Tribunal Popular em Santarém (PA) condena Estado e agronegócio por “guerra química” contra os povos da Amazônia

Por Roberta Quintino l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Foto: Nieves Rodrigues.

Em uma audiência simbólica marcada por denúncias de violações de direitos humanos, comunidades e povos tradicionais responsabilizam o Estado brasileiro e o agronegócio pelos impactos dos agrotóxicos na saúde humana e meio ambiente, revelando que o envenenamento na região do Baixo Tapajós atinge níveis até oito vezes superiores à média nacional.

No dia 26 de setembro mais de 450 pessoas se reuniram no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém, no Oeste do Pará. Povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares, extrativistas, professores, estudantes e representantes de movimentos populares e organizações sociais ocuparam o espaço para denunciar e também julgar o Estado brasileiro e o agronegócio, acusados de facilitar e promover uma guerra química contra populações e ecossistemas amazônicos.

O Tribunal Popular contra os Agrotóxicos, realizado como parte da Jornada em Defesa da Amazônia, Saúde e contra os Agrotóxicos, foi um espaço de denúncia e de construção coletiva de justiça. Durante o evento, os depoimentos das vítimas e dados científicos se somaram para explicitar que o envenenamento não é acidente, mas um projeto sistemático de expulsão e destruição dos territórios.

As falas apresentadas ao longo do dia trouxeram o sofrimento cotidiano de comunidades que convivem com a pulverização de agrotóxicos nas proximidades de casas, escolas e plantações. Um dos casos mais emblemáticos é o da Escola Municipal Vitalina Mota, em Belterra, que se encontra cercada por lavouras de soja. Professores e a comunidade relataram que crianças já apresentaram sintomas de intoxicação após a aplicação de veneno nas áreas vizinhas.

A mesma situação se repete em territórios indígenas como Açaizal, Aparador, Ipixuna e Pau D’arco, e em comunidades quilombolas como Bom Jardim. Para essas populações, os agrotóxicos têm funcionado como ferramenta de expulsão silenciosa, inviabilizando a produção de alimentos saudáveis, comprometendo a soberania alimentar e impactando diretamente a saúde das famílias.

Foto: Nieves Rodrigues.

Durante o tribunal, a professora Annelyse Figueiredo, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará, apresentou dados que explicitam a dimensão do problema.

“Enquanto a média brasileira é de 4,5 litros de agrotóxicos por pessoa ao ano, em Belterra esse número chega a 29,3 litros e em Mojuí dos Campos a 37,3 litros por habitante, somente com os agrotóxicos aplicados nas lavouras de soja destes municípios.”

Ela destaca que os impactos desse consumo de agrotóxicos pelo agronegócio já se refletem nos indicadores de saúde. Em Belterra, nos últimos 20 anos, houve aumento de 600% nas mortes por doenças neurológicas e de 123% nos óbitos por câncer. “Em Mojuí, onde não existem áreas de conservação ambiental que funcionem como barreiras, a população está ainda mais exposta”, aponta.

O pesquisador do Instituto Evandro Chagas, Marcos Motta, destacou que um dos agrotóxicos mais utilizados na região é o glifosato, substância proibida em vários países devido aos efeitos na saúde humana, incluindo riscos de infertilidade, malformações e câncer. 

A escolha de Santarém como palco do Tribunal não foi por acaso. A  região do Oeste do Pará é hoje uma das principais áreas de expansão da soja no estado. Municípios como Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos estão entre os dez maiores produtores de grãos do Pará, segundo dados da  Agência de Defesa Agropecuária do estado do Pará (Adepará). O avanço das lavouras tem vindo acompanhado das violações do direito à terra, saúde, meio ambiente e ameaças contra lideranças locais, ocasionando o aumento de conflitos fundiários e do uso de venenos.

Violações

Segundo o caderno de “Conflitos no Campo Brasil” da Comissão Pastoral da Terra (CPT) nos últimos 20 anos a área plantada de soja passou de 79 mil hectares em 2006 para 1,2 milhões de hectares em 2025, ou seja as comunidades e povos tradicionais estão perdendo o poder de decidir sobre seu território, seus modos de vida, seu jeito de viver, de criar e plantar. 

Em decorrência dessa expansão, nos últimos anos a instalação de estruturas para o escoamento de grãos destinados à exportação, especialmente soja, avançou de forma intensa na região. Em 2013, havia 20 portos em operação ou em construção; ao final de 2023, esse número chegou a 41 — um aumento de 105%, segundo levantamento da Terra de Direitos. O dado evidencia que o Oeste do Pará passou a ser considerado estratégico para a expansão do agronegócio.

O Brasil, de acordo com dados do Ibama, comercializou mais de 750 mil toneladas de agrotóxicos apenas em 2023, consolidando o país como o maior consumidor mundial dessas substâncias. O Pará, impulsionado pela produção e exportação de commodities, está entre os estados que mais ampliaram o consumo na última década.

No tribunal, também foram relatados casos de agricultores familiares que perderam suas plantações e meliponários por deriva de pulverização aérea de agrotóxicos . Muitas dessas famílias, além do prejuízo financeiro, passaram a temer a contaminação e intoxicação pelo consumo da água e alimentos da região.

Sentença

As acusações não se limitaram ao agronegócio, e o Estado brasileiro também foi responsabilizado, acusado de omissão deliberada, a partir da falta de regulamentação da pulverização terrestre no Pará, deixando comunidades totalmente desprotegidas, enquanto a falência dos órgãos de fiscalização transforma a impunidade em regra. A manutenção de incentivos fiscais à indústria de agrotóxicos, que segue isenta de impostos mesmo diante dos danos comprovados à saúde e ao ambiente, foi apontada como outro exemplo de cumplicidade.

Nesse contexto, o Estado e o agronegócio foram considerados culpados por ecocídio e etnocídio. A sentença popular, lida por Auricelia Arapiun, do povo Arapiun, exigiu reparação integral para as comunidades afetadas, incluindo monitoramento permanente da saúde das vítimas, tratamento médico de longo prazo, remediação ambiental custeada pelos poluidores e compensação pelos danos materiais e morais.

Também foi recomendada a decretação de uma moratória imediata da pulverização de agrotóxicos em áreas próximas a comunidades, aldeias, escolas e corpos d’água, além da regulamentação urgente da pulverização terrestre e aérea no estado, com base no princípio da precaução. Outra recomendação foi a responsabilização criminal de proprietários rurais, empresas e agentes públicos que contribuíram para os crimes, o fim dos incentivos fiscais à indústria de agrotóxicos e a destinação de recursos para um amplo programa de transição agroecológica, com protagonismo das comunidades locais.

A sentença será encaminhada a órgãos nacionais e internacionais, como o Ministério Público Federal, a ONU e instâncias da COP30, que será realizada em Belém em 2025. O Tribunal foi organizado por uma ampla articulação de entidades, incluindo a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, FASE, Fundo Dema, Terra de Direitos, Diocese de Santarém, Tapajós de Fato e UFOPA, STTR de Santarém, STTR de Belterra, STTR de Mojuí dos Campos, NEA Muiraquitã, MPP, AMBAPEM, MAM, GUARDIÕES DO BEM VIVER, ISCO, CPP, CPT, FOQS, CITA, COIAB.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *