Por Nicoly Ambrosio l Amazônia Real – publicado em 15 de abril de 2024.
O uso indiscriminado de agrotóxicos pelo agronegócio avança em comunidades tradicionais no Maranhão e causa severos danos à saúde da população, além de prejudicar plantações, animais e as águas de rios, córregos e poços. A pulverização aérea e terrestre de veneno por empresas agrícolas e fazendeiros transforma o campo maranhense em um cenário de guerra química. O problema, denunciado por organizações e lideranças rurais, está mais grave a cada ano.
A Amazônia Real teve acesso a um levantamento preliminar de comunidades atingidas pela atividade irregular entre janeiro e abril deste ano. Segundo o documento, elaborado pela Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama) e pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), 39 comunidades em 15 municípios sofrem impactos socioambientais causados pelo lançamento de agrotóxicos.
A prática causa uma série de problemas de saúde nos trabalhadores e trabalhadoras, incluindo feridas, queimaduras, coceiras, tontura, dor de cabeça, falta de ar, lesões nos olhos, vômito e fadiga. Além disso, há o adoecimento psicológico. O despejo de veneno nas comunidades gera medo e ansiedade.
A reportagem recebeu relatos de pessoas que sentem os sintomas da intoxicação, mas preferem ficar no anonimato por terem medo de represálias violentas.
“Ficamos com coceira, dor de cabeça. Quando jogam veneno o cheiro vem aqui e causa tosse, diarreia. O avião passa aqui na comunidade, faz a curva”, conta uma das pessoas afetadas.
De acordo com o advogado popular Diogo Cabral, da Fetaema, a prática resulta em conflito agrário e é usada como forma de retirar os trabalhadores de seus territórios. “O agro usa muitos agrotóxicos e a forma de pulverização aérea e terrestre acaba por atingir pessoas, plantações, rios e lagos. É uma guerra química que visa a expulsão das comunidades de seus territórios”, denuncia.
Entre fevereiro e março deste ano foram identificadas pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão (CEDDH), pela Fetaema, pela Rama e pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Timbiras (STTR) diversas comunidades banhadas pelo veneno que cai dos aviões e drones usados pelo agronegócio.
Em fevereiro, moradores de Pedro do Rosário afirmaram que peixes morreram em igarapés e lagos da cidade após serem atingidos pela pulverização. Eles informaram que foram usados drones para borrifar veneno sobre uma plantação de milho de uma grande fazenda, que começa na BR-316 e corta vários povoados rurais.
No povoado Araçá, em Buriti, foi registrada uma grande mortandade de peixes entre os dias 18 e 21 de março. Os lavradores atribuem o fato ao lançamento indiscriminado de agrotóxico sobre plantios de soja que tomam conta da região.
No dia 21 de março, em Timbiras, no leste do Maranhão, as comunidades afetadas foram São José, Baixa Nova, Morada Nova, Buriti, Capinal, Santa Vitória, Passa Mal e Maresia. Em Codó, foram afetadas as comunidades de São Paulo, Axixá, Poraquê, Santa Joana, Raposa, Boqueirão dos Vieiras e São Benedito dos Colocados, território quilombola.
Os moradores relataram a presença de aviões do Grupo Agrícola Macedo, que em um intervalo de menos de 20 dias teria despejado veneno nas roças e moradias, além de jogar agrotóxico nas margens do rio Saco. A contaminação da água e dos peixes afeta a soberania alimentar dessas populações. “As famílias sequer foram atendidas pela rede pública de saúde”, afirma Diogo Cabral.
Também em março, as comunidades tradicionais de São Bento, Patrimônio, Centro do Canuto, Cipó, Baixo da Palmeira, São Dominguinho e Nazaré, localizadas entre os municípios de Fortuna e Governador Eugênio Barros, foram atingidas por agrotóxico lançado por avião. Já no dia 6 de abril, em São Benedito do Rio Preto, um avião lançou agrotóxico sobre a comunidade tradicional Piçarra.
O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão conduziu uma inspeção in loco nas comunidades e constatou a veracidade das denúncias. Outras organizações participaram da ação, incluindo a Associação Comunitária de Educação em Saúde e Agricultura (ACESA), a Comissão Pastoral da Terra (CPT/Maranhão), o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e a Articulação Agro É Fogo. As secretarias municipais de Agricultura, Assistência Social e Saúde de Timbiras também estiveram presentes.
Vídeos e fotografias de moradores denunciando os impactos socioambientais foram enviados às organizações como a Rama, a Fetaema e o STTR de Timbiras. De acordo com denúncias dos trabalhadores rurais, há três anos ocorre a pulverização aérea por agrotóxico sobre as comunidades.
As denúncias já foram enviadas para o Conselho Estadual de Direitos Humanos, que as encaminhou para o Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE/MA), Secretaria de Estado de Saúde (SES) e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop).
Segundo Ariana Gomes, secretária da Rama, foram encaminhados ofícios a órgãos de Justiça e de Estado. Há a reivindicação para que o governo federal, o governo do Maranhão e a Prefeitura de Timbiras doem com urgência cestas básicas e água potável por um período que supra as necessidades alimentares das famílias afetadas. São pessoas que perderam a produção agrícola destinada à subsistência O poder público é cobrado também para que promova ações em defesa dos direitos humanos.
Não é um caso isoladohttps://www.youtube.com/embed/dVrzS_8ocnw
Segundo Edimilson Costa, agricultor, educador popular e secretário agrário da Fetaema, as pulverizações das últimas semanas não são um caso isolado. “Os casos de pulverização aérea de agrotóxicos sobre comunidades tradicionais, sobre os rios, sobre as plantações dos trabalhadores rurais, sobre as suas moradias e suas escolas são rotineiros. É uma situação que está acontecendo em todo o estado do Maranhão”.
No município de Buriti, em 2021, os moradores de dois povoados denunciaram que um dos aviões de um produtor de soja despejou agrotóxico por três dias seguidos em uma comunidade, o que teria provocado intoxicação em pelo menos nove pessoas. Os camponeses também relataram sintomas de vômito, diarreia e febre. Ninguém procurou atendimento médico por medo da pandemia da Covid-19.
Na época, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema) chegou a multar o produtor Gabriel Introvini em R$ 273 mil por “atividade potencialmente poluente, pulverização na lavoura com uso de aeronave, sem licença da autoridade competente”. A defesa do empresário afirma que ele possui licença para pulverização aérea.
“Em relação às autoridades, a gente percebe a morosidade no processo de resolução desses conflitos. Não tem nenhuma movimentação por parte do governo do Estado para tentar coibir essas ações criminosas de pulverização área de agrotóxicos”, enfatiza Costa.
Arma química
Dados de conflitos no campo em 2022, elaborados pela CPT, evidenciam o uso de agrotóxicos como arma química e o aumento de casos de contaminação. De 2020 para 2021 o número de casos passou de dois para 71. Em 2022 o número chegou a 193 pessoas contaminadas por agrotóxicos, um crescimento de 171,85%. O número de famílias atingidas por essa forma de violência em 2022 também aumentou: 6.831 famílias foram atingidas pela aplicação de veneno, 86% a mais que em 2021 e o maior número registrado pela CPT desde 2010, quando essa questão passou a ser apurada pela organização.
No primeiro semestre de 2023, a CPT divulgou dados que apontam o aumento da violência contra as pessoas no campo. A quantidade de vítimas passou de 418, no 1º semestre de 2022, para 779 no mesmo período de 2023. Os danos causados pela contaminação por agrotóxicos chegam a 327 casos documentados.
Procurada pela Amazônia Real, a Procuradoria da República no Maranhão informou que não houve formalização de nenhuma denúncia referente ao Grupo Macedo. “Em caso de recebimento de denúncia, o MPF apura os fatos com rigor, requisitando, se necessário, que a Polícia Federal instaure inquérito”, diz o órgão.
Sobre outros casos de pulverização de agrotóxico nas zonas rurais do Maranhão, o MPF reforça que atua em “todas as frentes em relação aos problemas de pulverização na região leste do estado em outros casos em andamento”.
A Sedihpop informou por e-mail que tomou conhecimento dos conflitos a partir de denúncia formalizada e da atuação da Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV).
“Desde então, já estabeleceu uma articulação com diversos órgãos para garantir atendimento às comunidades dos municípios atingidos. Junto à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedes) fez encaminhamentos para que a pasta possa disponibilizar alimentos, cestas básicas, água tratada e água potável. A Sedes já deu início ao processo interno para atender as comunidades mencionadas”, afirmou o órgão.
A Secretaria de Estado de Saúde afirmou que contatou as secretarias municipais de Saúde das cidades de Timbiras e Codó, que disponibilizaram três equipes de atendimento à população atingida.
Complementou informando que aguarda o parecer desses atendimentos e que programou para o dia 22 de abril o envio da equipe completa da Força Estadual de Saúde para dar suporte aos atendimentos necessários nas comunidades.
A Defensoria Pública do Estado do Maranhão não retornou o contato.
O Grupo Macedo, procurado para se posicionar sobre as denúncias dos moradores das comunidades tradicionais de Timbiras e Codó, também não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta reportagem.
Plantações, águas e animais são atingidos
No levantamento feito pelo STTR Timbiras, os(as) agricultores(as) tiveram uma perda entre 50 e 70% da produção agrícola do ano de 2024. Árvores frutíferas, babaçuais e igarapés também foram atingidos pela pulverização de veneno.
De acordo com um levantamento realizado pelo STTR de Timbiras, os agricultores familiares perderam entre 50% e 70% da sua produção agrícola neste ano, ocasionando um estado de insegurança alimentar para cerca de 150 famílias.
Sem ajuda do poder público, as famílias passam por intensas necessidades. Arroz, milho, mandioca, maxixe, quiabo, coco, melancia estão entre os alimentos descartados. O veneno queimou as folhas das plantas, ocasionou danos severos na raiz da mandioca e os quiabeiros murcharam.
“Hoje a gente sequer pode tirar uma cebola do canteiro para botar na comida, porque a gente não tem coragem de temperar com ela. Quando a gente chega lá e vê as coisas [verduras, legumes, frutas] todas murchas, a gente não tira”, revela uma trabalhadora.
Outra vítima perdeu uma encomenda de 150 melancias que iria vender durante o feriado da Semana Santa, no fim de março. “Eu ia vender em Timbiras e o agrotóxico acabou com tudo”.
Além disso, há relatos da contaminação de poços, riachos e igarapés afetados pela pulverização de agrotóxicos, o que dificulta o acesso à água e causa prejuízos financeiros para as famílias.
“A gente tem uma água de um riacho que nunca secou, um riacho onde a gente se banhava. Hoje a gente não tem coragem de banhar no riacho, porque a gente chega lá e a água tem uma nata, ela fica grossa”, relata uma trabalhadora.
Edimilson Costa explica que a Fetaema também constatou a morte de peixes, galinhas e de animais domésticos. “Os cachorros têm morrido bastante devido às grandes chuvas, porque as enchentes saem das grandes lavouras do agronegócio e adentram os rios e lagos dos igarapés, fazendo esse processo de poluição e matando esses peixes e animais”.
“Até a galinha que a gente cria está sendo envenenada pelo agrotóxico, a nossa agricultura está de péssima qualidade. Não produzimos mais nada. O veneno vem do ar, a gente planta mandioca, melancia e não produz, porque o veneno vem e mata. Nós queremos ajuda do governo federal”, diz um trabalhador.
Em relação à denúncia de contaminação da água e dos igarapés, a Sema informou à reportagem que nesta segunda-feira (15) enviará uma equipe da Fiscalização e Laboratório de Análises Ambientais para a realização de análises, o que auxiliará na apuração da denúncia de pulverização irregular de agrotóxicos.
Omissão das autoridades
Apesar da gravidade das situações que envolvem o lançamento de agrotóxicos sobre as comunidades tradicionais, resultando em violações de direitos humanos, falta fiscalização e controle adequados por parte do governo do Maranhão e governo federal.
De acordo com o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Maranhão, a expansão da fronteira agrícola e o uso cada vez mais intensivo da prática de aplicação aérea de veneno prejudica comunidades tradicionais em vários municípios.
Com a sanção do “PL do Veneno” pelo governo Lula (PT), a luta contra os agrotóxicos se torna ainda mais acirrada. Criado para facilitar o processo de liberação de agrotóxicos, com prazos curtos para o registro de novos produtos, o Projeto de Lei 1459/2022, convertido na Lei n° 14.785/2023, foi sancionado em 28 de dezembro com 14 vetos, em meio ao feriado parlamentar de fim do ano.
Lula vetou a retirada da competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na avaliação e liberação dos agrotóxicos. Os parlamentares queriam que a decisão fosse exclusiva do Ministério da Agricultura.
A decisão final está agora nas mãos do Congresso Nacional, que deverá analisar os vetos em uma votação conjunta, exigindo uma maioria absoluta tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados.
Trabalhadores e organizações se mobilizam
Além da aprovação do “PL do Veneno”, que representa um declínio no que se refere à regulação dos agrotóxicos, Edmilson Costa argumenta que no Maranhão a Assembleia Legislativa é conservadora e ruralista e defende pautas políticas voltadas para o agronegócio.
“Fica difícil a gente avançar nessa temática aqui no Maranhão e os trabalhadores e as trabalhadoras rurais são submetidos a todo tipo de crimes, sobretudo ambientais. Não temos uma resposta efetiva para parar essa guerra química”.
Em setembro de 2023, a Rama, juntamente com a Coalizão para a Proteção das Florestas da Amazônia, lançou a campanha estadual “Chega de Agrotóxicos”. O objetivo é mobilizar a sociedade civil em relação às práticas constantes de pulverização aérea nos territórios e comunidades do campo maranhense.
Diante do cenário de impactos na produção agroecológica local e um agravamento das condições de vida da população, a campanha promove a coleta de assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular pela proibição da pulverização aérea de agrotóxicos, na Assembléia Legislativa do Maranhão.
O texto da minuta foi feito a partir do diálogo com a coordenação política da Rama, advogados populares e representantes de outras iniciativas, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e colaboradores de outros estados que também estão nessa discussão e que tiveram leis aprovadas.
Além da proibição do uso de agrotóxicos por vias aéreas, o texto popular também propõe a criação de um sistema de monitoramento, controle e responsabilização de contaminação por agrotóxicos. A proposta prevê ainda o direito a uma distância regulamentada para a pulverização em áreas de monocultivo de quem produz de forma agroecológica, escolas, creches, fontes de água e moradias, com atenção específica a territórios e comunidades tradicionais.
“Nesse sentido, as organizações e trabalhadores rurais têm pensado algumas estratégias de combate, como a elaboração proposta de lei contra os agrotóxicos, que está ainda em um processo para ser colocado em pauta no legislativo do Maranhão”, afirma Edimilson Costa.