A Necropolítica do Veneno: o racismo que mata

Por Fran Paula* l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Estamos sendo envenenados e mortos, contra a nossa vontade. Todo o planeta sofre com a poluição, mas existem comunidades-alvo que, como resultado da segmentação baseada em raça e renda, recebem uma parcela desproporcional da contaminação ambiental (SMITH, 2001). No Brasil, essa exposição tem cor, território e classe.

O país lidera o ranking mundial de consumo de agrotóxicos (FAO, 2024). Somente em 2023, segundo o Ministério da Agricultura, foram utilizadas aproximadamente 755 mil toneladas desses produtos nas lavouras brasileiras. Por trás desse título vergonhoso, esconde-se um projeto político e agrário que repete a lógica colonial de exploração e racialização de corpos e territórios.

A chamada Revolução Verde, adotada durante a Guerra Fria, prometia erradicar a fome com base na química e na tecnologia. No entanto, esse pacote composto por agrotóxicos, sementes modificadas e maquinário gerou dependência tecnológica, concentração fundiária, degradação ambiental e adoecimento humano (BOMBARDI, 2023).

Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI, 2024), cerca de 673 milhões de pessoas enfrentarão a fome, especialmente em países com alta desigualdade social, como o Brasil. Embora o país tenha saído formalmente do mapa da fome, 18,9 milhões de famílias ainda vivem algum grau de insegurança alimentar (IBGE, 2025), em sua maioria, famílias negras.

A fome tem cor, e o rural brasileiro também. Dados do Censo Agropecuário (IBGE, 2020) mostram que produtores pretos e pardos se concentram em pequenos estabelecimentos, enquanto os brancos dominam as grandes propriedades e as cadeias de commodities, justamente as que mais utilizam agrotóxicos (CASTRO, 2025). Essa estrutura sustenta o que denomino de Agrocolonialismo: modelo agrário que herda e atualiza as hierarquias raciais da colonização, privilegiando o lucro sobre a vida.

Agrotóxicos e Racismo Ambiental

Os agrotóxicos são, historicamente, armas químicas travestidas de insumos agrícolas. Durante a Guerra do Vietnã, entre 1961 e 1971, os Estados Unidos usaram o agente laranja ( mistura de 2,4-D e 2,4,5-T) para devastar florestas e estoques de alimentos inimigos. Décadas depois, resíduos dessa dioxina cancerígena ainda persistem nos solos e na cadeia alimentar (CRIADO, 2019).

No Brasil, a expansão dos agrotóxicos nas últimas décadas repete a mesma lógica de guerra, agora dirigida a populações quilombolas, indígenas e camponesas. As chamadas “chuvas de veneno” não são acidentes, mas métodos de controle e expulsão territorial. Em 2024, os casos de contaminação por agrotóxicos como forma de violência no campo aumentaram 950% em relação ao ano anterior (CPT, 2025).

Mesmo sendo as principais guardiãs dos biomas e da agrobiodiversidade, as comunidades quilombolas tornaram-se duplamente expostas: ao avanço do agronegócio e à omissão do Estado. Diagnósticos da CONAQ (2023) revelam pulverizações aéreas e terrestres que contaminam roças, rios e poços em territórios quilombolas do Cerrado, onde o veneno tem chegado inclusive por drones, em uma nova estratégia de ataque químico que afeta a saúde, as abelhas e os alimentos. 

No Pantanal mato-grossense, pesquisas recentes em comunidades quilombolas identificaram resíduos de agrotóxicos até na água da chuva (CASTRO et al., 2022), evidenciando a dimensão difusa e persistente dessa contaminação.

Esses episódios configuram racismo ambiental, conceito que, como afirma Angela Davis, expressa a interseção entre capitalismo racial e destruição ambiental (DAVIS apud FERDINAND, 2019). O caso das populações afrodescendentes da Martinica e Guadalupe, contaminadas pelo pesticida Clordecona mesmo após sua proibição na França e nos EUA, ilustra essa colonialidade química que reserva o envenenamento aos povos negros (RESIERE et al., 2023).

Necropolítica e colonialismo químico

O filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), define a necropolítica como o poder estatal ou não estatal de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Essa soberania da morte cria zonas de exceção, onde certas vidas se tornam descartáveis.

É nesse horizonte que se inscreve o colonialismo químico, expressão contemporânea da mesma racionalidade colonial que hierarquiza vidas e territórios. Enquanto países do Norte Global reduzem o uso de pesticidas, o Sul Global, especialmente o Brasil e várias nações africanas se tornam destino preferencial para exportação de venenos e políticas permissivas (FAO, 2024).

A Europa reduziu o uso de pesticidas em 5% desde 1990; as Américas, ao contrário, aumentaram 10% apenas entre 2021 e 2022. Na África, a maior parte dos pesticidas é importada de fora do continente. O resultado é a manutenção da colonialidade e do racismo nos fluxos do agronegócio global, um sistema em que o Norte desintoxica seus territórios enquanto o Sul se converte no quarto de despejo químico.

No Brasil, o envenenamento deliberado de populações negras não é acidente, mas política de controle e dominação, legitimada pelo Estado e naturalizada como “custo do desenvolvimento”. O uso massivo de agrotóxicos é a face visível do poder necropolítico: ele mata lentamente, administrando a sobrevivência precária entre a fome e a contaminação.

Racismo químico e alimentar

Segundo o Atlas dos Agrotóxicos (2023), mais de 40% dos ingredientes ativos usados no Brasil são proibidos na União Europeia. O Ministério da Saúde registra que 47% das intoxicações exógenas por agrotóxicos atingem a população negra, a maior porcentagem dos registros (BRASIL, 2025). Trata-se de uma violação estrutural ao direito à vida e à alimentação saudável.

A PNAD (2023) mostra que sete em cada dez pessoas em insegurança alimentar são negras. E, conforme a ANVISA (2023), apenas 37% dos alimentos analisados estavam livres de resíduos de agrotóxicos. A pesquisa “Tem veneno nesse pacote” (IDEC, 2024) encontrou resíduos em alimentos ultraprocessados amplamente consumidos pela população de baixa renda, de biscoitos e macarrão instantâneo a nuggets e hambúrgueres vegetais.

Essa contaminação cotidiana dá nome ao que definimos como racismo alimentar: a impossibilidade imposta à população negra de acessar alimentos saudáveis e livres de veneno. Comer bem tornou-se um privilégio de classe e raça no Brasil. A ausência de políticas públicas de fomento à agroecologia e os incentivos fiscais ao agronegócio mantêm o sistema agroalimentar desigual e excludente.

Por uma política de justiça ambiental e alimentar

O Brasil dispõe, no papel, de um instrumento capaz de romper essa lógica: o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA). Fruto da mobilização de movimentos camponeses, quilombolas e pesquisadores, o programa propõe uma transição agroecológica voltada à defesa da vida.

No entanto, o PRONARA foi capturado pela burocracia e silenciado por interesses do agronegócio. Sem orçamento, metas ou execução efetiva, tornou-se símbolo do racismo institucional que mantém corpos negros sob exposição química.

Quando o Estado libera recordes de novos agrotóxicos, muitos proibidos em outros países, e, ao mesmo tempo, paralisa o PRONARA, ele não é neutro: torna-se coautor de uma política de morte. 

Permitir que veneno caia sobre escolas, casas e roças quilombolas é violar o direito à vida, à saúde e à alimentação, previstos na Constituição e nos tratados internacionais.

Por uma vida livre de veneno e racismo

Neste 20 de novembro, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida é também uma campanha contra o racismo. Defender uma alimentação sem veneno é defender o direito de viver, de plantar, colher e existir com dignidade.

É hora de nomear os agrotóxicos pelo que são: instrumentos contemporâneos de uma guerra química contra os povos negros, quilombolas, indígenas e camponeses. E afirmar, com firmeza, que não há democracia possível sobre um solo contaminado e corpos envenenados.

*Fran Paula é Engenheira Agrônoma, Mestra em Saúde Pública. Pesquisadora em Sistemas Agrícolas Tradicionais, Racismo e Sistemas Alimentares, Impactos dos Agrotóxicos na saúde e meio ambiente, e  Doutoranda no Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedades – CPDA/UFRRJ e integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

Referências Bibliográficas

ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA: resultados do ciclo 2023. Brasília, nov. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/agrotoxicos/programa-de-analise-de-residuos-em-alimentos/arquivos/apresentacao-dos-resultados-2023 . Acesso em: nov. 2025.

BOMBARDI, Larissa. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Editora Elefante, 2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos – VSPEA. Dados Epidemiológicos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svsa/saude-ambiental/vigipeq/vspea . Acesso em: nov. 2025.

CASTRO, Franciléia Paula et al. Agrotóxicos no Pantanal: contaminação das águas e impactos na saúde e ambiente em Mato Grosso. Cuiabá: FASE, 2022.

CONAQ. Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Nossos territórios, nossas práticas quilombolas: diagnóstico da agricultura quilombola no Brasil. [S.l.]: CONAQ, 2023.

CPT. Comissão Pastoral da Terra. Caderno de conflitos no campo Brasil 2024. Goiânia: CPT, 2025.

CRIADO, Miguel Ángel. 50 anos depois, agente laranja continua contaminando o solo do Vietnã. El País (Brasil), mar. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/16/ciencia/1552710887_506061.html . Acesso em: nov. 2025.

DAVIS, Angela. Prefácio. In: FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022.

FAO. Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Pesticides use and trade 1990–2022. FAOSTAT Analytical Brief 89. Roma: FAO, 2024. Disponível em: https://openknowledge.fao.org/handle/20.500.14283/cd1486en . Acesso em: nov. 2025.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do espaço rural brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Segurança Alimentar 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2025. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39838-seguranca-alimentar-nos-domicilios-brasileiros-volta-a-crescer-em-2023 . Acesso em: nov. 2025.

IDEC. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Tem veneno nesse pacote – Volume 3: novos produtos, velhos problemas. São Paulo: IDEC, 2024. Disponível em: https://idec.org.br/system/files/ferramentas/idec-tem-veneno-no-pacote-volume-3.pdf . Acesso em: nov. 2025.

MAPBIOMAS. Cobertura de vegetação nativa nos territórios quilombolas – coleção 8 (1985–2022). São Paulo: Projeto MapBiomas, 2023.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

RESIERE, Dabor et al. Envenenamento por clordecona (Kepone) nos territórios franceses das Américas. The Lancet, v. 401, n. 10380, mar. 2023.
SMITH, Neil. Uneven development: nature, capital and the production of space. 3. ed. Athens: University of Georgia Press, 2001.

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