Audiência em que Marcia Xavier foi ouvida aconteceu um dia após Tribunal de Justiça confirmar absolvição de supostos mandantes do crime
por Luana Rocha e Mariana Della Barba – Repórter Brasil / Agência Pública
A família de Marcia Xavier é vítima direta dos problemas gerados pelo uso de agrotóxicos. Sua filha sofre com puberdade precoce causada, segundo uma pesquisa, pelo uso indiscriminado de agrotóxicos na cidade onde vive, em Limoeiro do Norte, na Chapada do Apodi (Ceará). Já seu pai, o líder comunitário e ambientalista José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, foi assassinado em abril de 2010 – um mês após ser aprovada uma lei municipal que vetava a pulverização de pesticidas nas lavouras da região.
Quando chegou a Brasília na segunda-feira, 1º de julho, para participar de uma audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o uso de agrotóxicos em sua cidade, Marcia Xavier não esperava que ela também teria de falar sobre uma notícia divulgada no dia anterior: o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou uma decisão que, na prática, absolveu os supostos mandantes da execução de seu pai.
“Claro que fui pega de surpresa… Mas eu cresci vendo meu pai nessa luta. Ele sempre dizia: ‘É uma briga de cachorro grande com cachorro vira-lata’. Eu sempre tive esse pensamento: não vai dar em nada porque são pessoas grandes que estão por trás [da execução dele]”, disse, emocionada.
Antes de ser assassinado, Zé Maria lutava para impedir que as empresas produtoras de frutas parassem de contaminar o solo e a água com os pesticidas.
“Sou vítima três vezes do agrotóxico. A luta do meu pai começou justamente com a contaminação da água, quando eu tive um problema de pele por causa disso. Depois, foi com o seu assassinato. E também com a minha filha, que desde 1 ano e 3 meses sofre com puberdade precoce. Hoje ela tem 7 anos.”
A audiência na Câmara dos Deputados foi motivada pela revelação, feita pela pesquisa da Universidade Federal do Ceará e divulgada pela Repórter Brasil, de que agrotóxicos podem causar puberdade precoce – como é o caso da filha de Marcia Xavier e de pelo menos outras duas meninas que moram no local. Quando ainda eram bebês, elas foram diagnosticadas com telarca prematura, a primeira fase do desenvolvimento das mamas.
Durante a pesquisa, conduzida pela médica Ada Pontes Aguiar, os pais das meninas com puberdade precoce e outras famílias que foram ouvidas citaram o uso de agrotóxicos com ingredientes como o acefato – substância proibida na União Européia desde 2003, que provoca desregulação endócrina e que, por sua vez, pode ser a causa da puberdade precoce.
Outro pesticida citado pelos entrevistados é o glifosato, classificado como “provável cancerígeno” pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, que é ligada à OMS) e que está em meio a intenso debate internacional sobre seus efeitos negativos à saúde. Em março, um júri nos Estados Unidos o apontou como um “fator importante” na relação com o desenvolvimento do câncer em um homem de 70 anos.
A União Europeia também vem debatendo seu uso mais limitado ou sua proibição total. Na semana passada, a Áustria foi o primeiro país do bloco a aprovar o veto total ao produto. No Brasil, a Anvisa abriu uma consulta pública sobre a manutenção do glifosato como um produto agrotóxico e sobre as medidas decorrentes de sua reavaliação toxicológica.
‘Sistema adoecedor’
Na audiência em Brasília – chamada “Puberdade precoce em bebês, causada pela contaminação por agrotóxicos” e realizada na Comissão de Legislação Participativa da Câmara – também estava presente a médica Ada Aguiar, responsável pela pesquisa da Universidade Federal do Ceará que mostrou a correlação entre o uso de agrotóxico na região do Apodi com casos de má-formações congênitas e puberdade precoce.
A médica ressaltou a importância de tratar o problema do agrotóxico a partir da perspectiva das pessoas que vivem no campo.
“As pessoas estão sofrendo e morrendo por esse sistema adoecedor. É importante a gente lembrar que essas pessoas têm nome e sobrenome. Lembrar de tantos trabalhadores, moradores e crianças que estão sendo afetados por esse modelo”, disse Ada Aguiar.
Uma década de processo
No STJ, a decisão assinada pelo ministro Felix Fischer julgou recurso apresentado pelo Ministério Público do Ceará – um dos últimos capítulos desses quase dez anos desde o assassinato.
O processo jurídico sobre o crime ganhou força apenas em junho de 2012, quando a 1ª Vara da Comarca de Limoeiro do Norte acatou a denúncia do MP cearense contra os supostos mandantes, que seriam ligados a uma empresa produtora de frutas. O Ministério Público também denunciou outros quatro suspeitos, que teriam participado do crime.
Em 2015, a Justiça indiciou três pessoas como réus e ficou determinado que eles fossem a júri popular.
Mas dois anos depois, após um recurso por parte dos réus, o Tribunal de Justiça (TJ) do Ceará reverteu a indicação dos dois supostos mandantes. Com isso, em termos práticos, ambos foram absolvidos. O júri popular foi mantido para um dos acusados de participar do assassinato, mas ainda não há data marcada.
“Lamentavelmente, a situação segue o padrão do Judiciário brasileiro em crimes semelhantes: impunidade para mandantes, especialmente quando são empresários influentes; e punição para participantes e executores, geralmente pessoas simples e humildes”, afirmou, em nota, o Movimento 21, que reúne movimentos sociais e instituições acadêmicas da região.
O advogado da família de Zé Maria, Claudio Silva, que é membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, disse à Repórter Brasil e à Agência Pública que as chances de um recurso contra a decisão são remotas e que o caso agora será levado para instâncias internacionais.
No fim de seu depoimento na audiência, que aconteceu no dia 2 de julho, Marcia Xavier fez um desabafo sobre a absolvição dos supostos mandantes do assassinato de seu pai. “Os empresários envolvidos no assassinato do meu pai estão impunes. E aí fica a pergunta: quem matou o Zé Maria?”