Por Marco Antônio Delfino de Almeida no Correio Braziliense
“Em junho de 2019, recebi indicação de lideranças de movimentos sociais para que eu evitasse os mesmos caminhos, para que eu alterasse os meus horários, para que alterasse a minha rotina, de forma a me proteger de possíveis ataques dos setores econômicos envolvidos com a temática sobre a qual eu me debruço.”
O trecho da carta da dra. Larissa Mies Bombardi, professora do Departamento de Geografia da USP, chocou os defensores da pauta civilizatória. Trata-se de ameaça à ciência independente, que aponta riscos ao meio ambiente e à vida humana. Num tempo de fúria contra medidas sanitárias, o obscurantismo também mostra as garras diante da ciência que expõe as mudanças climáticas e os danos ambientais de métodos predatórios de produção. A ameaça à dra. Larissa representaria mais um triste episódio na escalada do raso senso comum contra o conhecimento científico.
Em seu didático Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, a dra. Larissa alerta para a permissividade aos agrotóxicos, presentes inclusive na água que sai de nossas torneiras. A obra tornou-se referência obrigatória nos espaços em que o tema é estudado com seriedade, no Brasil e no exterior. Prova de sua relevância é a solidariedade imediata de uma série de instituições acadêmicas e governamentais, além das organizações da sociedade civil de defesa contra os agravos dos insumos químicos à natureza e à vida humana.
A prática da intimidação a cientistas não é nova na história. Giordano Bruno, Galileu Galilei e Charles Darwin são alguns dos casos mais conhecidos. Em 1962, a autora de Primavera Silenciosa, Rachel Carson, demonstrou cientificamente os danos de agrotóxicos organoclorados ao meio ambiente e à saúde humana. Sofreu uma campanha difamatória repleta de ataques pessoais, à sua condição de mulher pesquisadora. Ilustra os ataques o trecho de carta publicada na revista The New Yorker: “A posição de Rachel Carson reflete suas simpatias comunistas. Nós podemos viver sem pássaros ou animais, mas como demonstra a atual queda do mercado, não podemos viver sem a economia”.
Na mesma época, o golpe militar de 1964, no Brasil, desencadeou a perseguição explícita à ciência, com as icônicas ocupações da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e da UnB. À ocupação, seguiram-se as cassações, com o AI-5, de abril de 1969, em que foram compulsoriamente aposentados 41 professores universitários. Em 1º de abril de 1970, 10 cientistas da Instituição Oswaldo Cruz (precursora da Fiocruz) foram cassados com base no mesmo AI-5. Entre eles Herman Lent, referência mundial no estudo de besouros, o inseto transmissor da doença de Chagas, no episódio conhecido como Massacre de Manguinhos.
É fundamental que não haja indiferença diante desses tristes episódios. O Estado deve respeitar, proteger e garantir o livre pensar. Não é cabível que a ciência, que agonizou com o negacionismo religioso e ditatorial, curve-se ao negacionismo alimentado por milícias digitais. É dever das instituições do Estado a tempestiva apuração dos fatos. Não é admissível que um país, reconhecidamente perigoso para jornalistas naturalize, as ameaças a cientistas.
O episódio também joga luz no déficit de reconhecimento do protagonismo das mulheres cientistas. O livro La Ciência Oculta, editado pela Fundação Dr. Antonio Esteve (Espanha), examina o papel de 14 grandes pesquisadoras relegadas ao segundo plano, ou deixadas no miserável anonimato, apesar da grande contribuição para a ciência. “O papel da mulher na ciência esteve — e está — cheio de dificuldades”, resume o autor.
A narrativa da covarde ameaça descortina a desigualdade de gênero e a falta de apoio no local de trabalho, expondo dramaticamente a assimetria na carga das responsabilidades domésticas no cenário pandêmico, com a sintomática reflexão da dra. Larissa: “Eu me perguntava: como uma mulher, mãe de dois filhos, única responsável pelas crianças e pela rotina das crianças poderia mudar algo na rotina”.
O recrudescimento da pandemia, com intensas perdas e muita dor, que também resulta do desprezo para as orientações da ciência, é mais um alerta para que a sociedade, que se pretende civilizada, tenha consciência dos danos causados pela sanha negacionista em relação aos agrotóxicos. A ameaça a cientistas compromete as possibilidades de um ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para as presentes e futuras gerações.