Neste primeiro texto da série especial “Agro é Tóxico”, falamos sobre um assunto preocupante: o Brasil se destaca como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo
Por Antony Corrêa, Jade Azevedo e Lucas Souza | Do setor de comunicação do MST Grande Região Sul
O ano de 2020 está quase no fim e já é considerado atípico: as condições de vida e de subsistência de trabalhadoras e trabalhadores foram severamente afetadas. O Brasil tem a triste marca de 163.406 mortes pelo novo coronavírus até a metade do mês de novembro.
Em contrapartida, há setores da economia e grupos empresariais que comemoram conquistas e lucros neste período. É o que acontece com a indústria do agronegócio, que lucrou neste ano de pandemia, enquanto a crise social se aprofunda: de janeiro a julho deste ano, o PIB do agronegócio cresceu 6,75% – uma porcentagem que equivale a R$ 109 bilhões em rendimentos. Os dados são do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo.
Junto ao crescimento do PIB, as práticas do agronegócio vem sendo favorecidas com a aprovação de centenas de registros de agrotóxicos para fabricação e uso no Brasil. Desde o começo do ano até o fim de outubro de 2020, o governo liberou 343 pesticidas para uso na agricultura. O número – que já é alto – só é menor em relação ao mesmo período de 2019: de janeiro a outubro do ano passado, foram liberados 400 agrotóxicos. Em 2019, o governo Bolsonaro bateu recorde histórico de aprovações, liberando a fabricação, a importação e o uso de 474 produtos.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), aponta que parte dessas novas mercadorias devem ser reavaliadas, pelas possíveis ligações a casos de câncer. Concomitante a isso, as empresas farmacêuticas e que produzem veneno já haviam solicitado a liberação de mais 216 produtos.
Como informa a Agência Repórter Brasil (2020), entre os agrotóxicos aprovados estão produtos que foram banidos em outras nações, como o Fipronil, inseticida banido em 2004 na França, o Clorotalonil, banido na União Europeia e Estados Unidos, e o Clorpirifós, banido na União Europeia. Estes dois últimos foram proibidos por afetarem as células favorecendo o aparecimento de câncer, e pela neurotoxicidade que afeta o desenvolvimento humano.
As aprovações também foram possíveis pelo fato de serem enquadradas como atividades essenciais durante a pandemia. As licenças para fabricação de veneno se distribuem entre 53 empresas de 11 países. No entanto, diferente de 2019, neste ano, os registros se concentram nas mãos de empresas brasileiras, com destaque a AllierBrasil.
Uma herança para produzir alimentos lucro
No Brasil, o uso do agrotóxico foi integrado ao Plano Nacional de Desenvolvimento Agrícola (PNDA) de 1975, que incentivou financeiramente as indústrias de fabricação desses produtos, e contribuiu na difusão do argumento de que a produção de alimentos em escala resolveria o problema da fome no mundo.
O Brasil, hoje, é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo e o segundo maior exportador, atrás apenas dos Estados Unidos. E mesmo ao liderar essas produções de larga escala como a soja, o milho e carne, a fome no Brasil tem aumentado. O que suscita as questões: que tipo de “alimento” é produzido? Mercadoria? Para quem? Com que qualidade nutricional? E a que custo?
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em setembro deste ano, a fome, insegurança alimentar grave, atingiu cerca de 4,6% da população entre 2017 e 2018. São mais de 10 milhões de brasileiros com menos do que o necessário para suprir as demandas nutricionais. Essa pesquisa foi publicada cinco anos depois do Brasil ter saído do mapa da fome. Estatística da qual o país tem se aproximado rapidamente com os desmontes da política de segurança alimentar.
Outro argumento em favor do agrotóxico, defendido por corporações transnacionais, é que isso representa a modernização da técnica e agricultura. Ao investigar o tema, percebe-se que a aplicação do agrotóxico no agronegócio é mais do que um melhoramento técnico. É uma articulação política e econômica entre latifundiários e indústrias transnacionais químicas e de biotecnologia que trabalham pelo mercado, o que amplia a taxa de lucro e o poder político global desses conglomerados.
O agronegócio financia a política
No Brasil, existe uma articulação que se torna nítida ao olharmos para os financiadores da Frente Parlamentar da Agropecuária, mais conhecida como “bancada ruralista”. Esses congressistas recebem recursos do Instituto Pensar Agro, financiado por 38 associações do agronegócio ─ conglomerados que concentram o controle deste ramo no país e no mundo. O infográfico a seguir mostra as 12 associações que exercem maior influência na política nacional.
Brasil: O maior consumidor de agrotóxicos
Entre 2012 e 2014, o Brasil aplicou anualmente em suas lavouras uma média de 877.782 toneladas de agrotóxicos, de acordo com o atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia de 2017.
No infográfico abaixo observamos essa distribuição por região, contabilizando 334.628 toneladas no Centro-Oeste, 244.911 no Sul, 188.512 no Sudeste, 101.460 no Nordeste e 28.271 no Norte.
Em 2017, com cerca de 550 mil toneladas de ingredientes ativos, o Brasil alcançou o título de maior consumidor de agrotóxicos em volume de produto do planeta ㅡ de acordo com os dados da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, apresentados durante uma audiência em Brasília, em 2019.
Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e integrante do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, comenta que existem estudos que tentam dizer o contrário, e são amplamente divulgados em órgãos institucionais, pela Frente Parlamentar da Agricultura (a bancada ruralista).
Esses “números são feitos com base [na venda e] no valor do agrotóxico utilizado por hectare”, o que coloca países como o Japão na frente do Brasil. Podemos ter a falsa impressão de que esses países consomem mais veneno, por gastarem mais dólares em agrotóxicos que são mais seguros. “Nessa conta parece que no Brasil se usa menos do que fato é utilizado. Nós usamos mais venenos e os piores venenos”, alerta Melgarejo.
O pesquisador destaca como confiável o método produzido na Universidade Federal do Mato Grosso, por Wanderlei Pignati, que considera para o cálculo os principais municípios produtivos, a área cultivada das principais culturas e as informações dos produtos mais aplicados. Isso permite chegar a uma média que extrapola para toda a área cultivada, e se estima os dados que faltam das vendas ilegais de agrotóxicos. Essa estimativa é de “um bilhão de litros de agrotóxicos por ano. Dá uns 30% a mais do que as vendas contabilizadas pelo Ibama”, diz.
Melgarejo observa que a flexibilização da legislação tem aumentado o descuido com a informação e consequentemente a contaminação. Um exemplo recente é o caso do Paraquat, proibido em 2017 pela Anvisa, com o prazo de três anos para a retirada do produto do mercado brasileiro. Em setembro de 2020, o produto deveria ser banido e excluído de todas as prateleiras. Contrariando as suas decisões anteriores a Anvisa cedeu às pressões do agronegócio e autorizou o uso do estoque de Paraquat.
Entenda um pouco mais: o que são agrotóxicos?
De acordo com o decreto nº 4.074, de 4 de janeiro de 2002, os agrotóxicos são produtos e componentes resultantes de processos físicos, químicos ou biológicos. Destinados ao uso nos setores de produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na produção de florestas nativas ou implantadas. Também são utilizados em outros ecossistemas com a finalidade de alterar a composição da flora e fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos. São conhecidos ainda como substâncias e produtos desfolhantes, dessecantes, estimulantes e inibidores de crescimento.
Um marco regulatório da Anvisa de 2019, alterou a classificação de toxicidade dos agrotóxicos, adotando o padrão internacional, com cinco divisões, o Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (GHS).
Neste novo padrão, são considerados venenos extremamente tóxicos apenas aqueles produtos que causarem morte horas depois do contato ou ingestão pelo indivíduo. Agrotóxicos “pouco tóxicos” não terão mais a advertência de risco no rótulo. Dessa forma, dos agrotóxicos aprovados no início do ano, apenas seis produtos haviam sido classificados como extremamente ou altamente tóxicos. Podemos observar esta nova classificação no infográfico.
O veneno paira no ar
Pode ser considerado um agrotóxico todo produto que for tóxico para a agricultura e pecuária. Leonardo Melgarejo aponta que os agrotóxicos podem ser extratos de plantas, como também de síntese química. Esse último é o que predomina na agricultura atualmente, e são formulações desenvolvidas em laboratórios que geram o xenobiótico.
Essas substâncias têm uma finalidade específica, como matar determinado inseto, entretanto possuem ações colaterais. Um exemplo desse efeito colateral citado pelo engenheiro agrônomo, é a “luta dos produtores de uva contra os produtores de soja, quando os produtores de soja usam o 2,4-D, que é um herbicida para limpar as suas lavouras”. O que acontece é que este herbicida fica à deriva no ar, atinge os parreirais dos vizinhos, e afeta a produção das uvas.
Caso semelhante é relatado pela agricultora assentada Maria Aparecida Mota Belarmindo, a Cida, de 43 anos, natural da Paraíba, e moradora do Assentamento Olívio Albani, em Campo Erê, Santa Catarina. Ela nos relatou o caso ocorrido na região em 2007, em que fazendeiros despejavam veneno sobre o acampamento localizado entre os latifúndios. “Quando a gente veio pra cá, eles passavam de avião o veneno, nas propriedades deles, a gente fica bem no meio, e nos quatro lados tem fazendeiro. A gente denunciou para Ministério Público, para o Ibama, para o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma), para todo mundo”, lembra a camponesa.
Ela conta que logo em seguida da aplicação dos agrotóxicos, muita gente ficou doente por ter tido contato com a água contaminada pelo veneno. Parte das pessoas afetadas foram internadas no hospital em Campo Erê e parte em Palma Sola. Entre os sintomas, estavam diarreia e vômito. Cida relembra que os vizinhos durante este período continuaram a aplicação do veneno até o final da safra, e depois que o caso repercutiu, passaram a fazer as aplicações com máquinas de solo.
Ela associa alguns problemas na saúde mental das pessoas no assentamento à exposição ao veneno. “Tem bastante gente muito ansiosa, nervosa aqui no assentamento, por causa disso, por causa do veneno”. Outro problema que permanece atualmente, é a monocultura de pinus que cerca a vizinhança, e que Cida também considera um veneno para a saúde.
A camponesa e assentada relata que depois de um longo período, mesmo não havendo mais aplicação de veneno por aviões, os impactos da persistência do agrotóxico e envenenamento da terra são perceptíveis. “A gente plantava as frutas e não dava nada, principalmente a parreira, a uva, não dava por causa dos veneno da soja”.
Ela relata, que mesmo com barreiras contra o veneno, seu vizinho seguia a plantação de soja. “Teve uma época ali que as minhas uvas não vinham por causa disso. Aqui no assentamento [agora] é proibido plantar soja por causa do veneno, porque ele é muito mais forte, mata mais, e traz outras doenças e pragas”, denuncia.
Cida e tantas outras camponesas e camponeses que produzem agroecologicamente e/ou que estão em processo de transição são pontos de resistência que em meio às contradições do sistema e violência do agro-minério-negócio, florescem por meio de suas experiências ancoradas em um projeto de sociedade e de campo que é popular e que respeita as formas milenares de produzir da natureza.
Neste atual cenário do Brasil o debate sobre a produção de alimentos e uso de agrotóxicos é constante dentro da luta dos Movimentos Sociais pelo direito à alimentação e Reforma Agrária Popular, que discute técnicas agrícolas, pecuárias, questões políticas, econômicas, sociais e formativas de concepção de mundo, enquanto projeto de campo e sociedade.
Neste bojo, publicaremos ao longo das semanas o especial “Agro é tóxico”, com o intuito de pôr elementos para a discussão sobre o cenário nacional, a legislação sobre agrotóxico, saúde e contaminação, e a contraposta que vem sendo construída pelos movimentos sociais do campo, por meio da agroecologia e da Reforma Agrária Popular.
Fontes externas consultadas:
Anvisa, Brasil de Fato, De Olho nos Ruralistas, Dicionário da Educação do Campo (2012), Fiocruz, Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia (2017), Repórter Brasil.
*Editado por Ludmilla Balduino