Por Roberta Quintino l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Enquanto o Brasil consolida sua posição como maior produtor mundial de soja, o título de liderança global oculta uma realidade marcada pela degradação ambiental, pelo comprometimento da saúde pública e por uma dependência crescente de agrotóxicos, colocando o país no topo do ranking de maior consumidor de venenos do mundo. Neste contexto, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA) apresenta-se como política pública central e urgente, mas também como campo de disputa.
Após mais de dez anos de espera, o PRONARA, que apresenta medidas para a redução do uso de agrotóxicos no Brasil, foi finalmente formalizado por decreto presidencial em junho de 2025. A medida, no entanto, não está imune às tensões políticas e aos interesses das fabricantes de veneno. Para a toxicologista e pesquisadora da Fiocruz Karen Friedrich, que acompanha o debate desde seus primeiros passos, a assinatura do decreto é significativa em meio ao avanço do agronegócio e da extrema direita no Congresso.
Em entrevista à Campanha, ela registrou a importância de todas as pessoas e organizações que fizeram parte da construção do Programa, “há mais de 10 anos, quando a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) foi aprovada, durante o governo Dilma e, nesse âmbito, o PRONARA”. Ela também destacou a relevância da decisão do governo Lula ao assinar o decreto, especialmente em um cenário político marcado pela ofensiva da extrema direita. “Principalmente numa conjuntura política onde os tratores da extrema direita, que inclui a bancada ruralista, se lançam agressivamente sobre políticas sociais, como a isenção de imposto de renda dos que ganham menos de 5 mil reais por mês”, pontua.
O decreto foi assinado durante o lançamento do Plano Safra 2025/2026, evento que trouxe à tona também o debate sobre a taxação de grandes fortunas e o aumento do IOF. Para Karen, isso demonstra que a política de redução de agrotóxicos está inserida em uma disputa mais ampla, que envolve o modelo de país e de desenvolvimento que esses setores defendem.

“O decreto em si representa um importante e necessário avanço. No contexto do uso e da regulação de agrotóxicos no Brasil é uma importante prevenção para os danos decorrentes do uso de agrotóxicos, que encontram muitas facilidades, incluindo isenções fiscais e um robusto orçamento. Além disso, a nova Lei de Agrotóxicos, voltada a garantir os interesses econômicos do agronegócio, incluindo as grandes indústrias transnacionais, permite, dentre outros desastres, que produtos com maior potencial cancerígeno sejam utilizados no país. E como esses agrotóxicos vêm sendo proibidos em outros países, a tendência é nos consolidarmos como mercado para descarte de produtos altamente tóxicos e prejudiciais para os nossos biomas ”
A fala da pesquisadora se confirma nos dados mais recentes do Instituto Escolhas. De acordo com o estudo “Brasil como líder mundial em produção de soja: até quando e a que custo?”, publicado em junho de 2025, o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira cresceu 2.019% entre 1993 e 2023.
O estudo aponta ainda que a produção está se tornando cada vez mais dependente de insumos químicos, com impactos visíveis na saúde humana, no meio ambiente e também no bolso dos produtores. O custo com sementes, fertilizantes e agrotóxicos saltou de R$ 46 bilhões em 2013 para R$ 155 bilhões em 2023, representando 44% do valor bruto da produção da soja naquele ano.
“O cenário atual é muito preocupante. Quando olhamos os territórios atingidos. Há várias décadas testemunhamos o envenenamento das águas, das florestas, dos alimentos, do leite materno e dos bebês no ventre da mãe. Logo, o PRONARA pode permitir que sejam implementadas medidas para a redução do uso de agrotóxicos, ao mesmo tempo que propõe medidas concretas pra ampliar a produção de alimentos saudáveis para a classe trabalhadora”, destaca Friedrich.
A aposta da política de redução de agrotóxicos é também uma aposta na agroecologia, em oposição ao modelo de commodities voltado à exportação. No entanto, como lembra Karen, existem ações que devem ser reforçadas, ao mesmo tempo que impedir que os interesses dos setores econômicos se sobreponham as questões de saúde, ambiente e sobrevivência de povos e comunidades tradicionais.

“É fundamental que as medidas implementadas sejam estruturantes e, desde o início, tenham a participação e o controle social. Dentre ações estruturantes importantes estão a formação contínua em modos de produção agroecológico, formar profissionais de agronomia e da saúde sobre os impactos desses produtos, como diagnosticar, tratar e prevenir intoxicações. Atuar de forma integrada entre as diferentes áreas da vigilância (sanitária, epidemiológica, ambiental e saúde do trabalhador). Investir e fortalecer laboratórios públicos com capacidade para atender a demanda de análise de agrotóxicos nos rios, nas águas, nos alimentos in natura e industrializados”. Ela ressalta ainda que “não é novidade que o setor interessado em continuar vendendo os venenos mais tóxicos do mundo para o Brasil também atuará contra o PRONARA.”
Entre os desafios para a implementação do Programa está a limitação da própria estrutura de governo. O decreto estabelece competências para seis instâncias do Executivo, mas deixa de fora ministérios centrais. Para Karen, o Ministério da Educação, ausente no decreto, é indispensável, seja pelo debate dos currículos escolares e universitários, que devem se debruçar sobre os problemas atuais, como pelo incentivo à pesquisa, extensão e formação.
Ela ressalta ainda que o Ministério dos Direitos Humanos também deveria ter espaço, uma vez que são muitas ameaças e registros de violações de direitos humanos em decorrência do uso de agrotóxicos, em especial pela prática da pulverização aérea, bem como, o Ministério dos Povos Indígenas. De modo geral, são estruturas que dialogam sobre “a fome, a contaminação ambiental e o colapso climático”, temas diretamente relacionados “aos agrotóxicos e ao tipo de produção agrícola que depende de expressivas toneladas de substâncias químicas, principalmente herbicidas, para a produção de commodities”.
Para a pesquisadora, o PRONARA é mais do que um instrumento de transição para a agroecologia, é também uma resposta urgente aos impactos provocados pelo modelo agrícola dominante no Brasil. Ela destaca que, desde o golpe de 2016, houve uma série de retrocessos nas políticas de regulação dos agrotóxicos. Entre eles, a aprovação da pulverização aérea em áreas habitadas, a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, reativado apenas em 2023, o avanço da liberação de transgênicos pela CTNBio, a paralisação do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) e a aprovação de dezenas de leis e normas que facilitaram o uso de produtos altamente tóxicos, muitos já banidos em outros países.
Um símbolo desse processo, segundo ela, foi a aprovação do Pacote do Veneno, em novembro de 2023. A medida institucionalizou um modelo de regulação mais permissivo, que ignora os impactos de longo prazo à saúde e ao meio ambiente. “Produtos com potencial cancerígeno, efeitos hormonais e reprodutivos graves passaram a ser liberados com maior facilidade. Além disso, a avaliação de risco para o registro de agrotóxicos passou a desconsiderar a exposição ambiental, considerando apenas riscos alimentares ou ocupacionais, como se os efeitos sobre comunidades inteiras, incluindo territórios indígenas, quilombolas e outros fossem irrelevantes e a margem do que garante a nossa Constituição ”.
Karen chama atenção para a vulnerabilidade de povos e comunidades tradicionais, frequentemente expostos aos agrotóxicos sem qualquer forma de proteção ou reparação. Ela também denuncia a prática, legalizada pelo novo marco regulatório, de fabricação de agrotóxicos no Brasil exclusivamente para exportação, mesmo que tais produtos não estejam autorizados para uso no próprio território nacional. Tal permissão, afirma, aumenta o risco de doenças para os trabalhadores das fábricas e das populações do entorno.
Diante de todos esses elementos, a toxicologista reforça que o PRONARA é, portanto, mais do que um programa de governo.
“É um campo de disputa, entre o agronegócio de um lado, e a agroecologia e a agricultura familiar do outro, entre o envenenamento e a soberania alimentar. Assim, a efetivação do Programa Nacional representa a transição para um modelo agrícola que respeite os limites do planeta, a saúde da população e o direito à alimentação de qualidade. Mas, será preciso mais do que um decreto, será preciso organização social, mobilização permanente e pressão popular para que o PRONARA deixe de ser uma promessa no papel”, conclui.