Por que as crianças são as mais impactadas pelos agrotóxicos?

Por Camilla Hoshino
Da Lunetas

Ocaso de contaminação de André Lucas, 7, por pulverização aérea de agrotóxicos sobre as comunidades de Carranca e Araçá (município de Buriti), no leste do Maranhão, ganhou repercussão nacional e internacional no início de maio. O menino e outros oito moradores foram atingidos pelo veneno em 22 de abril, após três dias de sobrevoo de uma aeronave agrícola sobre a área, onde vivem cerca de 100 pessoas da agricultura familiar. 

Representantes do Ministério da Saúde estiveram na região para investigar o caso e coletar água para análise, além de médicos infectologistas enviados pela Secretaria Estadual de Saúde, com o apoio da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). Enquanto adultos e idosos relataram coceiras, febres, vômitos e manchas no corpo, a consequência foi mais grave para André, que logo apresentou queimaduras e feridas na cabeça, mãos, pernas e pés. 

Após denúncia dos moradores, o sojicultor Gabriel Introvini, proprietário da Fazenda São Bernardo, foi identificado como responsável pela contratação do voo, porém a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) afirma que não havia licenciamento ambiental para a atividade aérea. Notificado pelo Ministério Público do Maranhão, o fazendeiro foi obrigado a custear equipes médicas aos povos atingidos por enfermidades decorrentes de pulverizações terrestres e aéreas em sua propriedade, cessar imediatamente as pulverizações e pagar infração no valor de 273 mil reais. 

Como não se trata de um caso isolado na região, dezenas de organizações locais e nacionais emitiram uma nota de repúdio, solicitando providências urgentes ao Governo do Estado do Maranhão e atenção especial às comunidades atingidas.

“Recentemente, mais de 40 pessoas da comunidade Gameleira, em Brejo, também denunciaram que estão sendo submetidas à contaminação por agrotóxico há mais de cinco anos. Em Buriti, são mais de oito comunidades afetadas”, denuncia Angela Silva, presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), entidade que também assina o documento. Segundo ela, a Federação ainda não tem a dimensão exata do dano ambiental e à vida humana decorrente desse tipo de contaminação por falta de maior fiscalização e poucas pesquisas realizadas no Estado sobre o tema. 

“Chuva de agrotóxicos”

A pulverização aérea de agrotóxicos sobre lavouras é regulada pela Lei Nacional dos Agrotóxicos, de 1989, e determina que estados possam legislar sobre uso, armazenamento, consumo, produção e comércio, enquanto municípios sobre uso e armazenamento. 

A tentativa de impedir a também chamada “chuva de agrotóxicos” já garantiu algumas vitórias. No Ceará, por exemplo, a prática é proibida desde 2019, pela lei estadual 16.820/19.

Em 2008, por determinação do Ministério da Agricultura, não é permitido esse tipo de aplicação a menos de 500 metros de povoados, cidades e mananciais.

Impacto dos agrotóxicos na saúde

Em outras regiões do Brasil, cientistas têm se dedicado a analisar o impacto dos agrotóxicos na saúde e no meio ambiente. Entre eles, destaca-se a médica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cariri, Ada Pontes Aguiar, com o estudo intitulado “Más-formações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE)”. 

Atrativo de empreendimentos ligados à fruticultura irrigada desde 2000, a região da Chapada do Apoti, no Ceará, foi palco de denúncias realizadas pela comunidade de Tomé, com cerca de dois mil moradores, sobre doenças e complicações de saúde antes inexistentes na região.

“Entre 2014 e 2016, nasceram cinco crianças com má-formações congênitas, o que é alarmante e raro até em grandes cidades”, afirma Ada.

Ao investigar o histórico, os fatores genéticos e a exposição dos membros de oito famílias (cinco com casos de má-formações e três de puberdade precoce) a substâncias tóxicas, a médica encontrou proporções significativas de organoclorados (elemento presente nos agrotóxicos) no sangue e na água, além de 40% da urina com substância relacionadas à disfunção endócrina. As amostras foram analisadas pelo laboratório da FioCruz, no Rio de Janeiro. 

O problema é que as substâncias encontradas por Ada foram proibidas no Brasil na década de 1990, o que leva a professora a duas hipóteses: produtos estão sendo utilizados de forma irregular ou essas famílias foram contaminadas há muito tempo, passando as substâncias para os filhos pelo leite materno ou via placenta. Esta última conclusão vai ao encontro de outros estudos importantes feitos pelo professor da Universidade Federal do Mato Grosso e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Vanderlei Pignatti, que já embasaram organizações da sociedade civil e governamentais na discussão sobre o uso de agrotóxicos no Brasil. “Como se trata de substâncias bioacumuladoras, elas podem demorar décadas para serem diluídas no meio ambiente”, alerta Ada. 

Afinal, o que são agrotóxicos?

Os agrotóxicos são produtos químicos ou biológicos utilizados para eliminar organismos não desejados da flora ou da fauna das plantações. Produtores rurais e defensores desses venenos costumam dizer que eles servem para evitar as “pestes” que atacam as lavouras, e por isso é comum chamá-los de pesticidas (um guarda-chuva para inseticidas, fungicidas e herbicidas). Porém, o engenheiro agrônomo, da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, Leonardo Melgarejo, defende que a palavra correta a ser utilizada é “agrotóxico”. 

O termo foi cunhado em 1977 pelo professor Adilson Dias Paschoal, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) e evita, a princípio, um problema de cunho etimológico: a palavra “peste” se relaciona a doença e esses produtos usados na agricultura atacam agentes causadores e não as doenças em si. “A expressão ‘defensivos agrícolas’ foi criada para distorcer o efeito tóxico do produto. Os herbicidas, por exemplo, que são os mais utilizados em volume, não têm objetivo de ‘defender’, mas de destruir alguma forma de vida indesejada nas lavouras”, afirma Leonardo. 

Crianças e populações rurais são mais afetadas pelos agrotóxicos

Embora todas as pessoas estejam expostas em alguma medida aos agrotóxicos encontrados no ar, na água ou nos alimentos, a médica Ada Pontes Aguiar atenta para seus efeitos em populações mais vulneráveis, como as crianças. Mesmo que uma família inteira seja exposta, a quantidade de veneno que se concentrará nas crianças será maior em virtude de seu peso corporal. 

“Crianças ainda estão desenvolvendo o sistema metabólico e imunológico, portanto, terão maior dificuldade em lidar com a concentração de veneno no corpo, metabolizado especialmente pelo fígado e rins”, explica Ada.

Quanto menor for a criança, portanto, mais perigoso será o efeito do contato com os agrotóxicos. “Se houver exposição na fase intrauterina a substâncias desreguladoras endócrinas e isso ocorrer no período da janela da organogênese [fase do processo embrionário que dá origem aos órgãos internos do corpo], há chances de acontecerem má-formações do coração ou outros membros”. Além disso, mesmo que a criança nasça aparentemente saudável, ela corre riscos de ter problemas de desenvolvimento e crescimento imprevisíveis no futuro. 

Ao contrário do poder de decisão de parte da população urbana em optar por feiras orgânicas, agroecológicas ou tratamento adequado de água, as famílias que vivem próximas a áreas de pulverização têm sua autonomia afetada, mesmo que decidam plantar o próprio alimento sem veneno, pois estarão mais expostas à contaminação. 

Nesse sentido, as infâncias rurais são particularmente vulnerabilizadas, por viverem encurraladas por empreendimentos agrícolas, apresentando problemas evidentes de saúde, como nos casos das comunidades de Araçá (MA) e Tomé (CE). O próprio brincar em contato direto com chão, objetos, e elementos da natureza, tão genuíno e saudável às crianças, se torna um fator de risco nessas áreas.  

Trigo transgênico

Pão quentinho, bolo de aniversário e os biscoitos da vovó: o cheiro da cozinha à base de trigo poderia ser delicioso se não fosse tão trágico. No dia 10 de junho, o Brasil pode votar a liberação comercial de um trigo transgênico desenvolvido na Argentina, na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). A planta foi geneticamente modificada para ser resistente ao herbicida glufosinato de amônio. “Ele é extremamente perigoso para seres em fase de crescimento e formação, mas pode estar presente em ingredientes de comidas das festinhas de crianças. Essa é uma articulação que faz parte das estratégias de expansão das empresas transnacionais em territórios como América do Sul”, alerta Leonardo. 

Entenda o que está por trás da disputa dos agrotóxicos

O Brasil é o segundo maior comprador mundial de agrotóxicos proibidos em solo europeu. Em 2019, o volume foi de 12 mil toneladas, segundo dados inéditos da Public Eye e do Unearthed, publicados a partir de leis de acesso à informação, contendo dados da Agência Europeia de Produtos Químicos e de órgãos de países como França, Alemanha, Bélgica e Reino Unido, sede das empresas químicas, como Syngenta, Basf e Bayer – as três maiores fabricantes europeias.  

Embora proibidos em solo europeu, mais de 40 tipos diferentes de agrotóxicos foram autorizados para fabricação e exportação. Entre os motivos da proibição estão a evidência sobre efeitos dos produtos e sua relação com câncer, infertilidade e más-formações de bebês, bem como contaminação de água e animais, como as abelhas. 

O estudo recente “Situação regulatória internacional de agrotóxicos com uso autorizado no Brasil: potencial de danos sobre a saúde e impactos ambientais”, publicado em abril pela FioCruz, corrobora estes resultados. A pesquisa identificou 399 ingredientes ativos de agrotóxicos registrados no Brasil para uso agrícola, com exceção de microbiológicos e agentes biológicos de controle. Destes, 41,5% não têm autorização na Comunidade Europeia, 85,7% na Islândia, 42,4% no Japão e 25,6% nos Estados Unidos. 

“O Japão, por exemplo, é o maior consumidor de agrotóxicos em área cultivada por metro quadrado, mas os agricultores utilizam produtos mais caros e mais seguros. A questão é que nas grandes culturas, pastagens e lavouras, nós usamos venenos baratos, que praticamente não existem em outros lugares”, afirma Leonardo Melgarejo.  

“Como o Brasil pode liberar um produto que não tem autorização em seu país de origem?”

Liberação

Os agrotóxicos não entram em solo brasileiro sem o aval do Ministério da Agricultura, da Anvisa e do Ibama, órgãos responsáveis por avaliar o grau de periculosidade ambiental e toxicológica dos produtos. Essa análise é feita pela coleta de informações toxicológicas de cada produto separado. Em julho de 2020, uma alteração no Marco Regulatório da Anvisa determinou que só receberão a classificação de toxicidade máxima substâncias que levarem à morte horas depois do contato ou ingestão. Com isso, apenas seis produtos, no ano passado, foram classificados como extremamente ou altamente tóxicos. 

A disputa econômica e política por trás dos agrotóxicos não pode ser compreendida sem o mercado dos transgênicos que, há muito anos, propaga a promessa de aumento da produtividade de alimentos e redução do uso de veneno nas lavouras decorrente dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM). A “modernização” via transgênicos trouxe uma novidade preocupante: as plantas são modificadas geneticamente para receber aplicação dos agrotóxicos, mas seu uso continuado faz com que deixe de morrer aquilo que se queria atacar. Sendo assim, como explica Leonardo, empresas lançam constantemente sementes tolerantes a novas doses de herbicidas. “Ou seja, estamos provocando uma seleção negativa de insetos e plantas.” 

Isso cria mais um problema na prática, que é a aplicação combinada de agrotóxicos. Em outras palavras, agricultores misturam vários tipos de venenos diferentes no tanque e aplicam tudo de uma vez. “Essa prática potencializa a sinergia e não temos informação sobre seus efeitos combinados na saúde e no meio ambiente”, diz Leonardo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *