Por Alan Tygel l Mídia Ninja – Publicado em 28 de maio de 2024.
Já não é novidade para ninguém a estreita relação entre a catástrofe em curso no Rio Grande do Sul e as mudanças climáticas provocadas pela atividade humana, sobretudo a partir da era industrial e da consolidação do capitalismo como sistema dominante nas relações sociais e econômicas. Tanto o volume das chuvas, quanto a frequência com que têm ocorrido e a incapacidade de escoamento das águas são efeitos diretos do desequilíbrio ambiental, provocado pelo desmatamento e pela poluição química.
Tampouco é novidade que, apesar de todos os alertas que já soam há pelo menos 3 décadas, a legislação ambiental continua a ser flexibilizada e enfraquecida, deixando a porteira cada vez mais escancarada para que a boiada possa passar bem à vontade.
No contexto da agricultura, em especial no tema dos agrotóxicos, infelizmente não tem sido diferente. Após 10 anos de tramitação, o Pacote do Veneno foi aprovado no Senado e sancionado pelo presidente Lula no dia 27 de dezembro de 2023. A nova lei de agrotóxicos desmonta o sistema de registros tripartite que vigorava desde 1989, em que os órgãos de meio ambiente, saúde e agricultura dividiam igualmente as atribuições e poderes no registro e reavaliação de agrotóxicos. Agora, todo o processo ocorre sob coordenação do Ministério da Agricultura – dominado pelo lobby do agronegócio, que tem sozinho o poder de decidir sobre o registro de novas substâncias.
Os vetos do presidente Lula, que buscavam manter o mínimo de civilidade, preservando as atribuições do Ibama e da Anvisa na reavaliação de agrotóxicos, foram derrubados por um placar ainda mais contundente do que o da própria aprovação do projeto no Congresso.
Foram extintos também os critérios proibitivos para o registro de agrotóxicos, que impediam substâncias cancerígenas, mutagênicas, teratogênicas ou capazes de causar alterações hormonais de serem registradas. E ficou liberada a produção, em território nacional, de agrotóxicos banidos no Brasil, caso se destinem à exportação. A exemplo de países da União Europeia, que enviam para nós os agrotóxicos banidos por lá, agora podemos fazer o mesmo com países que possuem legislação ainda mais frágil.
Agora, diante de uma lei consolidada, porém eivada de inconstitucionalidades, resta-nos recorrer ao Supremo Tribunal Federal para fazer valer o nosso direito a um meio ambiente equilibrado.
Se a batalha do Pacote do Veneno já foi perdida, uma outra segue em curso: a da Reforma Tributária. Desde sua criação, em 2011, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida vem denunciando que os agrotóxicos no Brasil não pagam imposto. Apenas em 2017, segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, os estados e a União deixaram de arrecadar R$ 9,86 bilhões com o chamado Bolsa-Agrotóxico, ou seja, os benefícios fiscais concedidos aos agrotóxicos. Dinheiro que poderia, por exemplo, financiar a transição agroecológica no Brasil, ou mesmo custear o tratamento das vítimas das intoxicações por agrotóxicos.
Em dezembro de 2023, o Congresso promulgou a Emenda Constitucional 132, que promove uma reforma no sistema tributário brasileiro. O objetivo principal é o de simplificar a cobrança de impostos no Brasil, mas a reforma também representa uma oportunidade única para que o Brasil possa rever a farra das isenções fiscais aos agrotóxicos.
Além de isentar de impostos os produtos da cesta básica, em especial alimentos in natura ou minimamente processados, o novo texto constitucional concede 60% de redução de impostos para insumos agropecuários, e cria o imposto seletivo, uma alíquota extra voltada para “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.
Seria a oportunidade perfeita para, por um lado, conceder isenção de 60% dos impostos para insumos agrícolas autorizados para a agricultura orgânica, e por outro lado incluir os agrotóxicos – produtos claramente prejudiciais à saúde e ao meio ambiente – no imposto seletivo, cobrando deles a carga cheia de impostos, além de uma taxa adicional com objetivo de desestimular seu uso.
Estas definições se darão com a regulamentação da reforma tributária, que está em discussão neste momento. A proposta inicial apresentada pelo governo, apesar de acertar na cesta básica livre de alimentos ultraprocessados, e na inclusão de refrigerantes no imposto seletivo, mantém parte das isenções fiscais aos agrotóxicos. Seguiremos atuando nos próximos meses para reverter esse quadro.
Outra grande oportunidade para o governo acenar para a direção correta é o atual processo de elaboração do III Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – Planapo. Em 2014, no âmbito deste mesmo plano, foi elaborado o Pronara – Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, que estipulava um conjunto de medidas – nada revolucionárias, diga-se de passagem – para reduzir o uso de agrotóxicos e incentivar métodos alternativos de produção. O Pronara foi aprovado por todos os ministérios envolvidos, porém nas vésperas do lançamento acabou sendo barrado pela então ministra da agricultura, Kátia Abreu.
Seria de fundamental importância que o governo federal, junto com a sociedade civil, pudessem ainda neste ano realizar uma revisão do Pronara e realizar seu lançamento, como forma de comunicar para a sociedade o compromisso real com a saúde da população e o meio ambiente.
Se a pandemia da Covid-19, com o grau de sofrimento e perdas que causou, não foi capaz de reorientar os rumos da nossa sociedade e sua relação com o meio ambiente, é difícil imaginar que a tragédia climática pela qual o povo gaúcho está passando consiga mover o país rumo a uma nova consciência ambiental.
A depender do Congresso Nacional, com a atual composição, ficaremos apenas aguardando qual será o próximo estado a sofrer com as chuvas, secas, nuvens de poeiras ou ondas de calor. O Governo Federal, por outro lado, tem capacidade, e precisa mostrar à sociedade que tem também vontade de mudar os rumos da política ambiental brasileira frente aos enormes desafios que temos pela frente.