cenário não piore. Jakeline Pivato, da Secretaria Executiva da Campanha, ressaltou que à época da criação da Campanha, o país era um dos maiores consumidores de agrotóxicos e lamenta não termos mudado essa estatística. 

“Aquele conjunto de entidade nos ajuda na atualização permanente dos impactos dos agrotóxicos na nossa vida, uma infinidade de situações que vivenciamos nos territórios e a partir disso vamos criando comoção na sociedade, espaço para articular, para criar ambientes de resistências e aprofundar políticas públicas e ir desenhando essa dúvida na cabeça da população e mecanismo de aproximar cada vez mais a sociedade sobre a necessidade de mudanças.”

Integrante direto da Campanha contra os agrotóxicos, o maior movimento social da América Latina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), defende e busca implementar modelos agroecológicos de produção que contrapõem o agronegócio como um projeto de desenvolvimento para o campo brasileiro. 

Nesse sentido, Ceres Hadich, da direção nacional do MST, afirma que esse modelo está em crise e que é preciso pensarmos no futuro como um coletivo. “É um modelo que nos impacta do ponto de vista econômico e social, mas que revela também uma crise climática, uma crise de caráter ambiental e sobretudo uma crise civilizatória, que nos remete a pensar o futuro da humanidade e a forma como a gente lida com a nossa forma de produzir.”

Na mesma linha, Fátima Borghi, do Ministério Público Federal (MPF), ressaltou que a participação é o pilar na construção de uma sociedade mais justa, pois garante que as decisões políticas sejam mais democráticas e transparentes. 

“A participação ativa em questões ambientais promove a educação e conscientização da população sobre os desafios e soluções ambientais fortalecendo a cultura de preservação. Quando a população é envolvida, as políticas ambientais ganham mais legitimidade e são mais aceitas pela sociedade facilitando a sua implementação”, afirmou. Para Borghi, acordos internacionais que citam a participação popular efetiva nos processos decisórios têm maior possibilidade de serem devidamente implementados.

Desafios para uma regulação

Além das denúncias, o que mais apareceu em pauta foram os desafios para que uma regulação internacional desse porte possa ser efetivada. Encontrar os pontos convergentes, tais como as graves consequências para a biodiversidade e a saúde humana com o aumento do uso de agrotóxicos no mundo pode ser uma saída.

Susan Haffmans, da rede Pesticide Action Network (PAN), relatou que 385 milhões de casos de contaminação por agrotóxicos ocorrem mundialmente todos os anos, afetando especialmente as populações do Sul global. Haffmans também alertou para a concentração do mercado de agrotóxicos entre poucas corporações.

“Quatro corporações internacionais do Norte global controlam 70% do mercado de agrotóxicos no mundo. Quando analisamos isso, enfrentamos desafios globais relacionados ao comércio, uso, resíduos de agrotóxicos, contaminação e o estresse sobre a natureza e os recursos naturais. Isso está acontecendo em escala global”, afirmou. E sinalizou que a falta de uma regulamentação internacional abrangente é urgente e necessária. “Apenas 3,4% dos agrotóxicos usados são cobertos por uma regulação internacional. São principalmente aqueles regulados pelas Convenções de Roterdã, Estocolmo e Montreal”, explicou Haffmans, destacando a necessidade de uma maior cooperação internacional para enfrentar os desafios impostos pelos agrotóxicos. 

Já Marcelo Montenegro, da Fundação Heinrich Böll, reforçou os dados apresentados por Haffmans e acrescentou que “o uso global de agrotóxicos alcançou 3,5 milhões de toneladas, com um aumento de 80% nos últimos 27 anos”. Montenegro destacou também que as Américas respondem por metade desse volume, com a América do Sul registrando um aumento de dez vezes no consumo de agrotóxicos em apenas 31 anos. Além de pontuar que “o mercado de agrotóxicos é extremamente lucrativo, com uma comercialização de quase 79 bilhões de dólares, onde quase 40% do faturamento da Syngenta, por exemplo, provém de agrotóxicos altamente perigosos.”

Enquanto ainda buscamos digerir todos esses dados, o pesquisador destacou também que 44% dos agricultores e trabalhadores rurais são envenenados por agrotóxicos pelo menos uma vez por ano. No Brasil, entre 2010 e 2019, foram registrados 56.870 casos de intoxicação por agrotóxicos, uma média de 5.687 casos por ano, ou 15 pessoas diariamente. Ele também criticou a aprovação do “Pacote do Veneno” no Brasil e defendeu a “a necessidade de um marco regulatório internacional de agrotóxicos”.

Jaqueline Andrade, advogada da organização Terra de Direitos, abordou a denúncia internacional contra a Bayer, apresentada por Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai, no mês de abril deste ano, em Berlim, na OCDE. Ela explicou que, após a Bayer adquirir a Monsanto, a empresa se posicionou como líder do mercado de agrotóxicos na América Latina

Jaqueline destacou que a Bayer tem uma aprovação de sementes transgênicas de 67% na Bolívia, 44% no Brasil, 39% no Paraguai e 38% na Argentina. Além disso, os agrotóxicos à base de glifosato, produzido pela empresa, se tornaram os mais utilizados em todo o Cone Sul. Os quatro países são responsáveis por mais de 99% de toda a produção de soja da América Latina.

A soja transgênica ocupa a maior parte das áreas cultiváveis nesses quatro países. Só entre a década de 1990 a 2017, mais de 2 milhões de hectares no Cone Sul foram desmatados todos os anos para dar plantio à soja. Assim, a denúncia trata dos impactos da soja geneticamente modificada, dos agrotóxicos à base do glifosato da Bayer, sobre os direitos humanos e sobre o meio ambiente nesses países”, explicou.

Cada país apresentou casos específicos de violações de direitos humanos e ambientais. No Brasil, a denúncia focou na exposição aos agrotóxicos em três aldeias indígenas no oeste do Paraná. Andrade disse que “isso evidencia o que já vínhamos falando sobre sermos a lixeira química do mundo, e isso não pode continuar”. Ela alertou que os agrotóxicos produzidos pela Bayer, proibidos na Europa, “são usados de forma irregular e muitas vezes como arma química”, com fazendeiros aspergindo veneno sobre as casas em áreas indígenas. “E isso aponta para um tema que a gente vem reforçando aqui, que é o banimento dos banidos”.

Para a advogada, são muitos os desafios impostos na luta contra os venenos, no sentido das leis permissivas na aprovação e no uso de agrotóxicos, influenciadas por lobbies de grandes empresas transnacionais. Ela citou como exemplo a isenção fiscal dos agrotóxicos, atualmente em pauta no STF na ADI 5553. “Precisamos discutir a inconstitucionalidade dessa lei e enfrentar a influência dessas corporações sobre nossas políticas públicas”, concluiu.

O evento foi promovido pela Aliança Internacional para a Padronização de Agrotóxicos (IPSA), a Fundação Heinrich Böll, o Centro Internacional de Água e Transdisciplinaridade(CIRAT), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério Público Federal (MPF). 

A iniciativa faz parte de um arranjo que engloba uma outra conferência sobre a criação de um marco regulatório internacional no Norte Global, que está prevista para ocorrer em 29 de outubro no Parlamento Europeu, em Bruxelas, na Bélgica. O propósito final das duas conferências é o de incentivar a criação de um marco regulatório internacional no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) para o tema dos agrotóxicos, tendo em vista a insuficiência das convenções existentes.

“A ideia é que esse debate se dê no Sul Global e também no Norte Global. Precisamos fazer essa ponte. Temos que trazer esse tema à tona e ampliar o debate”, afirma Bombardi.

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