Por Gabrielle Alves l Le Monde Diplomatique Brasil – publicado em 18 de agosto de 2025.

Crédito: Beatriz Varella
Nem todo recipiente pode ter uma segunda vida. Em aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas é comum que plásticos e latas sejam reaproveitados para armazenar mudas e coletar água. O que era para ser uma solução positiva de reciclagem e gestão de resíduos esbarra em uma ameaça silenciosa: e quando as embalagens vazias são de agrotóxicos descartados de forma irregular nesses territórios?
Se lançadas no rio, as substâncias químicas remanescentes nas embalagens podem contaminar a água consumida pelas comunidades locais, provocando dores abdominais, náuseas e vômitos. Quando descartadas nas proximidades de seus territórios, essas embalagens muitas vezes são reaproveitadas para armazenar e transportar água – e, por vezes, estocar alimentos –, convertendo o reaproveitamento em risco sanitário e mantendo uma exposição silenciosa e contínua aos resíduos tóxicos.
O descarte irregular, por vezes tolerado ou deliberado, compõe o que a pesquisadora Larissa Bombardi chama de “colonialismo químico”: o uso de agrotóxicos como armas químicas em conflitos fundiários. Nessa dinâmica, as embalagens vazias prolongam a exposição crônica a resíduos, enfraquecendo a saúde coletiva e o tecido social de povos que defendem seus territórios. Esse adoecimento, previsível e desigual, pode abrir caminho para a pressão de interesses ilegais e a ocupação dessas áreas a médio prazo.
Porque abrigam substâncias de longa meia-vida, as embalagens não perdem a toxicidade com lavagem doméstica. A repetição do contato com esses resíduos amplia o risco de doenças crônicas, incluindo distúrbios hormonais, comprometimento hepático e câncer, produzindo um quadro cumulativo de adoecimento.
Apesar da existência da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e de uma legislação específica para o uso e descarte de agrotóxicos, a chamada logística reversa – que obriga fabricantes e comerciantes a garantir o retorno e o destino ambientalmente adequado dessas embalagens – não chega de forma estruturada e permanente a todos os territórios, e muito menos às margens da floresta ou às aldeias indígenas. O sistema, pensado para uma cadeia de produção organizada e monitorada, falha justamente onde o controle é mais urgente: nas linhas de frente.
No Acre, o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Acre (Idaf), em parceria com a Associação das Revendas Agrícolas do Estado do Acre (Araac) e o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (InpEV), realizaram uma Campanha de Recebimento Itinerante de embalagens vazias de agrotóxicos. Uma prática positiva por levar os pontos de coleta a locais diversos, incentivando a devolução das embalagens usadas.
Em âmbito federal, é indispensável o fortalecimento interinstitucional da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) que una Ministério da Saúde, Meio Ambiente e Mudança do Clima, Funai e Ibama, além de governos estaduais e municipais, organizações da sociedade civil e a própria cadeia produtiva (fabricantes, distribuidores e revendas). Essa articulação deve promover ações permanentes de educação em risco químico – não eventos pontuais – para orientar a identificação dessas embalagens, proibir o reuso, definir procedimentos de inutilização segura (impedir o reuso sem manipulação caseira) e organizar a destinação adequada.
O que ocorre nos territórios ilustra que essas ações precisam ser cultural e linguisticamente adequadas: materiais bilíngues em línguas indígenas, uso de pictogramas para contextos de baixo letramento, rádios comunitárias e oficinas itinerantes em rotas fluviais. O conteúdo mínimo deve incluir: sinais e primeiros cuidados em casos de intoxicação, fluxos de notificação compulsória na rede de saúde, contatos para recolhimento, rotas e calendários de recebimento móvel, e instruções claras: não lavar, não abrir e não transportar embalagens suspeitas.
Para que funcione, é necessário financiamento estável, metas auditáveis e responsabilização de fabricantes e comerciantes quando a logística reversa não alcançar os territórios, incluindo pontos de entrega voluntária móveis e operações periódicas em parceria com estados e municípios. Sem coleta regular, educação sobre o risco e punição efetiva dos fabricantes e distribuidores que não monitoram suas embalagens contaminadas, a logística reversa permanece no papel e a contaminação, na rotina e no futuro dessas populações.