Por Cida de Oliveira l Blog do Pędłowski – publicado em 23 de agosto de 2025.

Passou quase despercebida a prorrogação, em julho, do convênio que desde 1997 garante aos fabricantes de agrotóxicos isenção ou descontos de 60% no ICMS. Principal fonte de recursos dos estados, o imposto incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. A renovação garante ao setor a continuidade de lucros exorbitantes em todo o Brasil até 31 de dezembro de 2027, quando a mamata tributária completará 30 anos. É difícil calcular a perda de arrecadação dos estados brasileiros em todo esse tempo, mas dá para ter uma ideia. Um estudo do grupo de pesquisa em justiça ambiental, alimentos, saberes e sustentabilidade da Universidade do Vale do Taquari (RS), calculou soma da renúncia de todos os estado e Distrito Federal 2017. E atualizou para valores de 2023 com base no IPCA, encontrando perda de R$ 7,05 bilhões.
Em novembro do ano passado, o lobby do veneno agradeceu ao governador de São Paulo, o bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) por se antecipar em defesa da manutenção do convênio e pedir ao legislativo paulista providências nesse sentido. Foi mais uma ação generosa do gestor aliado ao agro e defensor da manutenção dos privilégios dos seus barões.
Um dos 26 estados, incluindo o Distrito Federal, que isentaram os agrotóxicos de recolher o imposto em operações internas, além da redução de 60% na alíquota de 18% nas operações interestaduais, SP ocupa o segundo estado no ranking do consumo nacional de agrotóxicos. Faz a festa das fábricas, que venderam 98,2 milhões de toneladas desses produtos em 2023, conforme relatório do Ibama. Perdeu apenas para o Mato Grosso, com 165,6 milhões. Com tanto agrotóxico comprado para despejar sobre lavouras de cana, soja e outras, não chega a causar surpresa a presença de 14 tipos deles na chuva em cidades do interior e da capital. A constatação veio de pesquisa da Unicamp divulgada em março, em uma publicação científica estrangeira. Entre os venenos encontrados estava a atrazina, proibida em diversos países justamente devido aos seus efeitos altamente tóxicos.
Pelas contas da equipe econômica de Tarcísio, a perda paulista com agrotóxicos estará próxima dos R$ 2 bilhões no ano que vem. Mais precisamente R$ 1,93 bi, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias 2026, aprovada em 1º de julho. Desse total, R$ 1,81 bi vem da redução de 60% na base de cálculo. E R$ 121,8 milhões da isenção total do imposto. O total da renúncia com os agrotóxicos está próximo dos R$ 2 bilhões que Tarcísio repassou em junho último à área da saúde dos 645 municípios paulistas desde que tomou posse, em janeiro de 2023. Entre os quais certamente muitos carentes de recursos para tratar intoxicações e doenças causadas por esses produtos à sua população.
Benefícios a perder de vista
Mas há também previsão de perdas com outros setores do agro que elegeu Tarcísio. A lei prevê mais R$ 1,13 milhão para o setor que inclui agricultura e pecuária”. E ainda R$ 902,5 milhões para “agricultura, pecuária e serviços relacionados”. Com isso o estado fica sem arrecadar R$ 3,92 bilhões. Um montante três vezes maior que o R$ 1,3 bi que o mesmo governo repassou neste ano a 145 instituições conveniadas ao SUS na região Metropolitana de São Paulo.
Enquanto fabricantes como Syngenta, Bayer, Basf e outras fazem a festa nos estados, para desespero de muitos governadores, o da Califórnia aprovou mudanças significativas nas leis que afetam essas indústrias, com aumento na alíquota sobre a venda de agrotóxicos e prazos para a reavaliação. E também reforçar a regulamentação dos produtos, programas de segurança e melhorar a eficiência e a transparência do processo de registro.
O ralo de recursos públicos não se limita a isenções e redução de alíquotas do ICMS. Os fabricantes de agrotóxicos se beneficiam também das isenções em impostos e contribuições federais, que foram sendo concedidas a partir da década de 1990: o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto de Importação (II), Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e as Contribuição Social dos Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). A alíquota zero dessas contribuições, aliás, impediram os cofres públicos de arrecadar R$ 8,9 bilhões de 2010 a 2017, conforme um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). Segundo dados divulgados pela Receita Federal com base em informações declaradas pelas empresas sobre créditos tributários decorrentes de benefícios fiscais, de janeiro a agosto de 2024 os agrotóxicos deixaram de pagar mais de R$ 10,7 bilhões em impostos federais. A Syngenta deixou de recolher R$ 4 bilhões, a Bayer R$ 2,11 bilhões e a Basf, R$ 1,87 bi.
Introduzidos a partir da década de 1990, os incentivos fiscais a esses produtos foram sendo ampliados nos anos seguintes. Inclusive nos governos progressistas, com o mesmo argumento dos fabricantes. Ou seja, de que contribuiriam para tornar os alimentos mais baratos. A falácia, aliás, tenta endossar outra balela do setor: o princípio da seletividade e da essencialidade tributária que justificariam todas essas isenções e benefícios.
Distorções
No entanto, a assessora jurídica da organização Terra de Direitos, Jaqueline Andrade, disse ao Blog do Pedlowski que há, na verdade, uma distorção. “São classificados como produtos essenciais, apesar de serem cientificamente e comprovadamente danosos à saúde e ao meio ambiente”, afirma. “Essa classificação é política, tanto que privilegia determinadas parcelas de grupos econômicos e produtivos do país. Especialmente setores do agronegócio extensivo, com um altíssimo custo à coletividade e à população brasileira, ao patrimônio e ao erário público.”
Como exemplo, ela menciona resultado de estudo dos pesquisadores Marcelo Firpo Porto, da Fiocruz, e Wagner Soares, do IBGE, sobre os impactos negativos à economia da saúde: para cada US$ 1 gasto na compra de agrotóxicos, é gerado um custo de até US$ 1,28 com o tratamento apenas das intoxicações agudas causadas por agrotóxicos.
A organização é amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, que tramita desde 2016 no Supremo Tribunal Federal (STF). Apresentada pelo Partido Solidariedade e Liberdade (Psol), a petição questiona a legalidade de pontos do convênio ICMS 100/97 e da legislação do IPI ao beneficiar agrotóxicos. Segundo a advogada, os argumentos para a criação e renovação do convênio já se provaram insustentáveis e falsos. “O censo agropecuário de 2017 mostra que as pequenas propriedades, de até 100 hectares, as maiores em número no Brasil, cultivadas majoritariamente pela agricultura familiar, afirmam gastar até 4,9% das despesas de produção com agrotóxicos. Por outro lado, as grandes propriedades, com mais de 500 hectares, que representam menos propriedades no Brasil, afirmam gastar mais com agrotóxicos”, ponderou.
Comida, commodities e golpismo
O fato de o Brasil ter 71,2 milhões de hectares plantados, dos quais a soja representa 42%, o milho, 21% e a cana, 13%, conforme estudos da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), é outro aspecto para o qual Jaqueline chama atenção. “Juntos, estes três cultivos representaram 76% de toda a área plantada do Brasil e foram os que mais consumiram agrotóxicos, correspondendo a 82% de todo o consumo do país em 2015. Paralelamente são as culturas majoritariamente exportadas. Assim, o uso intensivo de agrotóxicos é direcionado para a produção de commodities, não de alimentos”, ressalta.
Em contraposição, como lembra, a produção de alimentos é a menor dependente desses produtos. “O Censo Agropecuário de 2017 mostra que a maioria dos alimentos vem da agricultura familiar. São estes estabelecimentos da agricultura familiar que produzem 69,6% do feijão, 83% da mandioca, 45,6% do milho em grão, 21% do trigo e 38% do café, os quais permanecem no mercado brasileiro para consumo interno da população brasileira. Assim, a tributação dos agrotóxicos impacta quase que de forma insignificante na produção massiva de alimentos no país e no repasse ao consumidor. Impactará grandes proprietários rurais que destinam a produção para exportação e que já são beneficiados por outros incentivos e benefícios no sistema tributário nacional, como é o caso das desonerações para exportações e do financiamento por bancos públicos. É uma escolha que premia poucos, mas impacta muitos.”

Aplicação de agrotóxicos em lavoura de cana, principal cultura do Estado de SP. Foto: Reprodução YouTube
Para além da questão agrícola, a advogada considera os aspectos políticos e ideológicos dos beneficiados pelas isenções aos setores do agronegócio. No caso, a estreita ligação do setor com os financiadores da logística dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. “A relatora Eliziane Gama apontou, por exemplo, o sojicultor Argino Bedin e a Aprosoja — que teve R$ 20 milhões bloqueados — como financiadores de caravanas de caminhões e protestos em Brasília”, lembrou. “Delações, como a de Mauro Cid, também confirmaram que o general Braga Netto buscou recursos junto ao ‘pessoal do agro’ para viabilizar a tentativa de golpe, no custeio de transporte, alimentação e estrutura de acampamentos. Nos resta então perguntar: por que o estado brasileiro beneficiar o agronegócio, ao passo que esse recurso é o mesmo utilizado para a articulação e execução de ações antidemocráticas?”
Justiça social tributária
Advogada e membro do coletivo jurídico Zé Maria do Tomé e da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares, Geovana Patrício acompanha de perto a tramitação da ADI 5.553. Para ela trata-se de uma ação que busca efetivar o princípio da capacidade contributiva e justiça social tributária, segundo a qual quem tem maior capacidade econômica, paga mais. Ou, no caso, paga a tributação regular, tanto que o provimento da ação sequer implica em sobretaxação aos agrotóxicos.
O relator, ministro Edson Fachin, havia marcado julgamento para junho. Mas o cenário inicial não era bom, segundo Geovana Patrício. “Tinha o voto favorável do relator pela procedência, Carmen Lúcia acompanhou, o ministro Gilmar Mendes abriu divergência, pela total improcedência da ação. E foi acompanhado pelo Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes”, lembrou. “André Mendonça abriu uma segunda divergência, reconhecendo, de maneira parcial, a inconstitucionalidade da isenção fiscal. E determinou que União e estados avaliem o benefício e apresentem estudos que justifiquem a continuidade da política. Na opinião dele, os agrotóxicos são danosos e é necessária uma taxação conforme o nível de toxicidade”.
De acordo com a advogada, os assessores jurídicos que assinam a petição do Psol solicitaram a realização de uma audiência pública para aprofundar o debate, o que ocorreu em novembro. (Clique aqui e aqui para conferir a íntegra). O Ministério da Saúde e do Meio Ambiente se manifestaram pela procedência da ação, ao contrário da Agricultura. O que falta, segundo Geovana, é o relator marcar novo julgamento, muito embora o governo federal ainda não tenha apresentado os dados solicitados.
Argumentos e reforma tributária
“A nossa expectativa é que o voto do relator Fachin seja seguido diante de todos os argumentos que foram apresentados em audiência. E que a isenção seja considerada inconstitucional, até porque vai ter um novo debate ano que vem, quando entra em vigor a reforma tributária que colocou na Constituição a redução da alíquota em 60%. A gente considera que isso não é compatível com os preceitos constitucionais. Penso que o relator está avaliando como vai ficar essa questão”.
Em janeiro de 2026 terá início a transição do sistema tributário com vistas à implementação escalonada da reforma, que deverá ser concluída em 2033. Até lá, impostos estaduais, municipais e federais (ICMS,ISS, PIS, COFINS e IPI) deverão ser substituídos pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e o IS (Imposto Seletivo), com incidência sobre produtos considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. É o caso de cigarros, bebidas alcoólicas e os agrotóxicos. Entretanto, foram novamente agraciados. Vão gozar da redução de 60% na alíquota do IBS. E enquanto isso o governo sanciona, com 11 anos de atraso, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. Parece piada.