Experiências de Tribunais Populares inspiram estratégias de resistência no Congresso de Agroecologia

Por Roberta Quintino l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Foto: Nieves Rodrigues

Durante o 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), realizado em Juazeiro (BA), a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida promoveu a roda de conversa “Tribunal Popular: os agrotóxicos no banco dos réus — socialização e construção desta ferramenta popular de luta”. A atividade reuniu experiências de três tribunais realizados nos últimos anos, reafirmando o papel dessas iniciativas como instrumentos políticos de denúncia, mobilização e construção de justiça popular frente à omissão do Estado e ao avanço do agronegócio sobre territórios e vidas.

Os tribunais populares não possuem valor jurídico formal, mas têm potência política reconhecida internacionalmente. Criado na década de 1970, o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) foi a inspiração para essas experiências no Brasil. “Ele é um espaço que não tem esse valor institucional e jurídico, mas tem um grande valor político e moral, que é o que muito nos interessa”, explicou Mirelle Gonçalves, da Campanha Contra os Agrotóxicos.

Segundo ela, essa é uma ferramenta “usada pelos povos para fazer denúncias graves contra violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade e contra a natureza”.

“A gente avalia o tribunal como uma ferramenta fundamental nesse processo de luta contra os agrotóxicos, porque podemos ter uma sentença que jamais teríamos no judiciário comum. Ele permite colocar as transnacionais vinculadas aos venenos no banco dos réus, e isso é muito simbólico para os povos e os movimentos populares”, completou Mirelle.

No Ceará, o Tribunal Popular dos Agrotóxicos, realizado em 2024, julgou os impactos da contaminação por venenos na água, nos alimentos e nas pessoas. A atividade foi organizada por diversas entidades, entre elas o Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, e teve como um de seus objetivos tornar pública a responsabilidade do Estado e do agronegócio sobre os danos à saúde e ao meio ambiente.

Foto: Nieves Rodrigues

Para Magnólia Nascimento, do Esplar, o tribunal foi uma resposta à indignação coletiva diante do descaso. “Desde 2008, o Brasil é o maior importador de agrotóxicos do planeta, e ainda assim o uso só aumenta. Um estudo mostrou que, em 200 municípios cearenses, há 27 tipos de agrotóxicos na água consumida pela população. A cada dois dias, uma pessoa morre por intoxicação no Brasil, e isso não é noticiado”, afirmou.

Ela reforçou que a iniciativa busca romper o silêncio imposto pelos interesses do agronegócio. “Esses agrotóxicos são apresentados como falsa solução para a produção de alimentos, mas destroem a vida, a biodiversidade e a saúde. E há um escudo político por trás disso, representado pela bancada ruralista e pelos institutos que defendem o agro em todas as esferas”, denunciou.

Ecocídio em julgamento

Outro exemplo destacado foi o Tribunal dos Povos do Cerrado, realizado entre 2021 e 2022, que julgou o ecocídio em curso contra o bioma e o genocídio dos povos que nele vivem. O processo, articulado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, reuniu 15 casos representativos de violações, sistematizados em três eixos: águas, terra e território, soberania alimentar e sociobiodiversidade.

Segundo Bruno Alface, da Campanha do Cerrado, o tribunal surgiu como resposta política ao avanço predatório do capital sobre os territórios. “Foi um processo coletivo, com comunidades, movimentos, organizações sociais e universidades. Nenhum tribunal popular tem vínculo com o sistema de justiça, mas nós fizemos questão de dar robustez a esse processo, com metodologia e rigor, como em um júri oficial. A sentença se tornou base para três dossiês temáticos, uma agenda político-jurídica para frear as violações e diversos materiais que hoje podem ser usados como subsídios”, contou.

A pesquisadora Aline Gurgel, da Fiocruz, destacou o papel da produção de evidências científicas no fortalecimento das denúncias. Foram 211 amostras de água coletadas com participação das comunidades, e todas apresentaram resíduos de agrotóxicos — o glifosato foi detectado em 100% delas.

“Encontramos amostras com até nove tipos diferentes de agrotóxicos, muitos associados a doenças como o câncer. Esses dados subsidiam não apenas o tribunal, mas também a construção de leis mais restritivas e o fortalecimento da agroecologia como alternativa real”, explicou. Ela defendeu que essas experiências demonstram “ser possível fazer uma outra ciência: cidadã, engajada e construída com os povos dos territórios, não sobre eles”.

Instrumento de resistência

O tribunal mais recente aconteceu em Santarém (PA) e colocou o Estado e o agronegócio no banco dos réus pelos impactos dos agrotóxicos no Planalto Santareno. O evento reuniu mais de 400 pessoas — agricultores, quilombolas, povos indígenas e representantes de movimentos sociais — na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.

Darlon Neres, dos Guardiões do Bem Viver e da Comissão Pastoral da Terra, relatou que a metodologia popular foi essencial para aproximar a população da noção de justiça. “A região vive sob alta tensão com o avanço da soja, do milho e da especulação imobiliária. Há territórios que desapareceram, onde havia comunidades, hoje há lavouras, onde havia cemitérios, hoje não há mais nem onde chorar os nossos mortos”, afirmou.

“O tribunal nos permitiu colocar essas histórias em evidência e buscar soluções concretas para os nossos territórios”, completou.

Em todos os relatos, uma ideia em comum se consolidou, a de que os tribunais populares são espaços de reconstrução da esperança e de elaboração coletiva e popular de justiça, onde o Estado muitas vezes têm falhado e a impunidade imperado nos territórios. É a partir desse instrumento que é possível transformar a violência e a dor em denúncia, articular saberes populares e científicos e produzir documentos, dossiês e recomendações que podem influenciar políticas públicas, legislações e sanções concretas.

De modo geral, os depoimentos destacaram que os tribunais apontam caminhos para a defesa dos direitos humanos, da saúde e do meio ambiente. “Essas experiências mostram que os povos, quando se organizam, produzem justiça com suas próprias mãos e vozes, e fazem repercutir aquilo que os tribunais oficiais não querem ouvir”, conclui Mirelle.

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