O Agro no banco dos réus: o veredito popular contra a farsa da sustentabilidade

Alan Tygel, Roberta Quintino, Mirelle Gonçalves e Íris Pacheco, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida*

Criações de gado em larga escala,  desmatamento com objetivo de grilagem de terras, e expansão desenfreada de monoculturas: essa é a receita da principal contribuição brasileira à crise climática. Diferentemente de outros países, onde a parte mais significativa das emissões de gases de efeito estufa se deve à geração de energia, no Brasil o maior responsável por essas emissões é o agronegócio. De acordo com o Observatório do Clima, em 2023, cerca de 73% das emissões de gases do efeito estufa brasileiras estavam relacionadas à agropecuária (27%) e às alterações no uso do solo (46%), que se traduzem basicamente em desmatamento. 

Sempre de olho em melhorar sua imagem, este mesmo agronegócio participa da a COP 30 promovendo a “Agrizone”, autodeclarada “Casa da Agricultura Sustentável”. Entre os principais patrocinadores do espaço estão a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Nestlé, gigante mundial de produtos alimentícios ultraprocessados, e a Bayer, uma das quatro maiores vendedoras de agrotóxicos e transgênicos no Brasil. O próprio Ministério da Agricultura irá operar do local e a Embrapa está engajada ativamente em sua realização e promoção.

É absurdo, mas não surpreende. O agronegócio, compreendido como uma aliança entre o latifúndio, a indústria e o capital financeiro, é a opção escolhida pelo Brasil desde o final da década de 1990 como forma de aumentar a balança comercial e gerar divisas para um país em franco processo de desindustrialização. A exportação de commodities – soja, milho, algodão, café, açúcar – com nenhum ou baixo grau de processamento se complementa com a importação de produtos tecnificados, como maquinários, fertilizantes químicos e os agrotóxicos. Um modelo insustentável por natureza.

Do ponto de vista ambiental, a tragédia se dá pela demanda de grandes extensões de terra para plantação de monoculturas, uso intensivo de água, eliminação da biodiversidade e esgotamento do solo, criando-se um ambiente propício para o surgimento de novas pragas, o que leva à demanda por mais fertilizantes e mais agrotóxicos. Os transgênicos, por sua vez, trouxeram ainda mais elementos de insustentabilidade: ao mesmo tempo em que acabam com a diversidade genética que protege naturalmente as plantas, impulsionam as plantas invasoras resistentes, que demandam ainda mais agrotóxicos diferentes para o seu controle. Hoje, já há sementes transgênicas resistentes a até cinco herbicidas diferentes.

Do ponto de vista financeiro, tampouco há “sustentabilidade”. Não fossem os recursos do Estado, não haveria Agro. Ao todo, a renúncia fiscal do agro é estimada em R$158 bilhões ao ano. Apenas de janeiro de 2024 a fevereiro de 2025, empresas de agrotóxicos deixaram de recolher R$25,8 bilhões em impostos, segundo o Ministério da Fazenda. Lideram a lista de isenção as empresas Syngenta (R$2,7 bilhões), Corteva (R$1,7 bilhão) e BASF (R$1,6 bilhão). 

Além dos impactos sobre a natureza e o bolso dos contribuintes,  o agronegócio afeta diretamente a vida de povos indígenas, camponeses, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais, que seguem defendendo seus territórios frente ao avanço dos monocultivos. O resultado é o número crescente de conflitos no campo, que segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, chegaram a marca de 2185 em 2024, envolvendo mais de 1 milhão de pessoas, com o Pará, estado sede da COP 30, liderando o ranking.

Não surpreende, portanto, que o Tribunal Popular contra os Agrotóxicos tenha sido realizado, em setembro de 2025, no coração do Pará, em Santarém. Segundo dados da Agência de Defesa Agropecuária do Estado (Adepará), Santarém, Mojuí dos Campos e Belterra formam hoje um dos pólos mais disputados do agronegócio no Pará, estando entre os dez maiores produtores de monocultivos do estado, um indicador do avanço das fronteiras agrícolas sobre a região do Baixo Tapajós.

Nesse cenário, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida passou a receber denúncias de intoxicações em comunidades, escolas e territórios tradicionais e articulou-se com movimentos populares e organizações sociais da região para realizar esse Tribunal Popular. Inspirado pela tradição inaugurada pelo Tribunal Permanente dos Povos, instituído em 1979 na Itália, esse julgamento simbólico não apenas denunciou o projeto de morte promovido pelo agronegócio, como também apontou alternativas de produção e soberania alimentar a partir do povo.

Em sessão pública, foram apresentados testemunhos de diversas comunidades, colocando no banco dos réus as transnacionais do mercado de venenos e toda a cadeia do agronegócio, responsáveis pelos impactos causados pelos agrotóxicos e os crimes de etnocídio e ecocídio, ao destruir deliberadamente os modos de vida, a soberania alimentar e as bases materiais e espirituais da existência dos povos.  As comunidades denunciaram, também, o Estado brasileiro, acusado de omissão deliberada diante da ausência de regulamentações mais protetivas e por manter incentivos fiscais à indústria de agrotóxicos, mesmo diante dos danos comprovados à saúde humana e ao meio ambiente.

Entre as testemunhas de acusação, a professora Annelyse Figueiredo, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), explicitou a dimensão do problema no Planalto Santareno, destacando que enquanto a média brasileira de agrotóxicos por pessoa ao ano é equivalente 4,5 litros, em Belterra, esse número chega a 29,3 litros e, em Mojuí dos Campos, a 37,3 litros por habitante quando considerados apenas os agrotóxicos aplicados nas lavouras de soja destes municípios. Os impactos dessa quantidade já se refletem nos indicadores de saúde: em Belterra, nos últimos 20 anos, houve aumento de 600% nas mortes por doenças neurológicas e de 123% nos óbitos por câncer. Em Mojuí, onde não existem áreas de conservação ambiental que funcionem como barreiras, Figueiredo ressaltou que a população está ainda mais exposta.

O julgamento popular ressaltou que os agrotóxicos são parte de um modelo mais amplo de acumulação baseado na expropriação de territórios e na mercantilização da vida que conformam o que se compreende como agronegócio. A voz que anunciou a sentença popular foi de uma das vítimas diretas da contaminação por agrotóxicos: Auricélia Arapiun, do povo Arapiun, que leu a decisão coletiva exigindo reparação integral para as comunidades afetadas, incluindo monitoramento permanente da saúde das vítimas, tratamento médico de longo prazo, remediação ambiental custeada pelos poluidores e compensação pelos danos materiais e morais.

Enquanto isso, na Agrizone – a vitrine empresarial do agronegócio na COP 30 -,  cultiva-se a fantasia de uma agricultura “sustentável” pautada pelo capital.  Além de um insulto  à luta real dos povos por justiça socioambiental e por outro modelo de vida no campo, o protagonismo do Agro na COP evidencia os limites desse processo institucional e a perda da oportunidade histórica de se apresentarem respostas concretas e urgentes frente às múltiplas crises que vivemos.

O confronto entre a retórica empresarial de sustentabilidade do agronegócio e a realidade de destruição socioambiental que ele impõe torna-se cada vez mais evidente. Urge compreendermos que essa disputa não se limita a narrativas, mas traduz um embate civilizatório concreto entre a mercantilização da vida e a construção de um futuro justo e saudável. A resposta para uma transformação viável, sabemos, não virá do capital, e sim da organização popular, da solidariedade internacional e da afirmação de outro projeto civilizatório, enraizado na dignidade dos povos e no respeito aos limites da natureza.

*Artigo publicado originalmente em Jatobá • A revista socioambiental da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

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