A revista Veja da última semana publicou uma matéria buscando “esclarecer” os brasileiros sobre osalegados “mitos” que vêm sendo difundidos sobre os agrotóxicos desde a divulgação pela Anvisa(Agência Nacional de Vigilância Sanitária), no início de dezembro último, dos dados do PARA –Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos referentes ao ano 2010. A revista sepropõe a tranquilizar a população, certamente alarmada pelo conhecimento dos níveis de contaminaçãoda comida que põe à mesa.
Os entrevistados são todos conhecidos defensores dos venenos agrícolas, em sua maioria professores universitários, alguns dos quais com atuação direta junto a indústrias do ramo – como é o caso do Prof. José Otávio Menten, da ESALQ/USP, em Piracicaba, que já foi diretor executivo da ANDEF (Associação Nacional de Defesa Vegetal), que reúne as empresas fabricantes de veneno (vínculos como esses não são explicitados na matéria). A única exceção entre os entrevistados é Luiz Cláudio Meireles, gerente geral de toxicologia da Anvisa, cuja fala aparece imediatamente contestada por outro especialista.
A revista começa por afirmar que chamar os venenos da agricultura de “agrotóxicos” seria uma imprecisãoultrapassada e injustamente pejorativa, alertando os leitores que “o certo” seria adotar o termo(supostamente mais técnico) “defensivos agrícolas”. Não menciona que a própria legislação sobre amatéria (tanto a lei federal 7.802/89 como todas as leis estaduais) refere-se aos produtos comoagrotóxicos mesmo – uma denominação de fato precisa e importante para alertar os manipuladoresdessas substâncias dos ricos que apresentam.
A matéria passa então para a relativização dos resultados apresentados pelo relatório do PARA, elaborado pela Anvisa, fundamentalmente minimizando a gravidade da presença de resíduos de agrotóxicos acima dos limites permitidos. Para isso, cita especialistas alegando que os limites seriam “altíssimos”, e que, portanto, quando “um pouco ultrapassados”, não representariam qualquer risco para a saúde dos consumidores.
A verdade, lamentamos dizer, é que a ciência que embasa a determinação desses limites é imprecisa e fortemente criticada. Evidência disso é o fato de os limites comumente variarem ao longo do tempo – à medida que novas descobertas sobre riscos relacionados aos produtos são divulgadas, os limites tendem a ser diminuídos. Os limites “aceitáveis” no Brasil são em geral superiores àqueles permitidos na Europa (isso pra não dizer que aqui ainda se usa produtos já proibidos em quase todo o mundo).
A revista também relativiza os riscos de longo prazo para a saúde dos consumidores, bem como os riscos para os trabalhadores expostos aos agrotóxicos nas lavouras. Segundo a Veja, não haveria comprovações científicas nesse sentido (ora, seria desnecessário dizer que o que não falta são referências científicas relacionando a exposição aos agrotóxicos aos mais variados agravos de saúde).
A reportagem termina tentando colocar em cheque as reais vantagens do consumo de alimentos orgânicos. Apresenta afirmações confusas sobre os elementos químicos como o enxofre ou sua formulação na calda bordalesa, ou fertilizantes a base de sulfato de potássio, permitidos na agricultura orgânica, e questiona a eficácia dos sistemas de certificação de produtos orgânicos. Por fim, menciona os “riscos” do consumo de orgânicos, que “podem ser contaminadas por fungos ou por bactérias como a salmonela e a Escherichia coli.” Só não esclarece que, ao contrário dos resíduos de agrotóxicos, esses patógenos – que também ocorrem nos alimentos produzidos com agrotóxicos – podem ser eliminados com a velha e boa lavagem ou com o simples cozimento.
Da revista Veja, sabemos, não se poderia esperar nada diferente. Trata-se do principal veículo de comunicação da direita conservadora e dos grandes conglomerados multinacionais no País. Mas podemos destacar que publicação desse suposto “guia de esclarecimento” revela que o alerta sobre os impactos do modelo da agricultura industrial está se alastrando e informações mais independentes estão alcançando cada vez mais setores da população – ao ponto de merecerem tentativa de desmentido pela Veja e pela indústria.
Mudança de normas para esconder contaminação
O Ministério da Agricultura vem se movimentando no sentido de reverter ou minimizar o mal estar gerado, ano após ano, com divulgação pela Anvisa dos dados de contaminação dos alimentos por agrotóxicos.
Uma das irregularidades recorrentemente encontradas é a presença de resíduos de venenos não autorizados para as culturas em questão. Trata-se, na maioria dos casos, de agrotóxicos autorizados para grandes culturas como soja, milho ou algodão, que são utilizadas irregularmente em hortaliças como o pimentão ou o morango – as chamadas minor crops (em inglês, culturas menores).
Matéria publicada hoje (13/01) pelo Valor Econômico mostra que o Ministério da Agricultura publicounorma buscando facilitar a extrapolação do registro de agrotóxicos autorizados para as grandes culturaspara as culturas menores de mesma família botânica.
Luís Eduardo Rangel, coordenador-geral de agrotóxicos do Ministério da Agricultura, afirmou ao Valor que já foram protocoladas cerca de 20 solicitações de extrapolação de registro e citou pedidos de empresas como a Syngenta, a Basf e a FMC. Segundo o coordenador, as primeiras aprovações são esperadas para março ou abril.
A medida lembra um pouco a imagem de empurrar a sujeira para baixo do tapete: em vez de se estimular os agricultores a adotar melhores práticas de manejo, regulariza-se a utilização de produtos químicos perigosos que, na prática, já são aplicados. Mais ou menos o que aconteceu com a soja transgênica no Brasil, que foi autorizada pelo governo porque já era um fato consumado, e não porque estudos científicos tivessem demonstrado sua segurança (estudos esses não realizados até hoje).
Como resultado da nova norma das minor crops, na próxima avaliação da Anvisa provavelmente teremos muito menos amostras de alimentos classificadas como insatisfatórias. Infelizmente, não estarão menos contaminadas.
Maiores informações sobre os agrotóxicos e sobre o Programa de Monitoramento da Anvisa podem serencontradas no livro “Agrotóxicos no Brasil – um guia para ação em defesa da vida”, de Flavia Londres.