Por Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso l Publicado em 20 de agosto de 2025.

O Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT) participou, nesta terça-feira (19), no Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso (TRT/MT), de audiência pública para debater a legalidade do uso do glifosato no contexto das relações de trabalho. Ao todo, 15 expositores trouxeram contribuições técnicas, científicas e sociais para subsidiar o julgamento sobre a aplicação do herbicida em lavouras de Mato Grosso.
A audiência pública foi designada pelo desembargador Aguimar Peixoto, relator do Incidente de Assunção de Competência (IAC) n. 0000187-70.2025.5.23.0000, como etapa prévia ao julgamento do processo pelo Pleno do Tribunal. O IAC é um desdobramento de uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada em 2019 pelo MPT-MT, Ministério Público Federal em Mato Grosso (MPF-MT) e Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPMT), que busca estabelecer, nas lavouras do Estado, a abstenção da utilização, no processo produtivo, de quaisquer agrotóxicos, adjuvantes e afins que contenham o princípio ativo glifosato em sua composição.
A ACP é movida contra três entidades representativas do setor agrícola: Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja), Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato) e Associação Mato-grossense do Algodão (Ampa).
A controvérsia jurídica gira em torno de dois pontos principais: a possibilidade de o Judiciário trabalhista decidir sobre a proibição do uso de um produto autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a amplitude da legitimidade passiva em ações “duplamente coletivas” — ou seja, se no presente caso, os efeitos da decisão podem se estender a todos(as) os(as) produtores(as) representados(as) pelas entidades, mesmo que não sejam partes diretas na ação.
Colaboração da sociedade e cidadania
Ao dar boas-vindas, o desembargador Aguimar Peixoto destacou que as discussões da audiência pública são essenciais para o julgamento da ação. “Não queremos decidir a questão sem a colaboração da sociedade por meio dos segmentos organizados.”
Para a presidente do Tribunal, desembargadora Adenir Carruesco, a audiência pública representa prova da maturidade necessária ao debate público de temas atuais. “Nós buscamos definir os parâmetros para que o direito se consolide, não apenas em termos de segurança jurídica, mas também de efetivação da justiça social. Valorizar a contribuição da sociedade e assegurar a participação de diversos setores sociais são pilares fundamentais para o fortalecimento do Poder Judiciário.”

Foto: Marcelo Dantas/Ascom MPT-MT
“A realização deste ato coletivo representa em si um exercício de cidadania. O Tribunal dá concretude à noção de que o direito não pode ser elaborado em gabinetes fechados, mas deve ser construído com interação constante com a realidade concreta”, complementou a coordenadora do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Disputa (Nupemec) do TRT/MT, desembargadora Beatriz Theodoro.
Pontos debatidos e defesa da proibição: riscos à saúde
Além de discutir a legitimidade de as entidades no polo passivo da ação representarem os(as) produtores(as) rurais do estado, integraram a pauta da audiência os possíveis impactos do herbicida à saúde dos(as) trabalhadores(as) rurais, a confiabilidade de estudos científicos sobre os riscos do produto, a compatibilidade climática de Mato Grosso com o uso seguro do herbicida e a existência de alternativas eficazes ao glifosato.

Foto: Marcelo Dantas/Ascom MPT-MT
Para o debate oral, 16 expositores(as) foram habilitados(as). Destes(as), nove professores(as) e pesquisadores(as) acabaram defendendo a tese do MPT: Ageo Mário Cândido da Silva e Márcia Leopoldina Montanari Corrêa, ambos do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT); Alice Hertzog Resadori, representando a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar); Carla Reita Faria Leal, coordenadora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMT e líder do Grupo de Pesquisa ‘O meio ambiente do trabalho equilibrado como componente do trabalho decente’; Lia Giraldo da Silva Augusto, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); Luís Cláudio Meirelles, do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos; Nádia Spada Fiori, da Rede Interseccional de Saúde Reprodutiva e Agrotóxico; Paulo Roberto Lemgruber Ebert, líder do Grupo de Pesquisas Meio Ambiente do Trabalho (GPMAT) da Universidade de São Paulo (USP); e Márcia Sarpa de Campos Mello, do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
A médica Lia Giraldo da Silva Augusto apresentou palestra denominada Da estrutura química e molecular ao social, o glifosato, produtos formulados, seus metabolitos e resíduos fazem mal à saúde dos trabalhadores expostos, das populações que vivem em territórios e locais fumegados e para os ambientes contaminados. Já Márcia Scarpa de Campos Mello discorreu sobre a Avaliação dos Efeitos dos Agrotóxicos na Saúde Humana para a Prevenção do Câncer, seguida do professor Ageo Mário Cândido da Silva, que falou sobre o tema A Influência dos Agrotóxicos sobre a Saúde Humana.
O ex-gerente-geral de Toxicologia da Anvisa, Luís Cláudio Meirelles, representou o Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos. O pesquisador reforçou, em sua fala, que não há dose segura de exposição ao glifosato quando se trata de câncer, e lembrou que o produto já é classificado pela Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (Iarc), vinculada à Organização Mundial da Saúde (OMS), como “provavelmente carcinogênico para humanos”.
A pesquisadora Márcia Leopoldina Montanari Corrêa, do ISC/UFMT, destacou que estudos realizados há mais de 20 anos no estado revelam um quadro preocupante devido às altas taxas de câncer infanto-juvenil entre crianças e adolescentes de 0 a 19 anos. “Vivemos uma epidemia de câncer infantil-juvenil em Mato Grosso, com incidências muito acima da média nacional, especialmente em municípios onde o uso de agrotóxico é mais intenso.”
Ela ainda mencionou pesquisas realizadas em Mato Grosso pelo Núcleo de Estudos em Ambiente e Saúde do Trabalho da UFMT (Neast/UFMT), que identificaram resíduos de agrotóxicos, inclusive de glifosato, em locais como poços artesianos, alimentos da merenda escolar e até leite materno.
O expositor Paulo Roberto Lemgruber Ebert defendeu a competência da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar a presente causa, afastando a alegação de que haveria conflito ou sobreposição com a atribuição dos órgãos responsáveis pelo registro de agrotóxicos, em especial a Anvisa. Por sua vez, a professora doutora Carla Reita Faria Leal manifestou-se favorável à admissibilidade das ações coletivas passivas no sistema jurídico pátrio, bem como à legitimidade das rés para integrarem a polaridade passiva da ACP em análise.
Cada um(a) deles(as) teve 10 minutos de apresentação oral, realizada de forma presencial ou telepresencial. Foi ainda autorizada a participação de diversos pesquisadores(as), professores(as) e entidades por meio de manifestações escritas, as quais serão juntadas aos autos com o objetivo de contribuir para o esclarecimento técnico-científico e jurídico da matéria, subsidiando o julgamento do caso.
Entenda o caso
A Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelos Ministérios Públicos foi distribuída à 3ª Vara do Trabalho de Cuiabá. O Juízo de primeiro grau, entretanto, reconheceu a incompetência absoluta da Justiça do Trabalho, sob o fundamento de que a matéria tratada alcançaria toda a coletividade, e não apenas os trabalhadores. Determinou, assim, a remessa dos autos à Justiça Comum Federal, em razão da presença do Ministério Público Federal (MPF) como litisconsorte facultativo e da manifestação de interesse da União.
Na fase recursal, a Segunda Turma do TRT-MT deu provimento ao Recurso Ordinário do MPT, declarando a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a causa, com determinação de retorno dos autos à Vara de origem. Essa decisão foi confirmada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Retomado o julgamento, o Juízo da 3ª Vara do Trabalho da capital acolheu, em parte, a preliminar de ilegitimidade passiva, extinguindo o processo, sem resolução do mérito, em relação à Famato e, no mérito, julgou improcedente a ação em relação aos demais réus (Aprosoja e Ampa).
O MPT interpôs novo Recurso Ordinário, buscando reverter essa decisão no TRT-MT. Já iniciado o julgamento pela Turma, as entidades Aprosoja e Ampa suscitaram a instauração de Incidente de Assunção de Competência (IAC). O Tribunal admitiu o processamento do incidente e, diante da natureza, complexidade e repercussão social e econômica da causa, bem como da necessidade de assegurar amplo debate da matéria entre os atores sociais interessados, o desembargador relator do incidente deliberou pela realização de audiência pública.
Transmissão
As discussões foram transmitidas ao vivo pelo YouTube do TRT/MT. Assista na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=-oTQ2JeHLe8