* Jaqueline Pereira de Andrade e Naiara Andreoli Bittencourt
Da Terra de Direitos
O mundo enfrenta uma grande crise sanitária: a pandemia pelo novo coronavírus. No Brasil, o quadro é alarmante, 2,2 milhões pessoas já se contaminaram e 83 mil faleceram. Conforme pesquisa realizada pelo Deep Knowledge Group, um consórcio de empresas e organizações sem fins lucrativos, que analisou 200 nações, o Brasil está em terceiro lugar, entre quatro, no nível de segurança, assumindo a 91ª posição entre nações. A situação é de lotação na Unidades de Terapias Intensivas e sobrecarregamento das unidades públicas e privadas de saúde. Mas ao invés de buscar meios de controlar a pandemia e salvar vidas, o governo federal brasileiro dá prioridade à aprovação de novos agrotóxicos para comercialização e utilização no mercado interno.
Em 2019, no primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro (sem partido), por meio da pasta da agricultura, sob comando da ministra com estreita ligação com o agronegócio, Tereza Cristina (PSL), o país bateu recorde na liberação de agrotóxicos. Até agora foram registrados 701 produtos no Governo Bolsonaro.
Apenas este ano, desde o início da pandemia no Brasil, em março, foram publicados os registros de 150 novos produtos. Esse número de aprovações é maior do que o ocorrido no mesmo período de 2019, quando 80 produtos tiveram o registro publicado.
A justificativa do governo federal é que os agrotóxicos são produtos essenciais para a prevenção do controle e erradicação de pragas e doenças, bem como as atividades de suporte e disponibilização dos insumos necessários a cadeia produtiva, conforme estabelecido pela Medida Provisória 926 e pelo Decreto 10.282, ambos de 20 de março deste ano.
A porteira foi aberta para o veneno. O MAPA sancionou a Portaria 43/2020, que estabelece prazos para a aprovação tácita de agrotóxicos, dispensando a análise pelos órgãos competentes. Assim, a pasta do governo, resolve que os agrotóxicos devem ser aprovados tacitamente. Diante disso, os partidos Rede Sustentabilidade e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizaram as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 656 e 658 e o plenário do STF concedeu medida cautelar para suspender os efeitos da portaria. Os Ministros seguiram por unanimidade os votos do Ministro Relator Ricardo Lewandowski.
Outra medida promotora da desregulamentação foi a publicação da Instrução Normativa 13/2020, editada pelo MAPA, que permite a pulverização de fungicidas agrícolas e de óleo mineral na cultura da banana mediante o uso de aeronaves. A medida reduz as distâncias mínimas para pulverização aérea de bairros, cidades, vilas e povoados, sem qualquer justificativa razoável e científica. A medida afeta com preocupação as dezenas de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, região de grande plantio da cultura.
Ainda, a nuvem de gafanhotos que adveio da Argentina em junho ensejou a edição da Portaria 201/2020 que declarou um “estado de emergência fitossanitária” que permite a importação e uso de agrotóxicos não autorizados no Brasil com autorização temporária exclusivamente a encargo do MAPA pelo prazo de um ano. Também por considerarem que os agrotóxicos são produtos essenciais que o Convênio 100/1997 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) concede redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).
E foi justamente em meio à pandemia, em reunião realizada em 3 de abril de 2020 entre os Secretários de Fazenda dos 26 estados e do Distrito Federal, que se aprovou, pela vigésima vez, a renovação do Convênio 100/1997 do CONFAZ. A prorrogação contou com forte pressão pública da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) em conjunto com as federações estaduais de agricultura, associações e organizações do agronegócio. A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) também propagandeou a incidência à pauta dos Secretários de Fazenda estaduais pelos deputados da bancada.
O resultado direto de tais benefícios econômicos é a alta lucratividade das empresas multinacionais dos agrotóxicos. Só em 2017, o mercado do veneno faturou R$ 37,55 bilhões com a venda desses produtos. Com a liberação recorde de agrotóxicos, o valor que o Estado brasileiro deixa de arrecadar no próximo período é exponencial, vez que o sistema de tributação incide sobre o produto: quanto mais agrotóxico se utiliza, menos se deixa de arrecadar em impostos.
Segundo a ABRASCO, somente em relação ao ICMS, os estados e o Distrito Federal deixaram de arrecadar 6,22 bilhões de reais em 2017. A conta total das isenções indica 10 bilhões anuais. Nesse cálculo não estão os custos externos ao poder público com os impactos desses produtos, como a contaminação da biodiversidade, das águas, a perda de polinizadores, a intoxicação dos trabalhadores rurais ou mesmo da estrutura estatal de registro e fiscalização dos produtos, indica a Fiocruz.
Neste contexto de estímulo à produção e à comercialização de agrotóxicos, os danos para os brasileiros são os mais graves possíveis. O contato direto com agrotóxicos foi apontado como razão da morte de 700 pessoas por ano na última década, segundo informações do DataSUS. De 2008 a 2017 a soma de óbitos por exposição a agrotóxicos chegou a 7.267 pessoas. Ainda conforme o Ministério da Saúde, só no ano de 2017 cerca de 14 mil pessoas foram intoxicadas, sem contar as subnotificações.
Aliás, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) já alertou a sociedade brasileira para o fato de que, considerando o potencial cancerígeno (em longo prazo) e intoxicante (em curto prazo), a ação adequada é não utilizar agrotóxicos. Destacou ainda que proteções individuais ou barreiras locais não impedem que a substância atinja lençóis freáticos e atue em áreas muito distantes do original.
Ainda, os custos para o tratamento das doenças e óbitos ocasionados pelo uso dos agrotóxicos são internalizados pela sociedade, cabendo às empresas que os utilizam em sua cadeia de produção apenas auferir os lucros. Segundo estudo realizado no Paraná por pesquisadores da Fiocruz, para cada U$1 gasto com agrotóxicos, são despendidos U$1,28 com tratamentos de saúde decorrentes de intoxicações agudas.
Os impactos à biodiversidade e a saúde humana têm sido negligenciados, e a contaminação dos recursos ambientais passa a ser uma realidade que ameaça a qualidade de vida das presentes e futuras gerações em prol do desenvolvimento econômico prioritário de culturas cultivadas em larga escala destinadas prioritariamente à exportação. Em 2015, o médico e professor Wanderlei Pignati coordenou pesquisa na UFMT que analisou 21 cultivos majoritários no Brasil, representando 71,2 milhões de hectares de lavouras. O resultado indicou que soja, milho e cana-de-açúcar representaram 76% de toda a área plantada do Brasil e foram os que mais consumiram agrotóxicos, correspondendo a 82% de todo o consumo do país em 2015.
A liberação massiva de agrotóxicos, à título da essencialidade, não está relacionada com a produção de alimentos. Segundo a pesquisadora Larissa Bombardi da USP, o Brasil tem uma área equivalente a Alemanha em plantação de soja e a expansão agrícola cresce a cada ano, desmatando e queimando a floresta – não para a produção de alimentos, mas para gerar commodities. Enquanto isso, 15 pessoas morrem por dia de subnutrição e segundo o relatório de 2019 da FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, cerca de 5 milhões de pessoas ainda passam fome no Brasil. Tal consideração da essencialidade dos agrotóxicos para a isenção dos tributos fiscais, para a aprovação e registro no período de pandemia e para o avanço da flexibilização normativa que permitia inclusive a autorização automática ou tácita de agrotóxicos, sugerem decisões políticas que favorecem determinadas parcelas de grupos econômicos e produtivos do país, especialmente aos setores de empresas de agrotóxicos transnacionais e do agronegócio extensivo, com um altíssimo custo à coletividade e à população brasileira de forma geral, ao patrimônio e ao erário público, já que o próprio Estado arca com altos prejuízos que resultam do consumo massivo de agrotóxicos. Neste passo, abre mão de receita pública em um momento que há congelamento de investimento em gastos sociais por 20 anos com a Emenda Constitucional 95/2016.
Benefícios ao agronegócio, agricultores familiares desamparados
O Brasil enfrenta não apenas a maior crise sanitária dos últimos 102 anos, como também uma grave crise econômica. As prioridades do governo são flexibilizar, desregulamentar e passar projetos de interesses econômicos privados, enquanto isso temos um quadro alarmante de desemprego e fome.
O país não superou questões básicas, como infraestrutura de saneamento básico, distribuição de renda que alcancem as populações mais vulneráveis socialmente e políticas de segurança alimentar, bem como de escoamento da produção da agricultura familiar. O aumento vultoso do número de casos da doença, principalmente nas localidade mais pobres, é reflexo das escolhas que o governo gestiona. Segundo o IBGE, hoje existem 12,9 milhões de desempregados no Brasil. A penas duras, contrário ao posicionamento do presidente Jair Bolsonaro e de seu ministro da economia Paulo Guedes, foi aprovado pelo Congresso Nacional o auxílio emergencial da renda básica, para trabalhadores informais, desempregados, pescadores, agricultores familiares, no valor de R$ 600,00 que seriam destinadas à essas famílias de baixa renda por um período três meses.
Mas a possibilidade de acesso ao benefício pelos agricultores familiares que não eram cadastrados no CadÚnico gerou dúvidas, pois poderia impactar os benefícios previdenciários. Diante da dúvida a Lei 13.998/2020 foi aprovada no Congresso Nacional e consolidava a extensão do Auxílio Emergencial de R$ 600,00 para trabalhadores do campo e agricultores familiares de todo o país, mas foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro.
Já o Projeto de Lei 735/2020 aprovado nesta semana na Câmara dos Deputados indica auxílio e crédito especial para a agricultura familiar nesse difícil contexto. Agora segue ao Senado, mas também pode contar com um veto do presidente, que não tem se mostrado afeito ao apoio aos agricultores familiares, especialmente no que tange ao dispêndio econômico.
Enquanto há um evidente apoio governamental às grandes empresas do agronegócio, em especial no caso em discussão, às produtoras de agrotóxicos, a população pobre sofre ameaças de ter os recursos básicos cortados. Vale lembrar que as empresas de frigoríficos, especialmente no sul do país, têm se mostrado com amplas fontes de disseminação do coronavírus, com desrespeito às medidas de segurança.
Conforme o Ministério Público do Trabalho, somente no Rio Grande do Sul cresceu 40% o número de trabalhadores com a doença no último mês. A China inclusive suspendeu importações de carnes de plantas frigoríficas brasileira, como a JBS, a BRF e a Mafrig Global Foods.
A desigualdade social fica ainda mais evidente: as classes pobres têm menos acesso à saúde, menor possibilidade de isolamento físico para evitar a contaminação, com uma alta taxa de desemprego e ainda assim continuam a pagar impostos sobre tudo que consomem. É essa população, também mais exposta à intoxicação por agrotóxicos que têm seus corpos mais vulneráveis e adoecidos e podem sofrer ainda mais no caso de uma contaminação por Covid-19. Por outro lado, empresas bilionárias do agronegócio recebem benefícios pela comercialização dos novos agrotóxicos que entram ou são produzidos no país.
É preciso políticas públicas de promoção à agroecologia e à agricultura familiar!
Além da dificuldade de acesso ao auxílio emergencial, há outra questão urgente que se apresenta como mais uma das fragilidades e insensatez do governo atual. Há uma desvalorização extrema em termos de investimento e recursos públicos para a agricultura familiar e para a agroecologia, o que pode implicar risco à segurança alimentar e manutenção básica das condições de vida no campo e cidade.
Um cenário de fome se alastra. As famílias que produzem alimentos, por falta de alternativas, não comercializam os seus produtos e aquelas que precisam de alimentos, com ausência de renda, não conseguem satisfazer o direito básico à alimentação adequada.
Por esse motivo que a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e mais 315 movimentos sociais de todo o país, assinaram um documento em que pediam o restabelecimento completo do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), com liberação emergencial de um aporte de R$ 1 bilhão. Todavia, o valor liberado pelo Ministério da Agricultura, pela Medida Provisória 957/2020, foi de somente 500 milhões de reais. Uma grande vitória ante a pressão popular, mas ainda insuficiente para o momento de crise e situação de emergência nacional.
A importância do PAA nesse momento é porque é um programa prático e direto, a partir da compra simultânea dos alimentos se garante tanto o fortalecimento das associações e cooperativas de agricultores familiares, como a agilidade de fazer chegar o alimento de forma rápida e dinâmica aos bolsões de pobreza do país. Estima-se que cerca de 18 milhões de agricultores familiares e extrativistas estão sendo afetados pela pandemia, mas sobretudo pela ausência de incentivo e promoção de políticas públicas de segurança alimentar. Neste cenário, podem não conseguir investir na produção nos próximos anos por falta de recursos e sofrerão desabastecimento pela falta de estímulo para a agricultura familiar e agroecológica, diferentemente da condição dos grandes proprietários e empresas do agronegócio. Consequentemente há desabastecimento e insegurança alimentar nas cidades brasileiras.
Passa a boiada do veneno e não passa a distribuição de renda e alimentos às populações eu mais precisam.
A solidariedade vem da agricultura familiar
Mesmo diante da falta de políticas públicas e descaso com a saúde do povo, são os movimentos sociais populares do campo, em parceria com movimentos populares urbanos, que promovem centenas de ações de solidariedade de apoio e entrega de alimentos saudáveis e até álcool em gel produzidos pelos camponeses à população mais vulnerabilizada.
Destacam-se a Campanha “Periferia Viva”, com participação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Levante Popular da Juventude, Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM); e a Campanha “Vamos Precisar de todo Mundo” que surge da articulação da Frente Brasil Popular e Frente Povo sem Medo, com participação de comunidades quilombolas e tradicionais. O MST já doou mais de 2300 toneladas de alimentos no Brasil.
Somente no Paraná foram 280 toneladas de alimentos distribuídos. Os quilombolas do Vale do Ribeira e os caiçaras da Ilha do Cardoso já enviaram alimentos a 930 famílias da Brasilândia. O MAB já entregou 260 toneladas de alimentos e 3.290 itens de higiene, beneficiando mais de 10 mil famílias. O MTD e o MPA realizaram também importante ação de apoio aos entregadores de alimentos por aplicativos na greve realizada em 1º de julho. O MPA lançou a campanha nacional “Mutirão Contra a Fome”.
São milhares de comunidades urbanas brasileiras que com o abandono e descaso do poder público se articulam com os agricultores familiares e garantem a sobrevivência e segurança alimentar nesta grave crise.
*Jaqueline e Naiara são advogadas populares da Terra de Direitos.