Agrotóxico, o assunto ignorado pela reforma tributária

Substâncias foram categorizadas como “insumos agrícolas” e, com isso, receberão 60% de desconto em impostos

A inclusão dos agrotóxicos na taxação pelo IS foi defendida e encaminhada como recomendação para o governo pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). Imagem: O Joio e o Trigo

Por Flávia Schiochet
Do O Joio e o Trigo
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A regulamentação da nova reforma tributária ainda está em curso, aguardando avaliação pelas comissões do Senado, mas já se percebe que tanto Executivo quanto Legislativo têm desviado o olhar dos agrotóxicos quando se fala em taxação.

A proposta de regulamentação até agora prevê que os agrotóxicos, que gozam de descontos e isenções fiscais em cinco impostos no atual sistema tributário, terão 60% de desconto no Imposto de Valor Agregado (IVA). O IVA, introduzido pela reforma, unifica impostos municipais e federais em dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Para morder 60% dos tributos, os agrotóxicos estão categorizados como “insumos agropecuários”, considerados essenciais para a atividade agrícola. A categoria também lista bioinsumos, sementes, mudas de plantas, vacinas, soros e medicamentos veterinários – que, de fato, são fundamentais para a produção no campo.

A nova lei também trouxe uma terceira categoria de alíquota, o Imposto Seletivo (IS), para incidir sobre produtos danosos ao meio ambiente e à saúde. A serem taxadas pelo IS, até agora, estão produtos como bebidas açucaradas, carros à combustão e bebidas alcoólicas. Na prática, é um imposto extra, que tem como objetivo desestimular o consumo desses itens.

A inclusão dos agrotóxicos na taxação pelo IS foi defendida e encaminhada como recomendação para o governo pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), que também reforçou que os produtos não deveriam ter desconto fiscal; pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e pela Comissão de Direitos Humanos. A coalizão Reforma Tributária 3S – Saudável, Solidária e Sustentável –, formada por mais de 140 organizações da sociedade civil, também defendeu a inclusão das substâncias no Imposto Seletivo. Segundo pesquisa da ACT Promoção da Saúde, 94% da população brasileira apoia o tributo.

Mesmo assim, a proposta de regulamentação entregue em abril pelo Ministério da Fazenda não incluiu os agrotóxicos, e a Câmara dos Deputados também não o fez durante a votação do projeto de lei complementar.

“O governo ignorou essas recomendações, manteve a desoneração para agrotóxicos, não incluiu nenhum no Imposto Seletivo e também não apresentou uma justificativa da real mensuração dessas desonerações”, critica Leonardo Pillon, advogado do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec.

O Ministério da Fazenda foi procurado para explicar o porquê da manutenção de benefícios fiscais e de não ter sobretaxado os agrotóxicos. Por assessoria, o ministério informou que Bernard Appy, secretário responsável pela reforma tributária, estava de férias e não havia outro porta-voz para responder.

Na votação na Câmara dos Deputados, onde o projeto tramitou em regime de urgência no dia 10 de julho, a emenda apresentada pelo deputado Padre João (PT-MG) – que excluiria os agrotóxicos à base de bromometano, acefato e glifosato da categoria insumos agropecuários – foi ignorada.

O relator no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), declarou que vai alterar o texto substancialmente. Em nota publicada após o encaminhamento da pauta ao Senado, a coalizão Reforma Tributária 3S reforça que “a discussão sobre a inclusão dos agrotóxicos no imposto seletivo deve ser aprofundada, garantindo que a essência do imposto seletivo seja de fato respeitada”. A reavaliação das tarifas tributárias será feita a cada cinco anos a partir de 2026, quando finaliza o período de transição da lei. O projeto volta à Câmara antes da sanção presidencial, que pode alterar a matéria mais uma vez.

“Tem margem para insistirmos e expor a contradição diante da opinião pública. Mesmo tirando a questão humanitária e ética, isentar um produto que causa efeitos tão danosos à saúde pública é gastar duas vezes, porque depois se gasta no SUS para tratar as pessoas intoxicadas por agrotóxicos”, aponta Paulo Petersen, representante da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA) na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo).

Segundo uma projeção feita pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 2022 o governo deixou de arrecadar R$ 15 bilhões graças à renúncia fiscal sobre os agrotóxicos. Num momento em que a Fazenda busca equilibrar as contas públicas – e há pressão do mercado para cortes em políticas essenciais, como saúde e previdência –, fica a dúvida: quanto dessa decisão em não taxar os venenos na reforma tributária é medo e quanto é devoção à bancada ruralista?

Uma resposta pode estar nos dados do relatório do projeto Lobby na Comida, produzido pela Fiquem Sabendo (FS) em parceria com O Joio e O Trigo, que será lançado no dia 12 de agosto.

Por meio da ferramenta Agenda Transparente, desenvolvida pela FS, foi feito um levantamento das associações, empresas e lobistas que estiveram na Esplanada dos Ministérios entre 2018 e 2024.

Dez indústrias de agrotóxicos visitaram ministros dezenas de vezes nesse período: Bayer, Basf, Syngenta, Corteva, Sumitomo, Dow Brasil, Rhodia, Ourofino, Adama e Iharabras. Juntas, elas somam ao menos 205 reuniões, e a maior parte dos registros de participação tem mais de uma empresa junto da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) e o Ministério da Fazenda. As pautas, em sua maioria, foram descritas como “apresentação institucional”, “reunião com representantes da empresa”, sem detalhar o assunto tratado.

As visitas de associações de produtores e indústrias químicas foram ainda mais frequentes que as das empresas: só a Abiquim teve 122 compromissos junto ao Executivo. A CropLife, associação que reúne empresas de biotecnologia, agrotóxicos e bioinsumos, esteve em 37 ocasiões com autoridades do governo federal.

Considerando apenas o período de governo Lula, a partir de janeiro de 2023, a Fazenda recebeu representantes da indústria química e do agronegócio pelo menos 40 vezes. Em nove delas, as reuniões foram somente com a Abiquim.

A cronologia desses encontros se intercala com manifestações públicas da sociedade civil pedindo por uma revisão dos tributos sobre os agrotóxicos (veja linha do tempo ao final da reportagem) e mostra que a consideração do governo não foi a mesma com entidades de terceiro setor que combatem o uso dos agrotóxicos. O Greenpeace foi recebido 17 vezes, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, oito vezes, e a Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, apenas quatro.

Quem visitou o Ministério da Fazenda

Manfredo Rübens, CEO da Basf no Brasil, foi sete vezes à Esplanada. Em janeiro de 2023, enquanto a reforma tributária ainda era estudada pela Fazenda, Rübens esteve em uma reunião organizada pela Abiquim com o ministro da pasta, Fernando Haddad, junto de diretores de empresas e associações do setor químico e industrial para apresentar a agenda do setor. Estiveram presentes na reunião representantes da Rhodia, Unipar Carbocloro, Nitroquimica e Dow Brasil.

Em 4 de agosto de 2023, outro compromisso da Abiquim com Haddad, desta vez uma audiência com empresas e associações do setor químico e agronegócio, incluindo Rhodia Brasil, Indorama/Oxiteno, Dow Brasil, Unipar Carbocloro e Basf.

Na semana seguinte, no dia 10 de agosto, representantes do Ministério Público, gestores e ativistas defenderam, em audiência na Comissão de Direitos Humanos (CDH), que os agrotóxicos fossem mais tributados no projeto da reforma tributária.

Eduardo Leão, CEO da CropLife, esteve em 22 encontros, alguns exclusivos entre a entidade e o governo. Em 13 de dezembro de 2023, uma semana antes da reforma tributária ser sancionada, Leão esteve em reunião com Marcelo Pogliese, secretário-adjunto da Casa Civil, e membros da Frente Parlamentar da Agropecuária. Na descrição da pauta, apenas a informação “reunião governamental”, mesmo que a CropLife seja uma associação sem fins lucrativos que representa empresas privadas do setor químico e do agronegócio.

João Martins da Silva Júnior, presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) desde 2017, se encontrou com representantes da Fazenda e deputados nos dias 29 de novembro e em 12 de dezembro, período em que o projeto de reforma tributária tramitava na Câmara.

Em 28 de dezembro, a Bayer se reuniu com a Fazenda, uma semana após a sanção da reforma tributária e um dia após a sanção da nova lei de agrotóxicos. A pauta encontra-se em branco. No mês seguinte à entrega da proposta de regulamentação ao Congresso, em 16 de maio de 2024, a Fazenda se reuniu com associações do agronegócio para discutir a regulamentação da reforma tributária. Em 11 de junho de 2024, o presidente da CNA se reuniu com a Fazenda para tratar de “questões tributárias”.

Agro: campeão do veneno e da falácia

Desde 2011, o Brasil está no topo do ranking de países que mais usam pesticidas. Os dados, compilados anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), mostram que, em 2022, o Brasil usou mais agrotóxicos que os Estados Unidos e a China. As 800 mil toneladas de agrotóxicos usadas em solo brasileiro ultrapassaram largamente as 467 mil toneladas dos EUA. A China, com uma população sete vezes maior que a nossa, aplicou 224 mil toneladas naquele ano.

O agronegócio argumenta que, sem os descontos fiscais, a produção de alimentos diminuiria, aumentando o preço de itens essenciais. Mas o Brasil destina 84% dessas substâncias para o cultivo de seis commodities para exportação, especialmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão.

A comida vem de outros campos. Segundo o Censo Agropecuário 2017, é em 420 mil pequenas propriedades de agricultura familiar que se produz 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca, 46% do milho, 38% do café e 21% do trigo. Para estes agricultores, os agrotóxicos representam apenas 1,6% dos gastos totais que têm na produção.

Ou seja, há um malabarismo retórico do agro para defender os descontos em impostos quando mencionam a alimentação do brasileiro. E pior: não há como conferir o valor total da renúncia fiscal em compra, venda, importação e exportação de agrotóxicos porque falta transparência aos órgãos da Fazenda. O que se sabe são valores obtidos a partir de requisições pontuais, como a estimativa feita pela Abrasco apresentada acima.

“Não há interesse estratégico por parte do governo [de apresentar mensuração da renúncia fiscal]. Esse modelo do agro é uma armadilha fiscal e política. Ele gera superávit e, mesmo com os subsídios e isenções fiscais, continua gerando recurso pro país e governo. Isso cria uma dependência política, como nos votos no Congresso e coalizões político-partidárias e, além disso, o governo se torna dependente desse modelo para propor mudanças que alterem o cenário fiscal”, diz Marcelo Firpo, pesquisador da Fiocruz e membro do grupo de trabalho Saúde e Ambiente da Abrasco.

Firpo é um dos autores do estudo da Abrasco de 2020 que fez projeções sobre a renúncia fiscal dos agrotóxicos, junto de Wagner Soares e Lucas Cunha. Naquele ano, os pesquisadores conseguiram fazer uma projeção a partir de dados de 2017 do Censo Agropecuário, Secretaria de Comércio Exterior e Receita Federal e chegaram a um valor de R$ 10 bilhões.

O relatório foi produzido para apresentar ao Supremo Tribunal Federal durante julgamento da ADI 5.553, que questiona a constitucionalidade dos benefícios fiscais dados às substâncias. O processo foi retomado em 2023 e, em junho de 2024, os ministros solicitaram aos órgãos responsáveis pela arrecadação de impostos nos níveis federal, estadual e municipal dados sobre essa renúncia. Ao final do ano, quando termina o prazo dado pelo Supremo, será possível saber (ou pelo menos ter uma ideia mais concreta) do valor real das isenções.

Governo sempre deu canja aos agrotóxicos

O incentivo ao uso de agrotóxicos no Brasil tem quase 60 anos: em 1965, o Sistema Nacional de Crédito Rural condicionava a concessão de crédito aos agricultores se eles destinassem 15% do valor à compra de insumos agrícolas, onde se encaixam inseticidas, herbicidas e fungicidas. O resultado: em 1976, 85% do total de agrotóxicos vendidos no Brasil haviam sido comprados via crédito rural.

Faz tempo, portanto, que o governo abre mão da arrecadação. Mesmo após os primeiros estudos científicos indicando os malefícios à saúde e ao meio ambiente causados pelas substâncias, publicados nos anos 1970, o Brasil não fez esforço para a redução de seu uso. Pelo contrário: incentivos fiscais permaneceram firmes e fortes. Em 1997, os agrotóxicos passaram a ter desconto de 60% no Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), e não precisam pagar o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) desde 2011.

Data dos anos 1970 as primeiras regulações de agrotóxicos no mundo. Foi nessa década que surgiram as evidências científicas que relacionam o uso de organoclorados ao câncer nos Estados Unidos. É também nesse período que o lobby das indústrias químicas e do agronegócio começa a aparecer com mais força. Por lá, o Departamento de Agricultura desempenhava também a função de regular os agrotóxicos. Isso mudou em 1972, quando o governo americano criou a Environmental Protection Agency (EPA), que assumiu as competências regulatórias.

No Brasil, a primeira regulação dos agrotóxicos veio em 1989 e, agora, foi substituída pela nova lei de agrotóxicos – que ficou conhecida como Pacote do Veneno. A aprovação, inclusive, foi sancionada uma semana depois da reforma tributária, em dezembro de 2023. É (mais) uma canja dada aos agrotóxicos, um aperto de mão duplo dado pelo governo a ruralistas e às indústrias químicas.

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