Sai a sardinha enlatada, entra o surubim. Como parceria com os povos amazônicos substitui, nas escolas do estado, ultraprocessados por alimentos tradicionais. Adquiridos pelo PNAE, tanto estudantes como comunidades são beneficiados
Por Roberto Almeida e Juliana Radler, do ISA
As riquezas das roças, rios, quintais e florestas dos povos indígenas do Rio Negro, reconhecidas como patrimônio imaterial do Brasil, estão começando a promover uma virada nutricional e de autoestima na merenda escolar de municípios do Amazonas.
Os resultados positivos são fruto do esforço interinstitucional da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa) e instituições dos governos federal, estadual e municipal, movimentos e lideranças indígenas e de comunidades tradicionais, e organizações da sociedade civil.
Criada em 2016, a Catrapoa, finalista do prêmio Innovare, elaborou uma nota técnica sobre alimentação escolar indígena, trabalhou na adequação dos editais, no mutirão de cadastramento de produtores e na elaboração de projetos de venda de produtos.
O objetivo: o cumprimento da lei que obriga que Estados e municípios usem 30% dos recursos federais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para a compra da produção da agricultura familiar, com prioridade para alimentos produzidos em assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas.
“Temos apoiado esse trabalho de articulação para que os agricultores indígenas possam vender seus produtos via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e PNAE porque acreditamos que essas políticas podem contribuir muito para o desenvolvimento socioeconômico da região”, ressalta Nildo Fontes, do povo Tukano, diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).
“Vamos fortalecer esse processo para que mais agricultores indígenas se beneficiem desse trabalho também”, continua.
Assim, aos poucos, começam a sair de cena das despensas das escolas indígenas o arroz, o macarrão, o óleo de soja e os produtos ultraprocessados, como carnes enlatadas, biscoitos e refrescos em pó, contraindicados pelo próprio Ministério da Saúde, e passam a fazer parte das merendas os frutos da resistência e da cultura indígena rionegrina.
Em São Gabriel da Cachoeira, as aulas estão suspensas por conta da pandemia da Covid-19, mas a distribuição de alimentos foi mantida após decreto do governo federal e regras estabelecidas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação.
Em julho, a prefeitura apresentou o resultado da chamada pública para agricultura familiar que contemplou, ao todo, 152 produtoras e produtores de comunidades indígenas dos rios Negro, Tiquié, Içana, Xié, Uaupés e Ayari para fornecer alimentos para atendimento dos alunos da rede pública municipal de ensino.
O valor direcionado para compra dos produtos foi de aproximadamente R$ 1,7 milhão, 14 vezes superior ao aplicado no ano passado, e está em processo de liberação e acompanhamento.
Neste ano, por exemplo, a Associação Indígena da Etnia Tuyuka de Moradores de São Gabriel da Cachoeira (Aeitu) aumentou suas vendas via PNAE em relação a 2019.
“Durante a pandemia percebemos que as famílias receberam as cestas de alimentos e por isso houve um aumento dos pedidos”, conta Pastor Marques Lima, coordenador geral da associação e principal articulador dessas políticas públicas junto ao seu povo Tuyuka.
“Os resultados mostram que, com políticas públicas adequadas, os produtos da Amazônia têm um alto potencial para geração de renda para as populações rurais a partir das práticas agrícolas tradicionais e sustentáveis”, disse Natalia Pimenta, assessora do ISA.
Além da geração de renda, oferecer comida de qualidade para as crianças indígenas da região é um passo importante para a valorização e salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“Onde tem aluno, onde tem escola, onde tem merenda, existe a possibilidade de venda da produção local. Não podemos deixar retroceder essa política pública. Mudar a lei do PNAE poderia simplesmente quebrar todo esse esquema”, afirmou Fernando Soave, procurador da República no Amazonas (MPF-AM) e coordenador da Catrapoa.
Segundo ele, o caminho é avançar no Amazonas e em outras regiões do país para sensibilizar os gestores e promover um apoio técnico de extensão rural diferenciada, que reconheça os cultivos tradicionais e garanta o acesso às compras públicas.
“Nesse contexto de pandemia, a compra de produtos indígenas para a alimentação escolar traz adequação ao contexto das comunidades, em que a produção é mais nutritiva, geralmente orgânica. Eu não vejo nenhum ponto negativo nessa solução”, disse.
A articulação para inserção de produtos da agricultura familiar na merenda escolar no Rio Negro conta com a participação do Ministério Público Federal, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de São Gabriel da Cachoeira, do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM) e do Instituto Socioambiental, com apoio da União Europeia.