Por Lizely Borges
Da Terra de Direitos
A compra de produtos essenciais que compõem a cesta básica tem sido progressivamente mais difícil para a população de baixa renda desde o início da manifestação da Covid-19 no país, em março. De acordo com Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), realizada em maio e divulgada em junho, alimentos essenciais da mesa da população brasileira sofreram aumento expressivo, como a farinha de mandioca (15%), feijão-carioquinha (8%), arroz-agulhinha (5,2%), entre outros.
Somado ao impedimento do Estado para acesso ao auxílio emergencial de R$600 mensais por um conjunto expressivo de desempregados, autônomos e informais, o governo brasileiro retarda a implementação de medidas que possibilitem – nas diversas etapas da cadeia produtiva dos alimentos – a produção do alimento e acesso à ele pela população mais vulnerável. Expressão disso foram os sucessivos adiamentos de inclusão do Projeto de Lei 735/2020 na pauta da Câmara Federal.
Protocolado em março, a proposta que prevê a extensão do auxílio para agricultores que ainda não receberam o benefício, assim como fomento de crédito e incentivos para a produção de alimentos foi aprovada pela casa legislativa apenas nesta segunda-feira (20). A matéria segue agora para análise no Senado Federal e, se aprovada, vai para sanção presidencial. Já o artigo do Projeto de Lei 1142/2020 que assegura distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas para indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais foi vetado por Jair Bolsonaro (sem partido) no início de julho. Com os vetos, a medida retornou para o Congresso Nacional para sessão conjunta em data não definida da Câmara e do Senado.
Em contradição com o argumento oficial da ausência de recursos e necessário corte nos orçamentos, o agronegócio segue sendo priorizado pelo Estado brasileiro. Produtor de commodities para exportação, tais como soja e algodão, o setor deve receber a maior fatia dos R$ 236,3 bilhões previstos no Plano Safra para o biênio 2020/2012. Lançado no dia 17 de junho o programa de canalização dos recursos federais para a agropecuária nacional não contempla o financiamento para a produção de alimentos por agricultores familiares, apontam movimentos.
“Bolsonaro e Paulo Guedes [ministro da economia] acreditam fielmente que o agronegócio brasileiro será um dos principais setores que irá alavancar a economia após o período de pandemia”, declarou a ministra da Agricultura de estreita ligação com o agronegócio, Tereza Cristina (PSL), no ato de lançamento do Plano Safra.
“Pra gente é complicado. Eu produzo mandioca, não tenho condições de produzir em maior quantidade. Se eu perder o que produzo não tenho o meu sustento. A gente tem capacidade de produzir, mas o que não tem é capital”, relata a agricultora do Acampamento Zilda Arns, em Porecatu (PR), Rudineia de Souza. “Se o governo apoiasse a produção de alimentos a população comeria melhor”, sublinha.
Ainda assim, mesmo diante da escassez de recursos para fomento da agricultura familiar de pequeno porte e do empobrecimento do campo, Rudineia se dedica desde abril a produzir refeições entregues para populações vulneráveis de Curitiba (PR). “Pra mim que sou agricultora e que faço todo o processo desde plantar, colher, preparar o alimento, é uma satisfação que não tem tamanho. É uma alegria”, diz ela.
“De onde tem vindo toneladas de alimentos nesta pandemia? Lá da roça, de agricultores familiares. Cerca de 70% dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro vem da agricultura familiar”, destaca a integrante da Direção Nacional do MST, Ceres Hadich. Ela destaca que a pandemia escancarou uma situação de insegurança alimentar da maior parte da população brasileira – na qual a população não tem renda para se alimentar e quem tem acessa alimentos com agrotóxicos e de baixo valor nutricional.
“Nós vemos poucas iniciativas de fornecimento de alimentos durante a pandemia pelo agronegócio, pelo contrário. Vimos denúncias de contaminação da Covid-19 em vários trabalhadores de frigoríficos, como os casos que ocorrem no sul do país. Considerando que o que se consome no cotidiano vem da agricultura familiar vemos a importância em se garantir políticas públicas para garantir renda, logística de distribuição, assessoria técnica e efetivação de que agricultores permaneçam na terra produzindo”, destaca a assessora jurídica popular da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt.
Solidariedade em outros termos
Ao entrar na cozinha de preparação das mil marmitas entregues gratuitamente nesta quarta-feira (22), em Curitiba, para grupos socialmente vulneráveis da capital, como população em situação de rua e comunidades periféricas, o cheiro sentido de longe é daquela comida boa, que alimenta. A distribuição de marmitas nesta quarta marca o Dia Internacional da Agricultora e do Agricultor Familiar, comemorado no próximo dia 25 de julho, e é fruto de doações de alimentos produzidos em diversas regiões do estado.
Preparada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e organizações da sociedade civil, entre elas a Terra de Direitos, a refeição que busca atender à fome da população a que o Estado ignora tem, nas suas diversas etapas, – desde o plantio, colheita, distribuição, produção e entrega dos alimentos – uma concepção de solidariedade às pessoas mais vulneráveis à crise social, econômica e à Covid.
A lógica que opera esta iniciativa das entregas das já mais de 8.800 refeições na capital e 258 toneladas de alimentos pelo Paraná desde o início da pandemia não é a entrega do excedente de alimentos, o produto que sobra ou o que não se quer mais. O que os agricultores familiares e da reforma agrária destinam para doação é parte do que consomem e do que seria um eventual lucro com a revenda. “As ações de solidariedade são o compartilhamento do que a gente produz. A mesma coisa que o camponês está comendo hoje lá, carne de porco, repolho, arroz e mandioca, os alimentos da estação, é o que está sendo distribuído na marmita e nas cestas”, destaca a integrante do setor de educação do MST, Mirelle Gonçalves.
O que se propõe com o compartilhamento das refeições e cestas – necessidade primeira da vida – não é apenas uma entrega, mas uma troca conduzida pelo alimento. “Diferente de uma relação vertical de poder, como a caridade, a solidariedade te propõe a pensar, a estabelecer relações de conexão com o outro, a refletir sobre por que este alimento é saudável e não tem veneno, como as pessoas podem estabelecer outra relação com a terra e como chega o alimento até a população”, sublinha Ceres.
“Mesmo não tendo conseguido conversar com a população da cidade pela pandemia o alimento traz uma notícia: campo e cidade é o mesmo povo, que luta pelos mesmos direitos e está lutando contra as dificuldades. Temos visto que as famílias do campo têm aprendido muito com a pandemia, sobre o povo da cidade, como as realidades da periferia e a periferia aprendido sobre a alimentação saudável, como produzimos, a forma como a gente se organiza, tem sido experiência de troca, na prática da solidariedade, e essa narrativa que antes parecia tão distante se encontrou mais rápido”, relata Mirelle.
Com um kit composto pela marmita, fruta, álcool gel, água e mel com açafrão em mãos recebido no centro de Curitiba por um dos grupos, o professor de educação física Daniel Vilanova reflete sobre a ação. “Disponibilizar o alimento saudável pra quem está na rua, dando o cara a tapa, se expondo, ajuda demais porque não precisamos tirar dinheiro do bolso para suprir uma necessidade básica”, relata. Trabalhador há três meses de aplicativos como alternativa ao desemprego, com jornada diária de 08 a 12 horas de trabalho necessária para o pagamento das contas, ele agradece e pergunta se no dia seguinte o grupo estará ali.