Por Terra de Direitos I Publicado em 26 de junho de 2023.
A inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) volta a ser julgada – em modalidade virtual – nesta sexta-feira (23) pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com previsão de duração até 30 de junho. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3526), proposta em 2005 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, contesta mais de 20 dispositivos da lei que estabelece normas e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados.
Agora, após mais de 18 anos, a ação volta a ser analisada pela Corte. Em agosto de 2021 o julgamento foi suspenso com o pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Até o momento apenas dois ministros se manifestaram no processo.
Em seu voto o ministro Edson Fachin acolheu a ação e destacou que a regulação internacional dos organismos geneticamente modificados ainda visualiza um ambiente de dúvidas sobre os impactos das OGMs na saúde humana. “Há graves incertezas quanto às consequências relativas ao seu impacto nos ecossistemas, na biodiversidade, nos modos tradicionais e autóctones de vida, e em questões socioculturais”, enfatizou o ministro. Em razão disso, recorda o Fachin durante voto, “o princípio da precaução tenha sido largamente enfatizado” nos principais documentos sobre transgênicos: a Convenção sobre Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena, normativas das quais o Brasil é signatário. A manifestação do ministro dialoga com os argumentos presentes na ação.
Conforme o artigo 225 da Constituição Federal, atividades com potencialidade de prejuízos ao meio ambiente – como o uso de organismos geneticamente modificados – devem ser submetidas obrigatoriamente a estudos prévios de impacto ambiental. No entanto, a Lei de Biossegurança – questionada na ação em julgamento – tornou facultativa a realização dos estudos prévios e condicionada à decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Ou seja, em descumprimento com a lei constitucional, a CTNBio, de modo isolado, pode decidir pela não necessidade de elaboração do estudo prévio ambiental.
“Uma vez que este princípio da precaução reclama aplicação no caso concreto, revela-se injustificada a opção do legislador de alocar, unilateralmente, na CTNBio a competência para definição do potencial danoso de organismos geneticamente modificados”, aponta Fachin em outro trecho. A potencial lesividade dos organismos geneticamente modificados é reconhecida pela legislação brasileira, com uma com lei voltada especificamente à biossegurança nacional e em instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.
A leitura do ministro divergiu do voto do relator da ação, ministro Nunes Marques. Sem mencionar a exigência constitucional de estudo prévio de impacto ambiental de atividade causadora de dano ao meio ambiente – como os OGMs – Nunes se valeu do argumento de que vacinas, por exemplo, que contêm OGMs não geram impacto ambiental, portanto dispensam estudos prévios. Com a implementação da Lei, em vigor há mais de 18 anos, tem ocorrido aprovações automáticas e dispensa de estudos prévios. Na prática, tem sido as empresas que decidem por conta própria se vão ou não monitorar os efeitos de seus produtos no ambiente e na saúde.
“Desde a sua criação, com 18 anos de atuação, a CNTBio nunca negou um pedido de liberação comercial de OMGs das empresas requerentes no Brasil. Com a exceção inovada na Lei 11.105/2005, a CTNBio apenas faz uma análise de riscos no próprio âmbito da comissão, não remetendo o processo para o licenciamento ambiental aos órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) cumprindo-se com as exigências do EIA/RIMA, por exemplo, os aspectos socioeconômicos ou a indicação de medidas mitigadoras ou redutoras de impactos. Ou seja, a retomada do julgamento da ADI 3526 pelo STF deve considerar uma realidade de intensos riscos ao meio ambiente e à saúde não mensurados desde a vigência da Lei”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade.
“Com o passar do tempo se acumularam evidências científicas e empíricas mostrando a fragilidade das decisões da CTNbio e dos estudos gerados pelas empresas interessadas em que tais decisões se mantenham como tal. Já não se trata apenas de falsas promessas, como a de melhoria na qualidade dos grãos, ou redução no uso de agrotóxicos. Hoje além das evidências de que são excessivas as deliberações apoiadas em amostragens e estudos inadequados, enviesados, insuficientes, e contestados em publicações revisadas por pares, observa-se que a CTNBio atribuiu a si mesma o direito de dispensar a análise de organismos geneticamente modificados por novas tecnologias de edição genética, afirmando que aqueles não seriam organismos geneticamente modificados”, sublinha o engenheiro agrônomo e membro do Movimento Ciência Cidadã, Leonardo Melgarejo.
Na argumentação técnica e jurídica na ação, realizada na ação pela Terra de Direitos e a Associação Nacional de Pequenos Agricultores, na condição de amicus curiae (amigo da corte), as organizações destacaram que ao menos 750 estudos científicos indicam riscos e incertezas dos OGMs foram desconsiderados pela CTNBio.
Além de interesse público, a manifestação oral das organizações no julgamento da ação, realizada pelo advogado Carlos Frederico Marés, sublinha o interesse dos agricultores no aprofundamento da ciência sobre os impactos dos OGMS. “Os pequenos agricultores pretendem e querem dizer que a sua produção – fundamentalmente de alimentos – depende de um controle científico muito estreito. Os agricultores pedem que haja aprofundamento do conhecimento dos impactos que podem causar os transgênicos”, aponta Marés.
Competência dos estados
Outro ponto de destaque na Ação Direta de Inconstitucionalidade diz respeito aos dispositivos que atribuíram competência exclusiva para a CTNBio na decisão sobre casos de liberação de produção ou comercialização dos organismos geneticamente modificados. Com isso, os demais órgãos públicos federais, dos estados e municípios têm anulado o exercício de suas funções em relação aos OGMs. A Lei 11.105/2005 ainda indica, na prática, que a fiscalização dos OGMs é tarefa exclusiva dos órgãos federais, excluindo as demais esferas.
Em manifestação aos ministros, a Terra de Direitos e o Movimento dos Pequenos Agricultores destacam que “é justamente a competência comum nessa matéria que permite a cooperação entre todos os entes federados, seus órgãos e entidades na proteção e busca pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, consagrado na Constituição Federal”, aponta um trecho da manifestação conjunta.
Alinhado ao que determina a Lei de Biossegurança, o relator ministro Nunes validou que a competência legislativa seja exclusiva da União. “Estando claro que a competência legislativa é da União, não menos exato é que a competência de serviço, isto é, a competência para licenciar e fiscalizar deve dar-se dentro do quadro normativo criado pela lei da União. Os estados e municípios, em tese, poderiam até ampliar certos serviços, suplementando a lei federal, mas tudo dentro do espaço semântico da lei geral editada pela União”, sublinha um trecho do voto do magistrado. Para o ministro, “os entes locais podem suplementar a legislação federal, sem prejuízo da observância do quadro normativo traçado pelo Congresso Nacional.”
No entanto, o ministro ignorou o contexto de omissão de estados da federação até mesmo na fiscalização dos organismos geneticamente modificados, como fez Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (ADAPAR) que se viu desobrigada de fiscalizar o não cumprimento de medidas para não contaminação de cultivos de milhos crioulos por cultivos com sementes geneticamente modificadas.
Em oposição, Fachin reafirmou a competência comum entre União, estados e municípios na proteção ambiental e apontou que todos os entes da federação “não podem se desincumbir por simples referência à atuação da União”.
Mais transgênico, menos agrotóxicos?
O ministro Nunes Marques, em seu voto, a partir de notícia publicada em jornal, afirma que os transgênicos reduzem os agrotóxicos. Segundo ele, “ao criar plantas mais resistentes, diminui-se “a necessidade de aplicação de defensivos agrícolas para combater as pragas.”
Ao fazer essa afirmação o ministro ignora os estudos de pesquisadores da Fiocruz e Embrapa, no qual apontam que “contrariando as expectativas iniciais de diminuição do uso de agrotóxicos após a introdução de culturas GM, observou-se que o uso total de agrotóxicos no Brasil aumentou 1,6 vezes entre os anos de 2000 e 2012.”
O estudo indica que há baixa correlação entre a introdução entre o consumo de agrotóxicos e herbicidas e a produtividade da soja, sendo que o uso de agrotóxicos nesta cultura foi elevado em mais de 3 vezes. Ainda, sustenta-se que “a introdução de culturas GM levou ao aumento no uso de agrotóxicos, com a possibilidade de aumento da exposição humana e ambiental e, consequentemente, aos impactos negativos associados a essas substâncias”.