Por Roberta Quintino l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Cantos, rezos e fios de algodão entrelaçados à luta em defesa do território e da saúde marcaram a passagem da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida pelo Médio Jequitinhonha, em Minas Gerais. Durante três dias, uma jornada de trocas, escutas e formações uniu comunidades quilombolas, fiandeiras, agentes de saúde e grupos de mulheres para discutir os impactos do agromineronegócio e fortalecer estratégias de vigilância popular em saúde.
A atividade, organizada pela Associação Tingui, que atua na defesa dos modos de vida e da produção tradicional no território, aconteceu entre os dias 21 e 23 de maio, nos municípios de Chapada do Norte e Francisco Badaró. Em meio ao avanço do agronegócio e da mineração, com o monocultivo de eucalipto e o crescimento do algodão transgênico, as comunidades locais têm resistido com saberes ancestrais, como o fiar do algodão e práticas agroecológicas.
A primeira atividade do circuito aconteceu na comunidade quilombola de Poções, às margens do rio Araçuaí, reunindo cerca de 50 pessoas. A formação teve como foco a apresentação da Campanha, abordar os impactos dos agrotóxicos e debater a construção coletiva de estratégias de enfrentamento aos venenos por meio da vigilância popular em saúde.
Segundo Fran Paula, da coordenação nacional da Campanha e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), os agrotóxicos têm origem na indústria da guerra e foram usados como armas químicas. “Esses produtos foram criados inicialmente como forma de ‘proteger’ os soldados e como arma química como aconteceu com o Agente Laranja na Guerra do Vietnã. Depois da guerra, essa indústria precisou continuar lucrando e passou a direcionar essas substâncias para a agricultura”, explicou.

Ela alertou ainda para os graves efeitos à saúde humana e ao meio ambiente. “São substâncias que causam doenças neurológicas, infertilidade, abortos, má formação fetal, cânceres, aumento do autismo e muitas vezes são usadas de forma irregular, contaminando solo, água e comunidades inteiras.”
Durante a atividade, moradores e moradoras realizaram um diagnóstico coletivo da realidade local, na qual foi identificado que o uso de agrotóxicos tem provocado graves consequências à saúde da população. Os relatos apontam para o aumento de casos de ansiedade, depressão, abortos espontâneos, autismo, doenças respiratórias, alergias e, principalmente, câncer.
A comunidade também identificou o avanço de tecnologias como o uso de drones na pulverização das lavouras, prática que tem ampliado o alcance dos venenos, contribuindo para a contaminação ambiental, o desmatamento e outras formas de violação dos territórios.
Outro ponto levantado foi a desinformação sobre os agrotóxicos. Apesar das informações divulgadas por empresas e agentes ligados ao agronegócio de serem mecanismos para o “desenvolvimento”, a realidade nas comunidades tem sido de aumento da mortalidade de abelhas, má formação fetal em animais, puberdade precoce em crianças, surgimento de pragas antes inexistentes e até o desaparecimento dos peixes, o que compromete diretamente a segurança alimentar e a biodiversidade local.

Diante desse cenário, os participantes da atividade apontaram caminhos para o enfrentamento, principalmente, da invasão de sementes transgênicas e dos venenos na região. Entre as estratégias de vigilância popular sugeridas estão o fortalecimento dos debates e das formações sobre os impactos dos agrotóxicos, especialmente com a participação de agentes públicos, a ampliação das mobilizações e a produção de materiais didáticos, como folders e panfletos.
Também foi destacada a importância de inserir o tema nas escolas e universidades, além de pautar o debate nas prefeituras e câmaras municipais. A articulação entre as próprias comunidades para frear a ameaça dos pacotes “tecnológicos” do agronegócio frente aos sistemas agrícolas tradicionais e a agricultura agroecológica já existente na região foi apontada como um passo essencial na construção de um território livre de venenos.
O avanço dos transgênicos
Um dos temas que mais foram discutidos foi a expansão do algodão transgênico na região, muitas vezes introduzido com promessas de produtividade, mas que vem acompanhado do uso de agrotóxicos. No Brasil, a aprovação do primeiro algodão transgênico feita pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), aconteceu no ano de 2005. Atualmente, mais de 80% do total da produção de algodão no país é feito com sementes transgênicas.
Nota divulgada pela Abrasco destaca que no Brasil, a partir do plantio de transgênicos, o consumo de tóxicos agrícolas aumentou mais de 200% e segue aumentando aproximadamente 15% ao ano. “O Brasil transformou-se no maior consumidor de agrotóxico do mundo desde 2008, usando mais de 850 milhões de litros anuais, equivalente a 20% da produção mundial destes. O índice de consumo médio de agrotóxico no Brasil é de 5,2kg de ingrediente ativo por hectare, o que, junto com Argentina, se colocam entre as médias mais altas do mundo”.
O documento aponta ainda que os que mais se beneficiam com os cultivos transgênicos são as transnacionais que controlam 100% das sementes transgênicas em nível global. “As maiores corporações de produção de químicos controlam 76% do mercado mundial de agrotóxicos e 60% do mercado mundial de todo tipo de sementes. Além disso, 75% de toda a pesquisa privada sobre cultivos. Nunca antes na história da alimentação havia ocorrido tal grau de concentração corporativa em um setor essencial para a sobrevivência. Esta configuração também explica que os transgênicos signifiquem um enorme aumento do uso de agrotóxicos, já que é onde eles obtém seus grandes lucros: o mercado de venda de agrotóxicos é muito maior que o de venda de sementes”.
Vigilância em saúde
O circuito seguiu para o município de Francisco Badaró, onde a formação reuniu agentes comunitários de saúde de diferentes comunidades. A proposta foi orientar sobre os sintomas de intoxicação por agrotóxicos e fortalecer a notificação dos casos, que sofrem com altíssima subnotificação.

“A Organização Mundial da Saúde estima que, para cada caso registrado, existem 50 que não são notificados. Isso é um problema de saúde pública que impede a construção de políticas eficazes”, alertou Fran.
A formação incluiu um debate sobre as responsabilidades do Estado e das empresas químicas. Fran denunciou ainda a atuação das multinacionais no Brasil. “Infelizmente, quase 60% dos agrotóxicos liberados aqui são proibidos em outros países. O Brasil virou uma lixeira tóxica. O paraquate, por exemplo, já foi banido na Europa e nos Estados Unidos. Aqui, continua sendo usado no milho. Isso é uma violação dos nossos direitos.” Para ela é uma medida cruel, que esconde os interesses financeiros da indústria e o lobby que pressiona o Congresso Nacional para manter a lógica de importação e flexibilização das leis.
Encontro de Fiandeiras
Encerrando a jornada de formação, a Campanha participou do Encontro de Fiandeiras do Médio Jequitinhonha, na comunidade quilombola de Tocoiós, distrito do município de Francisco Badaró. Mais de 150 fiandeiras se reuniram para fiar, cantar e trocar experiências. Muitas histórias foram compartilhadas sobre a importância do algodão na cultura e na economia local.
De modo geral, elas contam que com o passar do tempo, a produção do algodão foi diminuindo. Antigamente, quase tudo era feito com algodão: roupas, redes, pavios, cordões e utensílios do dia a dia. Mas a migração de moradores, as mudanças climáticas e a chegada das sementes transgênicas e agrotóxicos provocaram uma queda drástica no cultivo do algodão nativo.

As fiandeiras relatam que o algodão transgênico, cultivado com veneno, trouxe problemas de saúde para quem plantava e quem tecia: alergias, coceiras, dores de cabeça, tonturas e problemas respiratórios afetavam principalmente as mulheres que lidavam com os fios.
Com o tempo, no entanto, iniciou-se um movimento de resgate das sementes crioulas e do plantio agroecológico. Hoje, o trabalho com o algodão orgânico vem sendo retomado com força, preservando saberes tradicionais, fortalecendo a economia local e cuidando da saúde das comunidades.
“Olha, na minha infância não se usava veneno. E depois de um tempo, veio uma nova semente, falando que era mais produtiva. Mas junto da semente, vinha o veneno da semente. E também, no plantio de algodão, eles mostravam que, para ficar uma produção boa, tem que colocar veneno para acabar com as lagartas. E o que aconteceu? Esse veneno, ele arrasou o solo. E aí, vem trazendo essa coisa ruim, tanto com o solo, e também atingindo a saúde da mulher”, contou Dona Mila, tecelã, tingideira e fiandeira da região.
Ela ressalta que, com o incentivo da Tingui, estão resgatando o plantio sem veneno, com sementes crioulas, “cuidando do solo e da nossa saúde. Hoje, nós estamos resgatando o mesmo de antigamente”.
De acordo com Pedro Marques, da Associação Tingui, a retomada do cultivo do algodão herbáceo no Vale representa um passo importante para a manutenção e valorização das práticas agroecológicas.

“A gente está sentindo esse gostinho de voltar a produzir a matéria-prima aqui mesmo, de acompanhar de perto o plantio desse algodão com os agricultores e agricultoras da região. É uma variedade potente, com demanda interna garantida, que não precisa ser exportada nem levada para longe. Ela tem um ciclo produtivo completo, de ponta a ponta, que é algo muito específico e valioso aqui no Vale, e que vai se fortalecer”, afirma.
Pedro destaca que, mesmo diante dos desafios, como as mudanças climáticas, a escassez de chuva e a necessidade de adaptar os sistemas produtivos, há um processo contínuo de aprendizado. “A agroecologia ensina muito pra gente. As mulheres e os homens que plantam nesse território também ensinam. A gente sabe que lidar com o algodão convencional, cheio de veneno, traz muitos malefícios à saúde e ao ambiente. Por isso, nosso caminho é outro.”
Segundo ele, os agricultores e agricultoras que apostam no algodão livre de agrotóxicos, estão focados em práticas mais cuidadosas, conscientes e sustentáveis. “A gente vibra com a possibilidade de colher esse algodão aqui no território, plantado de forma limpa, que vai se transformar num produto final não só mais saudável, mas muito mais aconchegante, muito mais conectado com a realidade local”, completa.
Resistência em rede
Para a Campanha Contra os Agrotóxicos, a passagem pelo Vale do Jequitinhonha reafirma a importância de atuar de forma enraizada nos territórios, valorizando os saberes locais e fortalecendo a vigilância popular em saúde como instrumento de denúncia, cuidado e mobilização.

“Se o Brasil é o país que mais usa agrotóxicos no mundo, mais de um milhão de toneladas só em 2023, somos também a população mais exposta. É por isso que a Campanha existe, para alertar, formar e fortalecer quem já resiste nos territórios”, reforçou Fran.
Ela destacou ainda que diante de tantos enfrentamentos e violações por agrotóxicos, o território mostra a importância da coletividade na proteção da saúde e do meio ambiente
“Encontrar esse trabalho tão bonito e tão importante de mulheres que se colocam aí no enfrentamento de toda essa violação de saúde e promovendo vida através da criação do algodão, através da defesa do meio ambiente. A gente sabe que cada fio que sai dessas rodas de fiar e teares e das mãos dessas mulheres são importantes para a promoção da saúde, da alimentação saudável, da defesa e da proteção das águas e dos rios, concluiu”