A solicitação de revisão do Guia não é fato isolado e representa uma intimidação explícita contra pessoas e organizações que defendem o acesso democrático à comida de verdade pautada nos princípios sociais, culturais e simbólicos da alimentação e, sobretudo nas evidências científicas.
A Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) que reúne profissionais, estudantes e experimentadoras e experimentadores das mais diversas áreas do conhecimento, juntamente com as organizações e coletivos que compõem a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida vem publicamente defender o Guia Alimentar para a população brasileira. É importante registrar que a Nota Técnica No 42/2020 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), publicada no dia 15 de setembro de 2020, faz uma análise superficial pautando-se em argumentos pseudocientíficos, leviana, preconceituosa e equivocada do Guia Alimentar, e reforça o não compromisso por parte do governo federal com a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) da população brasileira.
O Guia Alimentar, lançado em 2014 pelo Ministério da Saúde, é resultado de um longo, coletivo e qualificado processo de trabalho com vários especialistas do país e, sobretudo, com base em argumentos cientificamente comprovados, trazendo a relação do consumo alimentar associado ao surgimento de várias doenças decorrentes da má alimentação. Em um congresso sobre Segurança Alimentar e Nutrição, realizado em Quebec (Canadá), organizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) junto ao governo de Quebec, o Guia Alimentar para a população brasileira foi destacado como um dos poucos modelos a serem seguidos no mundo1. O nosso Guia é referência nacional e internacional para:
- A promoção da saúde – das pessoas e do ambiente;
- Promover a transição dos sistemas alimentares;
- Potencializar circuitos curtos de produção e consumo;
- Estimular práticas alimentares sustentáveis e saudáveis;
- Impulsionar processos de desenvolvimento de habilidades culinárias;
- Auxiliar na criação e implementação de políticas públicas. A classificação NOVA, da qual a Nota Técnica solicita “imediata retirada”, diz respeito à classificação dos alimentos conforme seu nível de processamento. Foi o ineditismo dessa classificação, desenvolvida por uma qualificada equipe de cientistas da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que revolucionou a forma de se entender os alimentos, auxiliando a sociedade na compreensão do que é “comida de verdade”. Em muitos países desenvolvidos existe um elevado consumo de “alimentos”, ou melhor, de produtos ultraprocessados, e a proposta da Nota Técnica do MAPA, ao dizer que “essa edição do Guia está usando uma classificação confusa, incoerente, que impede ampliar a autonomia das escolhas alimentares”, revela claramente o interesse em estimular o consumo de alimentos industrializados, que geram lucros para a indústria de alimentos e repercutem negativamente na saúde das pessoas e do ambiente.
Sabe-se que os produtos ultraprocessados possuem uma estabilidade considerável e interessante (vida de prateleira) para fins de comercialização, porém não se justifica o incentivo e a defesa do seu consumo se há evidências2 sobre a associação do seu consumo cotidiano e o aumento de uma série de doenças crônicas, entre elas obesidade e diabetes, além de afetarem negativamente culturas alimentares, a vida social e o meio ambiente. Inclusive, a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO) faz recomendações em consonância com o Guia.
Sobre a “autonomia das escolhas alimentares”, o Guia Alimentar mostra que a questão da alimentação saudável não pode ser atribuída meramente a escolhas individuais. Muitos fatores – de natureza física, econômica, política, cultural ou social – podem influenciar positiva ou negativamente na alimentação das pessoas, e isso deve ser considerado e orientado em documentos oficiais, como é o objetivo do Guia. Além disso, todas as nossas escolhas têm impacto no planeta. Neste sentido convém mencionar também o relatório da comissão The Lancet composta por cientistas de distintas áreas do conhecimento cuja associação das pandemias de obesidade, desnutrição e crise climática resulta no fenômeno da “Sindemia Global”, que faz referência à simultaneidade no espaço e no tempo dessas três pandemias.
Em relação à questão do acesso aos alimentos, dados divulgados recentemente pela Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada pelo IBGE3 entre 2017-2018 indicaram 84,9 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil, ou seja, indivíduos inseguros quanto ao acesso aos alimentos em quantidade e qualidade, uma expressão real da fome. A discussão sobre essa temática é ampla e multifatorial, e o Guia Alimentar traz o componente da qualidade do alimento para além das questões sanitárias, na verdade serve como instrumento de informação para a criação e implementação de políticas públicas no sentido de indicar, por exemplo, que produtos como refrigerante e macarrão instantâneo, muito consumidos no país “são formulações industriais feitas totalmente ou em grande parte de substâncias extraídas de alimentos, derivadas de constituintes de alimentos, sintetizadas em laboratório, realçadores de sabor e aditivos”, sendo portanto, ultraprocessados.
Pelo exposto, a ABA-Agroecologia e Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida reiteram a necessidade real e urgente de se direcionar esforços para criar e/ou fortalecer os sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis, pautados nos sistemas agroecológicos, incentivando a produção e o consumo de alimentos in natura livres de transgênicos e de resíduos de agrotóxicos, bem como maior vigilância sobre o uso dos mesmos, assim como estimula o maior consumo de alimentos in natura e de processados com menos conservantes, aditivos e corantes. A agroecologia concebe a comida de verdade como sendo fundamental para a promoção da saúde (das pessoas e do ambiente). Nestes termos, ABA-Agroecologia defende o Guia Alimentar para a População Brasileira como um dos instrumentos de proteção ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e dialoga e apoia as notas de repúdio já publicadas da SBEM, SBD e ABESO4; do CONSEA/RJ5, do Nupens/USP6 e do PENSO7.
Brasil, 05 de outubro de 2020
ABA – Agroecologia
Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida
1 Guia Alimentar Brasileiro inspira versão canadense:
2 Revisão sistemática e metanálise foram conduzidas para analisar as evidências documentadas sobre a associação entre alimentos ultraprocessados com sobrepeso e obesidade. (Askari https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32796919/ et al, 2020).
2 Revisão sistemática de estudos observacionais que investigaram a associação entre o consumo de ultraprocessados e o estado de saúde. (Pagliai https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32792031/ et al, 2020).
2 Revisão sistemática das evidências, sobre consumo alimentar de acordo com o processamento e fatores cardiometabólicos em adultos e/ou idosos. (Santos https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32725096/ et al, 2020).
2 Revisão sistemática para resumir e discutir evidências da relação entre o consumo alimentar de acordo com o grau de processamento dos alimentos e o risco cardiometabólico. (Meneguelli https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32053758/ et al, 2020).
3 Agência de notícias do IBGE:
4 Nota de repúdio da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e a Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO): https://drive.google.com/file/d/1YH_tFjdsQKy- KqrjF1AuK0KSaezPXr3r/view?usp=sharing
5 Nota de repúdio do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Rio de Janeiro (CONSEA/RJ): https://drive.google.com/file/d/1ABVcsPQtMCyfQeOt5QzvhGN5eNgKyUuX/view
6 Manifestação do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP): http://www.fsp.usp.br/nupens/nota-oficial
7 Nota Pública do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Nutrição e Saúde Coletiva (PENSO):