Da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida e Fian Brasil.

As terras indígenas Guyraroka, Caarapó e Passo Piraju, em Dourados (MS), reconhecidas pela Constituição Federal como tradicionalmente ocupadas pelos povos Guarani e Kaiowá e já alvo de ataques com agrotóxicos, foram novamente palco de violência nas últimas semanas. Relatos apontam para a atuação da tropa de choque da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul com uso de balas, gás lacrimogêneo e helicóptero contra as comunidades. A situação tem sido acompanhada com preocupação pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida e pela FIAN Brasil.
Em conformidade com a Constituição Federal de 1988, é incontestável que o Estado brasileiro reconheça e cumpra suas obrigações para com os povos indígenas, assegurando seus direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam, conforme estabelecido no artigo 231. Este artigo e seus parágrafos garantem a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, bem como seu direito à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
A Carta Magna também atribui à União a competência para demarcar, proteger e fazer respeitar as terras indígenas e todos os seus bens. No entanto, persiste uma grave lacuna entre o que prevê a Constituição e a realidade enfrentada pelos povos indígenas no Mato Grosso do Sul. A demora e a omissão no processo de demarcação violam não apenas a Constituição, mas também normas internacionais de direitos humanos, comprometendo a segurança, a saúde e a dignidade das comunidades Guarani e Kaiowá.
Os episódios de violência recorrentes envolvendo forças policiais estaduais reforçam denúncias de uso indevido da segurança pública em conflitos pelas terras indígenas. Cabe destacar que a Constituição estabelece que compete exclusivamente à União a proteção dos povos indígenas e a garantia de seus territórios tradicionais, não cabendo ingerência das forças de segurança estaduais. Ademais, o artigo 232 da Constituição assegura aos povos indígenas legitimidade para ingressar em juízo na defesa de seus direitos, com intervenção obrigatória do Ministério Público, reforçando a proteção jurídica dessas populações.
Nos conflitos pela posse das terras tradicionalmente ocupadas, soma-se a grave problemática do uso intensivo de agrotóxicos, que impacta diretamente a saúde das comunidades e a integridade de seus territórios. Essa situação exige regulamentação protetiva urgente por parte da União, assegurando condições dignas de vida, o direito humano à alimentação e à água, e a efetividade dos direitos constitucionais e internacionais dos povos indígenas.
O tema dos agrotóxicos tem ganhado relevância crescente entre comunidades indígenas em todo o Brasil. Em 26 de agosto de 2024, foi realizada audiência pública na Câmara dos Deputados, convocada pela Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, a pedido da deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG), com participação da APIB e da FIAN Brasil. Na ocasião, pesquisas e relatos de lideranças indígenas evidenciaram a contaminação por agrotóxicos e seus impactos devastadores.
Como resultado, foi publicada a Nota Técnica nº 01/2025 – “Territórios Indígenas: subsídios para uma regulamentação protetiva”, elaborada por organizações da sociedade civil (FIAN Brasil, Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, APIB, Fiocruz Ceará, Instituto Preservar e Terra de Direitos), a qual reúne elementos fundamentais sobre a gravidade da exposição aos agrotóxicos, configurando uma questão de saúde pública nacional. A nota denuncia ainda o uso de agrotóxicos como “arma química” contra comunidades indígenas em conflitos fundiários, aplicados sobre estradas, aldeias, roças, fontes de água e até diretamente sobre as pessoas.
Na Terra Indígena Guyraroká, em Caarapó (MS), denúncias relatam ataques sistemáticos com pulverização de agrotóxicos por aviões, drones e tratores, afetando especialmente crianças, que apresentam sintomas graves de intoxicação. A comunidade, que resiste em apenas 50 hectares cercados por lavouras de soja, é beneficiária da Medida Cautelar nº 458-19 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual reconhece as ameaças e exige medidas urgentes de proteção – inclusive contra o uso intencional de agrotóxicos para expulsão forçada do território.
Diante do exposto, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida e a FIAN Brasil exigem que o Estado brasileiro, por meio da União e de seus órgãos competentes, adote medidas imediatas:
- Garantir a proteção física, cultural e territorial das comunidades Guarani e Kaiowá, cessando os atos de violência e impedindo a atuação indevida das forças policiais estaduais em terras indígenas;
- Agilizar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, em conformidade com o artigo 231 da Constituição Federal e com as normas internacionais de direitos humanos;
- Estabelecer regulamentação protetiva específica sobre o uso de agrotóxicos em áreas indígenas e seus entornos, assegurando o direito humano à alimentação, à água, à saúde e à vida digna.
- Cumprir integralmente as medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, garantindo proteção efetiva à comunidade Guyraroká e às demais comunidades sob ameaça.
- Suspender o uso dos agrotóxicos nas terras indígenas Guyraroka e Passo Piraju.
Reafirmamos nossa solidariedade aos povos Guarani e Kaiowá e nosso compromisso em seguir denunciando nacional e internacionalmente toda forma de violência, negligência e violação de direitos a que estas comunidades têm sido submetidas.
A vida humana vale mais do que qualquer quantia monetária!