Por Mariana gondo, Naiara Bittencourt e Valéria Burity*
Do Jota Online
A ADI 5553, que aguarda julgamento pelo STF, tem suscitado debates relacionados aos seus impactos econômicos mas também às possibilidades e às potencialidades da agricultura brasileira.
Na ação, discute-se a inconstitucionalidade dos benefícios fiscais a agrotóxicos – os quais são concedidos desde 1997, ano em que foi firmado o Convênio ICMS nº 100/1997 pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) – e da isenção total do Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre alguns tipos de agrotóxicos, conforme o Decreto 7.660/2011, atualizado pelo Decreto 8.950/2016.
A discussão sobre a constitucionalidade da concessão de benefícios fiscais a agrotóxicos, inevitavelmente, esbarra na análise da violação dos direitos fundamentais à saúde, à alimentação adequada e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, vez que o tratamento tributário possibilitado pelos instrumentos citados são importantes alicerces e incentivos ao modelo de produção e consumo agrotóxico-dependente do Brasil.
A (in)segurança alimentar de cada dia
O direito à alimentação, direito social garantido no artigo 6º da Constituição e na Lei 11.346/2006, não é apenas o simples direito ao acesso à comida. Em seu núcleo normativo podemos destacar dimensões, como:
i) a disponibilidade (a produção e circulação de alimentos em quantidade suficiente para alimentar toda a população);
ii) a acessibilidade física e econômica a alimentos;
iii) a adequação dos alimentos disponíveis no mercado (a oferta de alimentos adequados do ponto de vista de sua quantidade, qualidade e segurança, e também de aspectos culturais e informacionais); e
iv) a sustentabilidade (na produção, na comercialização, no consumo e no aproveitamento).
A efetivação de tal direito é complexa e está diretamente vinculada a inúmeros aspectos da organização do Estado, desde a fiscalização e a promoção de políticas públicas implementadas na área à adoção de determinado direcionamento tributário.
A inobservância das diversas dimensões do direito à alimentação propicia o seu descumprimento, seja pela oferta de alimentos contaminados (inadequados), seja pela ampliação dos impactos negativos à saúde e à biodiversidade (não-sustentáveis).
Os resultados mais recentes do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), coordenado pela Anvisa, datam de 10 de dezembro de 2019 e referem-se ao período 2017-2020.
Segundo o relatório, foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 51% das 4.616 amostras. Do total de amostras, 23% foram consideradas insatisfatórias por apresentarem resíduos com concentrações superiores ao Limite Máximo de Resíduos (LMR), o que implica potenciais riscos de intoxicação aguda e crônica advindos da exposição dietética.
Estamos falando de amostras coletadas em estabelecimentos varejistas, ou seja, do alimento que adquirimos para levar para nossas mesas. Inegável que o resultado das análises seja preocupante.
Somam-se a essa preocupação, duas limitações consideráveis do PARA:
a) foram analisados apenas 14 alimentos de origem vegetal (abacaxi, alface, alho, arroz, batata-doce, beterraba, cenoura, chuchu, goiaba, laranja, manga, pimentão, tomate e uva), desconsiderando-se outros alimentos como leite, carne, ovos e alimentos ultraprocessados de consumo crescente no Brasil (como biscoitos, pão de forma, margarina, pratos prontos ou semi-prontos); e
b) foram analisados 270 agrotóxicos diferentes nas amostras – apenas pouco mais da metade dos ingredientes ativos autorizados para uso no Brasil.
Não há existência digna sem saúde e a saúde do cidadão-consumidor deve ser garantida – conforme artigo 5º, XXXII da Constituição e os artigos 4º e 6º do Código de Defesa do Consumidor – por meio da oferta, no mercado de consumo, de alimentos adequados, isto é, que não impliquem perigo a sua saúde ou segurança, seja a curto, médio ou longo prazo.
Não estamos diante apenas de um mero problema de falta de fiscalização para regularização das amostras, como querem fazer crer as vozes representativas do agronegócio.
O ponto é que temos um sistema hegemônico de produção e consumo de alimentos que ameaça e viola, sim, direitos fundamentais porque alicerçado no uso intensivo de agrotóxicos de forma induzida e estimulada pelo Estado.
Tal estímulo, importa dizer, é ofertado a este setor há 23 anos sem critérios técnicos e sem a motivação da adequação e necessidade da medida – ausências depreendidas da própria ata da reunião de aprovação dos benefícios do Convênio Confaz (mov. 137), apresentada pelo Ministério da Fazenda nos autos da ADI 5553.
O direito à alimentação não é efetivado quando há insegurança alimentar ou quando, apesar da acessibilidade física e econômica a uma quantidade constante e suficiente de alimentos, esses não são seguros ou não apresentam a qualidade apropriada para consumo.
A (in)sustentabilidade da produção de externalidades negativas
Como afirmamos, a efetivação do direito à alimentação é multifacetada e precisa levar em conta também a dimensão da sustentabilidade. Sem ela, nossos sistemas alimentares provocam graves externalidades ambientais, sanitárias e sociais que afetam a própria concretização do direito à alimentação.
É o que diz o Relatório da Lancet de 2019, uma das principais revistas científicas do mundo. A insustentabilidade dos sistemas alimentares atuais foi reiterada pela FAO no Estado de segurança alimentar e nutricional do mundo de 2019 e a ONU especificamente pontuou em Relatório sobre Direito à Alimentação que os agrotóxicos assumem papel central nesse desequilíbrio.
No Brasil, pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso analisou 21 cultivos majoritários, representando 71,2 milhões de hectares de lavouras. A soja foi a cultura que mais utilizou agrotóxicos no país, representando 63% do total, seguido do milho (13%) e da cana-de-açúcar (5%). Soja, milho e cana-de-açúcar constituem 76% de toda a área plantada do Brasil e corresponderam a 82% de todo o consumo de pesticidas em 2015.
Ainda, em análise sobre a proporção da produtividade e uso de agrotóxicos na soja, identificou-se que, de 2000 a 2012, o uso de herbicidas por unidade de área cresceu 90,3%, enquanto a produtividade da soja por kg de herbicida cresceu apenas 50,7%.
Já o uso total de agrotóxicos aumentou 162,3% e o uso de agrotóxicos per capita aumentou 124,6%. Dados do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) demonstram que, de 2000 a 2012, houve 288% de crescimento do uso de agrotóxicos no país.
Os agrotóxicos estão na nossa mesa – fato. Porém, o que estes números indicam é que o maior volume de agrotóxicos utilizados no Brasil destina-se a quatro culturas majoritariamente destinadas à exportação.
São commodities cujos preços são estabelecidos pelo mercado internacional, definidos com base em fatores de produção global, já beneficiadas com outras isenções de tributos para a exportação.
Sem isenções aos agrotóxicos, haveria uma margem de lucro menor para as empresas do agronegócio, já a relação com o aumento do preço de alimentos não é simples e direta, segundo a Fiocruz.
Isto é, dizer que a seletividade tributária aos agrotóxicos é necessária e beneficia os consumidores é uma falácia discursiva, dado que é a grande cadeia de commodities que é subsidiada pelo Estado.
Além disso, são esses mesmos consumidores que arcam com o impacto dos agrotóxicos no Sistema Ùnico de Saúde com o tratamento de cânceres, intoxicações e problemas resultantes desses produtos.
Já sobre o custo de produção, há dados sobre relação do gasto com agrotóxicos e o tamanho por área de propriedade. O Censo Agropecuário de 2017 indica que pequenas propriedades de 2 a 5 hectares – as maiores em número no Brasil, com cerca de 420 mil propriedades cultivadas majoritariamente pela agricultura familiar, que produz a maior parte dos produtos que compõem a base alimentar brasileira – afirmam gastar cerca de 1,6% das despesas de produção com agrotóxicos.
Já as grandes propriedades, com mais de 500 hectares, que representam menos de 17 mil propriedades no Brasil, afirmam gastar 61,4% das despesas com agrotóxicos. O fim da isenções atingiria, portanto, mais os grandes produtores voltados à exportação.
Lembremos que a ADI 5553 não trata da sobretaxa de agrotóxicos ou mesmo de instrumentos da extrafiscalidade para desincentivo de produtos, como é o caso de bebidas alcoólicas e cigarros.
A ação visa tão somente a tributação regular desses insumos como medida de arrecadação de recursos para o mínimo custeio de seus impactos e externalidades negativas. Isso porque a política de incentivo a agrotóxicos é, em si, um desincentivo à efetivação da dimensão do direito à alimentação que trata da sustentabilidade do sistema de produção agrícola.
É possível produzir sem ou com menos agrotóxicos
É preciso impulsionar mudanças substanciais no meio rural e na agricultura. A agroecologia é a ciência e prática nessa seara que “pode servir como base para reorientar ações de ensino, de pesquisa e de assessoria ou assistência técnica e extensão rural, numa perspectiva que assegure uma maior sustentabilidade socioambiental e econômica para os diferentes agroecossistemas”.
Em 2010, o relator da ONU para o direito à alimentação afirmou que a agroecologia “foi criada pela convergência de duas disciplinas científicas a agronomia e a ecologia”. Como ciência, é a “aplicação da ciência ecológica ao estudo, projeto e gestão de agroecossistemas sustentáveis”.
Ao contrário do que propaga o agronegócio, a agroecologia tem o potencial de aumentar a produtividade de alimentos de forma mais sustentável social e ambientalmente.
Alternativas, portanto, existem, mas para que sejam possíveis são necessárias políticas de incentivo à transição e investimentos para a pesquisa na área, tal como dispõe o texto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), instituída pelo Decreto 7.794/2012.
E, claro, o fomento da agroecologia depende também da implementação de uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara), como propõe o Projeto de Lei 6670/2016, de iniciativa da ABRASCO.
Devemos lembrar, ainda, que dos cerca de 5 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil, apenas 1,6 milhões usam agrotóxicos. Mesmo assim, estes sofrem indiretamente com a pulverização vizinha, a contaminação da água e a intoxicação no meio rural e precisam de políticas públicas de desenvolvimento produtivo sustentável para alavancar a sua produção.
A ADI 5553 é um evento importante para o futuro da sociedade brasileira. O que se pleiteia nela é tão somente a análise dos dispositivos que concedem isenções tributárias a agrotóxicos à luz da ordem ambiental, da proteção da saúde e, sobretudo, da proteção ao direito social à alimentação.
Não se trata de limitar a livre iniciativa, mas de atrelar a promoção do desenvolvimento econômico nacional à proteção do consumidor e do meio ambiente, direitos fundamentais e princípios gerais da ordem econômica consolidados em nossa Constituição.
A produção de alimentos e, sobretudo, as suas políticas de incentivos e subsídios econômicos promovidas pelo Estado brasileiro não podem ser incompatíveis com a ordem constitucional.
*MARIANA GONDO DOS SANTOS – Advogada do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).
**NAIARA ANDREOLI BITTENCOURT – Advogada na organização Terra de Direitos, eixo de Biodiversidade e Soberania Alimentar. Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR.
***VALÉRIA BURITY – Advogada, Secretária Geral da FIAN Brasil, Mestra em Direito pela UFPB.
Ótimo artigo estão nos matando com esses agrotóxicos, minha irmã com 30 anos descobriu um câncer de mama metastático com poucas chances de cura e agora está lutando pra viver, sendo que na minha família não tem nenhum caso tanto por parte de pai nem de mãe e meus avôs viveram quase até 90 anos cada.