SBTox intoxicada: “Eu me sinto desapontada pelo lado escolhido no Congresso de Toxicologistas”

Professora denuncia que Congresso Brasileiro de Toxicologia foi dominado pelas empresas de agrotóxicos. Monsanto, Basf, Bayer, Dow e Syngenta, além da Andef, tiveram posição privilegiada para defender seus produtos.

Segundo a definição da enciclopédia colaborativa Wikipedia, “A toxicologia é uma ciência multidisciplinar que tem como objeto de estudo os efeitos adversos das substâncias químicas sobre os organismos.” A partir desta definição, devemos nos perguntar: podem os próprios fabricantes das substâncias químicas estudar os efeitos adversos destas substâncias sem que os seus interesses comerciais interfiram nos resultados, ou ainda na sua credibilidade?

Foi justamente essa pergunta que a Profa. Dra. Leiliane Coelho André, vice-diretora do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, ligado à Faculdade de Farmácia da UFMG, fez à Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox). A SBTox teve seu congresso financiado pelas grandes empresas de agrotóxicos, incluindo a Dow Chemical e Basf. Leiliane denuncia que, “de uma forma ostensiva, a ANDEF ocupou a chamada “Agenda Científica” com palestras proferidas pela BASF, Syngenta, Bayer…cujas empresas respondem a processos judiciais por danos à saúde ou ao meio ambiente, mostrando uma clara e real intenção sobre papel que cumpre na sociedade, que é a do capital e não da saúde.”

Leiliane finaliza com a constatação: “Quando explicitado os conflitos de interesse é necessário ressaltar que existem lados a serem defendidos. Temos de um lado os “agroquímicos” e de outro os “agrotóxicos”. (…) Cabe a cada um escolher o lado. Eu me sinto desapontada pelo lado escolhido no Congresso de toxicologistas.”

Veja a carta na íntegra:

 

À Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox)

Considero que a SBTox, como sociedade científica, tem um importante papel no desenvolvimento da ciência e sua base de atuação é promover a nível nacional a cooperação científica e o progresso dos conhecimentos no campo da toxicologia em suas diversas áreas de atuação, divulgando os estudos científicos e contribuir na elaboração de uma política científica institucional e não empresarial.

Os conflitos de interesse e a ciência é um tema atual e presente em várias discussões no âmbito acadêmico e científico. Na Revista Brasileira de Psiquiatria, em seu Editorial do volume 28 de 2006, sobre Conflitos de interesse e suas repercussões na ciência, José Roberto Goldim, ressalta que “os editores de revistas científicas nacionais e internacionais têm solicitado que os autores apresentem os seus vínculos institucionais, de patrocínio e de consultoria – sejam eles com a indústria farmacêutica, de bebidas alcoólicas, de tabaco, ou outra qualquer”, no sentido de explicitar os conflitos de interesse presentes nos artigos publicados.

Nesta linha, reconheço que o 9th Congress of Toxicology in Developing Countries e o XIX Congresso Brasileiro de Toxicologia, realizados conjuntamente entre os dias07 a 10 de novembro de 2015, no Centro de Convenções da cidade de Natal/Rio Grande do Norte – Brasil, expos o real conflito de interesse. Ainda que isto seja factível, qualquer associação que explicite essa posição ideológica e metodológica faz com que seja colocada em risco a sua própria credibilidade científica. Este tema é de fundamental importância e deve receber, por parte de todos nós, sócios da SBTox, uma ampla e franca discussão sobre o papel da sociedade e seus patrocinadores. Na minha opinião, a valorização da identidade científica da sociedade requer a isenção de interesses explicitada pela associação às empresas que fabricam substâncias tóxicas.

Neste congresso, de uma forma ostensiva, a ANDEF ocupou a chamada “Agenda Científica” com palestras proferidas pela BASF, Syngenta, Bayer…cujas empresas respondem a processos judiciais por danos à saúde ou ao meio ambiente, mostrando uma clara e real intenção sobre papel que cumpre na sociedade, que é a do capital e não da saúde. Como o caso de Paulínea/SP, onde a produção de praguicidas pela Shell resultou num desastre ambiental que atingiu toda a comunidade devido à contaminação do solo e dos lençóis freáticos por compostos organoclorados, devido a inadequação do tratamento biológico dos dejetos industriais. Cuja fábrica em 2000 foi alienada para a BASF e em 2002, encerrada suas atividades e a planta industrial foi interditada pelo Ministério do Trabalho, devido à contaminação.

Como professora universitária e pesquisadora na área da Toxicologia, cujo o compromisso com o bem público e com a saúde coletiva e individual norteia minha atuação profissional, me senti extremamente constrangida por me incluir num grupo que defende estes interesses.

Da mesma forma me causou extremo desconforto ao assistir a palestra intitulada “Glyphosate is Not na Endocrine Disruptor: Regulatory Safety Studies & Tier 1EDSP
Assays Provide a Weight of Evidence”, proferida pelo Sr. Steven Levine da Monsanto Company, empresa produtora do Glifosato e a quinta no ramo, cuja ganância não tem limites na competição do mercado de sementes e agrotóxicos juntamente com Syngenta, Basf, Bayer e Dow Agrosciences. A mesma empresa que tem em sua estratégia comercial o desenvolvimento de sementes geneticamente modificadas para resistir ao Roundup, enquanto as demais plantas definham sob o mesmo, demonstrando o seu verdadeiro interesse no tema. A palestra proferida vem na contramão das publicações da OMS e mais recentemente em março de 2015 quando a IARC passa a classificar o glifosato como provavelmente cancerígeno (Grupo 2A).

Quando explicitado os conflitos de interesse é necessário ressaltar que existem lados a serem defendidos. Temos de um lado os “agroquímicos” e de outro os “agrotóxicos”. O termo “agrotóxico” passou a ser utilizado, no Brasil, para denominar os venenos agrícolas, após grande mobilização da sociedade civil organizada. Mais do que uma simples mudança da terminologia, esse termo coloca em evidência a toxicidade desses produtos para o meio ambiente e a saúde humana. Apesar de praguicidas ser uma denominação técnica referente ao combate de pragas, a denominação agrotóxicos, tornou-se mais amplo e conhecido por ter sido aceito no âmbito da saúde pública. E o termo “agroquímico” substituiu o termo “defensivos agrícolas” utilizado anteriormente pela ANDEF, na busca de uma estratégia de maquiar o que é veneno ou tóxico.

Cabe a cada um escolher o lado. Eu me sinto desapontada pelo lado escolhido no Congresso de toxicologistas.

Belo Horizonte, 13 de novembro de 2015

Profa. Dra. Leiliane Coelho André (atual Vice-Diretora)

Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas

Faculdade de Farmácia

Universidade Federal de Minas Gerais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *