Por Aline Naoe
Da Página da USP
O Brasil ocupa o primeiro lugar na lista de países que mais consomem agrotóxicos. O uso massivo desses produtos é explicado por uma economia que exporta commodities em grande escala, em especial a soja, e um modelo de agronegócio baseado em grandes extensões de terra produzindo poucas culturas.
Nos últimos cinco anos, a geógrafa Larissa Mies Bombardi tem se dedicado a estudar o impacto do uso dos agrotóxicos no país, em especial a partir do mapeamento dos casos de intoxicação – segundo a professora, de 2007 a 2014 foram notificados 1186 casos de morte por intoxicação com agrotóxicos.
Coordenadora do Laboratório de Geografia Agrária da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Larissa comenta o Projeto de Lei em tramitação na Câmara que concentra no Ministério da Agricultura o controle do registro dos agrotóxicos, responsabilidade que hoje é compartilhada com órgãos dos Ministério da Saúde e do Meio Ambiente. A pesquisadora fala também sobre como os recentes casos de microcefalia associados ao vírus zika podem acabar contribuindo para a aprovação de medidas que autorizam a pulverização de áreas urbanas com agrotóxicos para o combate ao mosquito.
Qual o foco da sua pesquisa sobre o uso de agrotóxicos no Brasil?
Larissa Bombardi: Minha área de atuação é a geografia agrária, então tenho discutido uma questão maior do que o agrotóxico enquanto um elemento de saúde pública. Ela envolve a questão agrária, o papel da agricultura na economia brasileira. Para você ter uma ideia, nossa pauta de exportação hoje virou do avesso do que era no final dos anos 90, começo dos anos 2000. A gente vinha, durante a ditadura, num processo em que os produtos básicos tinham menor importância nas exportações brasileiras do que os industrializados. Depois, em 1978, 1979, há um marco porque isso começa a se inverter e esse processo acontece até o início dos anos 2000, quando há então uma inflexão nas curvas e a gente passa a exportar muito mais produtos básicos do que industrializados. Os básicos não são só os produtos agrícolas, entram aí também minério de ferro, petróleo e outras commodities, mas a soja é o principal produto exportado pelo Brasil. Então falar de agrotóxico não se restringe ao âmbito da agricultura, mas a algo muito maior, porque tem a ver com o modelo de inserção do Brasil no que a gente chama de economia mundializada. É uma escolha, é um papel que o Brasil exerce no mundo. Somos o maior exportador mundial de açúcar, carne, gado, carne de frango, fumo, laranja, café….esse pacote monocultor, em grande escala, demanda muito agroquímico. O Brasil hoje consome um quinto dos agrotóxicos utilizados no mundo. O que eu tenho feito é mapeado o uso e os casos de intoxicação por agrotóxicos para entender o que há por trás desses números, e isso tem uma relação direta com o modelo econômico que o país tem adotado.
Onde estão disponíveis os dados sobre mortes e intoxicações por agrotóxicos?
LB: Estão no Ministério da Saúde, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). De 2007 a 2014 tivemos 1186 casos de morte por intoxicação por agrotóxicos, ou seja, 148 por ano, um a cada dois dias e meio. É um dado muito alarmante. Se focarmos nas crianças, numa faixa etária de zero a 14 anos, nesse mesmo período, tivemos 2181 casos de crianças intoxicadas, é muita coisa. O que é mais grave ainda é que dessas, 300 crianças entre 10 e 14 anos cometeram tentativa de suicídio. Temos vários estudos no exterior e no Brasil também que mostram a conexão entre tentativa de suicídio e exposição crônica a alguns agrotóxicos. Outro dado chocante que vale a pena mencionar é que também nesse período de 2007 a 2014 mais de 300 bebês de zero a menos de um ano foram intoxicados com agrotóxicos. Quando estamos numa realidade em que bebês se intoxicam, temos a noção da ponta do iceberg que é essa questão. Como isso é possível? Isso tem a ver com a condição de trabalho dos pais, com pulverização aérea, proximidade das casas em relação às áreas de utilização de agrotóxicos…
A Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] também tem esses dados, inclusive ela tem mais dados. Ela faz um registro quase que espontâneo, pois tem um serviço de apoio que indica aos profissionais de saúde como agir em casos de intoxicação, não só por agrotóxicos, mas também animal peçonhento, planta, medicamentos. Então eles remetem à Fiocruz os casos, é espontâneo. E ainda assim é a fonte de dados sobre isso mais rica do Brasil. Os dados da Fiocruz sugerem uma média de um caso de intoxicação a cada 90 minutos, um quadro muito pior levando em conta a subnotificação. Calcula-se que para cada caso de intoxicação no Brasil existam 50 outros não notificados.
E partindo desses dados, é possível afirmar ser incontestável que os agrotóxicos são prejudiciais à saúde humana?
LB: Não há dúvidas. Mas os dados ainda são insuficientes, há muita subnotificação. O SUS, nas fichas dos pacientes, não informa, por exemplo, a profissão da pessoa intoxicada, o que seria fundamental para entender qual o universo que estamos tratando. Veja que o Mato Grosso é um estado que sozinho consome 20% de todo agrotóxico usado no brasil e o número de notificações é pequeno em relação ao número total de casos, então há um desnível entre a realidade e aquilo que é notificado. Os números que a gente tem já são muito alarmantes, mas ainda assim há uma subnotificação enorme.
Quando olhamos os mapas das pessoas intoxicadas por agrotóxicos de uso agrícola no Brasil, se pegamos por municípios, é visível, por exemplo, o Vale do São Francisco, que tem uma agricultura irrigada com fruta para exportação. Dá para ver as manchas do agronegócio. No Mato Grosso, quando você mapeia os municípios isso aparece. Uma parte disso está no Pequeno Ensaio Cartográfico Sobre o Uso de Agrotóxicos no Brasil, que publiquei pelo Laboratório de Geografia Agrária. Uma parte do meu trabalho de geógrafa é mapear essas informações. O mapa é uma ferramenta muito importante porque você consegue espacializar o fenômeno, consegue fazer perguntas para a realidade que você não faria sem mapear. E vou lançar em breve um Atlas do Uso de Agrotóxicos no Brasil, que é o próximo passo da minha pesquisa.
Quando falamos nesses casos de intoxicação e morte estamos principalmente falando de pessoas que vivem no campo?
LB: Em geral sim, mas não só a população rural que é intoxicada, a população urbana também. Mesmo que a pessoa more e trabalhe na cidade, mas em áreas próximas de cultivos onde há pulverização, ela está suscetível. O professor Wanderlei Pignati, da Universidade Federal de Mato Grosso, orientou um estudo sobre contaminação de leite materno com agrotóxicos. Alguns agrotóxicos ficam na gordura do nosso corpo, então uma forma não invasiva de mensurar a contaminação é através do leite. Descobriu-se que todas as mulheres pesquisadas, uma amostra importante de mães que estavam amamentando no município de Lucas do Rio Verde, tinham agrotóxicos no leite. Nenhuma delas trabalhava na área rural diretamente na agricultura. Apenas uma delas trabalhava na sede de uma fazenda, mas como empregada doméstica. Isso ilustra o quanto a população urbana, sobretudo das pequenas cidades, está suscetível. Além disso, muitas cidades do Brasil permitem no trabalho de jardinagem urbana o uso de agrotóxicos.
Há um novo projeto de lei tramitando para poder pulverizar inclusive áreas urbanas com agrotóxicos para poder eliminar os mosquitos vetores da dengue, chikungunya e zika. Isso é muito temerário. Os casos de microcefalia deram o start dessa comoção, quase uma histeria nacional em torno desse assunto. Isso tem ancorado o aumento do uso desses agrotóxicos em ambiente urbano. Todos esses venenos que são utilizados, o “fumacê”, são agrotóxicos. Tem malathion, Pyriproxyfen e fenitrothion, os três são cadastrados na Anvisa como agrotóxicos de uso agrícola e agora estão sendo utilizados na cidades para combater os mosquitos, quando na verdade temos um problema muito mais grave que é de saneamento urbano. Isso sim resolveria a questão dessa epidemia no nível em que ela se deu. E os estudos têm mostrado na verdade que esse uso tão intenso de veneno não é tão eficaz. Eficaz é saneamento básico.
É complicado justificar uma pulverização aérea nas cidades por conta disso. O último numero da Revista Fapesp mostrou que esses casos de microcefalia aumentaram tanto não porque eles aumentaram em si, mas porque até 2014 a notificação da microcefalia não era obrigatória, até então a gente não tinha dados. Como dizer então que os casos estão aumentando? Acho que isso dá o tom para entender um pouco o que está por trás desse alarme todo.
Por que ainda não proibimos agrotóxicos que já foram proibidos em outros países, como os da União Europeia?
LB: Primeiramente, o lastro de não proibir é essa importância tremenda que a exportação das commodities tem na economia brasileira. Politicamente, isso é representado na bancada ruralista, do ponto de vista do Legislativo. Do ponto de vista do Executivo, temos uma ministra que é representante desse setor. A chamada Frente Parlamentar da Agropecuária soma mais da metade do numero total de deputados. Então é uma dificuldade muito grande. Uma coisa ruim da nossa lei de agrotóxicos é que nossos registros são por tempo indeterminado, o registro é ad eternum, não caduca. O ingrediente ativo pode vir a ser reavaliado, mas num processo movido pela sociedade civil ou pela comunidade científica nacional, mas não há uma reavaliação sistemática. Na União Europeia há. Eles estão neste momento às vésperas de votar a continuidade ou não do uso do glifosato, o herbicida mais vendido no Brasil. Grande parte dos cultivos transgênicos é resistente ao glifosato, então há uma venda casada da semente transgênica com esse agrotóxico. No ano passado a Organização Mundial de Saúde lançou uma nota dizendo que o glifosato é potencialmente carcinogênico.
Um exemplo muito claro de agrotóxico banido na União Europeia e permitido aqui é o acefato, o quinto ingrediente ativo mais vendido no brasil. Apesar de todas as indicações da Anvisa de que ele é neurotóxico, que pode ter efeitos sobre o sistema endócrino etc, continua sendo permitido. Outro exemplo é o paraquat. Acabou de ser feito o processo de avaliação, a Anvisa reconhece todo o perigo dele, mas continua permitido. Na China que é super permissiva do ponto de vista ambiental ele já é proibido e aqui não. Então é uma opção política, relacionada à pressão da bancada ruralista e das empresas de agrotóxicos como dos próprios empresários do agronegócio, que querem garantir a continuidade desse modelo.
Existe uma movimentação no Brasil para proibir a pulverização aérea, que também já é proibida na União Europeia?
LB: Tem a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, uma campanha nacional da sociedade civil que tem como uma das metas principais o fim da pulverização aérea. Acho a pauta até tímida. A própria Anvisa, em todas as avaliações que faz dos ingredientes ativos, mostra o aumento da quantidade de mortes por câncer no Brasil. Ela reconhece que o avanço na utilização de agrotóxicos está relacionado a isso. A pauta dessa campanha é banir os banidos, que o que está proibido lá seja proibido aqui, quer eliminar a pulverização aérea. Essa pauta ainda é tímida e mesmo assim sofre uma tremenda resistência. O ideal seria uma agricultura sem agrotóxicos. É uma questão ambiental para a humanidade. Não estamos nem engatinhando nisso ainda.
Há um Projeto de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados que centraliza no Ministério da Agricultura a avaliação dos agrotóxicos. Qual sua visão sobre a proposta?
LB: Os ganhos que temos no sentido de controlar ou banir os agrotóxicos têm a ver com uma postura que coloca em primeiro lugar a saúde pública, a saúde da população e ambiental. E isso, do ponto de vista político, está representado no Ministério do Meio Ambiente e, sobretudo, no Ministério da Saúde. O MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] está diretamente preocupado com a questão dos ganhos econômicos, a questão da saúde publica é secundária. Esse projeto do Covatti Filho já começa com os termos utilizados. Nossa lei de agrotóxicos reconhece o potencial venenoso desses produtos, por isso se chamam agrotóxicos, a lei usa essa palavra. Esse Projeto de Lei fala em defensivos fitossanitários, uma expressão eufemística que esconde o caráter perigoso por trás desses produtos. Tão perigoso que há o simbolo da caveira, o símbolo de veneno em todo rótulo. O retrocesso que esse projeto representa se for aprovado começa por aí. Tem outras questões fundamentais a respeito desse PL. A criação de uma comissão vinculada só ao MAPA, ainda que tenham cadeiras para representantes da saúde, do meio ambiente, não é tripartite como é hoje. Outro aspecto que merece ser comentado é que se poderá obter a receita do agrotóxico antes mesmo de haver praga, como se a gente pudesse ter a receita do antibiótico antes mesmo de ter uma infecção. Essa comparação nem é tão feliz porque agrotóxico é veneno, não remédio. E além disso, o projeto utiliza a expressão “risco inaceitável” para decidir pela proibição dos agrotóxicos, uma expressão que fragiliza a potência que o texto atual tem.
Mesmo hoje com os Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente na regulação é difícil proibir agrotóxicos?
LB: É um poder tremendo. Há perseguição a dirigentes da Anvisa que se colocam contra. Não é simples. O poder econômico é tremendo, há uma pressão direta, ameaças.
Qual a relação entre transgênicos e o uso de agrotóxicos?
LB: Quando se tem uma agricultura orgânica, biodinâmica, agroecológica, essas formas de agricultura sem agroquímicos, há um manejo muito manual. Você consorcia várias culturas, que é como na natureza, onde não há homogeneidade no cultivo, sobretudo nos ambientes tropicais. O manejo é físico, é através da capina, um manejo em que não se usa algo que elimine quimicamente uma determinada espécie. Há trabalho físico, ou mesmo trabalho com maquinário, mas trabalho. Já quando eu tenho uma monocultura, um cultivo de soja, por exemplo, onde nasceria a soja nasceriam também outros vegetais, espontaneamente, porque o vento traz sementes etc. Se você pulveriza com agrotóxicos que matam tudo em volta e só resiste a soja isso demanda muito menos trabalho, é uma agricultura mais barata. Embora não seja desprezível o valor do veneno, em larga escala vale a pena, porque demanda muito menos mão de obra. Nesse pacote já se vende a semente tal da empresa tal e com ela já vende o glifosato dessa empresa. A semente da soja já é resistente a esse veneno, o resto todo morre.
A ideia de que os transgênicos demandariam menos agrotóxicos na prática não acontece. Pode usar menos de outros tipos, mas o herbicida é muitíssimo utilizado, inclusive aumentou o uso. De 2000 a 2010 aumentou mais de 155% a quantidade de agrotóxicos por hectare no Brasil. Isso também vem na esteira desse aumento muito grande dos cultivos de soja, cana. Se formos falar por cultivo, a soja sozinha responde por quase metade de todo agrotóxico comercializado no Brasil. O milho em segundo lugar, cana em terceiro.
Qual a relação entre o uso massivo de agrotóxicos e a estrutura fundiária do país?
LB: Essa é uma pergunta fundamental. O Brasil tem uma das estruturas fundiárias mais concentradas do planeta. Nos últimos anos, ao invés do Brasil ter feito um pacto no sentido da reforma agrária, da soberania alimentar, a gente caminhou num outro sentido. O número de assentamentos diminuiu muitíssimo, e avançou o agronegócio. O que está por trás desse uso massivo de agrotóxicos no Brasil são esses cultivos vinculado ao agronegócio. É muito mais fácil os insetos enveredarem numa monocultura do que numa agricultura toda consorciada, com variedade de alimentos. Então vai ser usado mesmo, é praticamente inevitável que a monocultura utilize agrotóxicos, é quase impossível produzir em larga escala sem agrotóxicos, por causa dessa homogeneidade tremenda. Os pequenos agricultores usam também? Uma parte sim, mas não é isso que explica esse volume imenso. Ele está vinculado a esse modelo agrário. A concentração fundiária, a destinação de grande parte da nossa terra para o agronegócio é o que explica essa tremenda utilização de agrotóxicos. Se tivéssemos seguido no caminho da reforma agrária, no sentido da agroecologia, da soberania alimentar, teríamos uma outra opção de inserção no mundo.