Por Fábio Bispo, na Repórter Brasil
“Quando a gente fala que está tendo grilagem [roubo] de terra em nossas áreas, as pessoas não acreditam. Então espia aí esse ramal saindo da BR. Maior tristeza.” Por mais de 40 quilômetros, o cacique, de forma anônima, registra clarões abertos em áreas protegidas de floresta, o que inclui uma estrada de terra clandestina. Segundo o indígena, este desmatamento é recente e impulsionado pela promessa do governo federal de reconstruir a BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO).
“Com o asfaltamento deste trecho, a tendência é acabar com o pouco que resta da Amazônia”, continua o cacique, em um vídeo feito em abril na Reserva do Lago do Capanã, em Manicoré (AM). O ramal ilegal se multiplica, bloqueia igarapés e segue “sabe lá Deus pra onde”.
A realidade exibida pelo cacique – de invasões, desmatamento e roubo de terras – tornou-se uma ameaça para 69 Terras Indígenas onde vivem 18 povos, incluindo indivíduos totalmente isolados. Tudo por conta de uma promessa do presidente Jair Bolsonaro feita ainda na campanha eleitoral e que deve custar R$ 2 bilhões.
A degradação se espalha pela floresta: o simples projeto de asfaltamento da rodovia valoriza os terrenos, abrindo espaço para a especulação imobiliária e a grilagem de terras, além de facilitar o acesso de invasores e madeireiros ilegais a uma extensa área de mata preservada.
Dos 885 km da rodovia inaugurada em 1976, o impasse hoje está nos 478 km que cortam um dos blocos mais preservados da floresta amazônica e onde o traçado original da rodovia, conforme inaugurado pelos militares, não existe mais. Dividido em 2 lotes para os processos de licenciamento e licitação das obras, o trecho fica entre os municípios de Humaitá e Careiro da Várzea, no Amazonas.
O desmatamento na área de influência da BR disparou nos últimos cinco anos e atualmente é duas vezes e meia maior do que em toda a Amazônia, segundo pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), em artigo publicado pela revista científica Land Use Policy. A maior parte desse desmatamento está concentrado no sul do Amazonas e em Rondônia. Em Humaitá, por exemplo, onde termina um dos trechos asfaltados da BR-319, o desmatamento ilegal aumentou 12 vezes em cinco anos.
“E tudo isso ocorre antes mesmo da conclusão da rodovia, o que só reforça a tese de que a BR-319 já é uma das principais causas do desmatamento e da grilagem de terras na Amazônia”, afirma Lucas Ferrante, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo, que faz uma projeção catastrófica: com a obra da BR-319 e de outras vias planejadas pelo governo, o desmatamento na Amazônia poderá aumentar 1.200% até o ano de 2100 e provocar um colapso ambiental sem precedentes.
Indígenas de diversas etnias sentem os efeitos da reconstrução da rodovia antes mesmo de ela acontecer. “Eles [invasores] já estão tomando conta dos nossos castanhais”, alerta Rosa André Pinheiro da Silva, 70, do povo Kambeba. Essas árvores centenárias de alta importância para a subsistência dos povos são as primeiras a irem ao chão na abertura das picadas e trilhas na floresta. Viram pontes para cruzar os igarapés.
Além da ameaça a terras indígenas, também estão na área de impacto da rodovia 41 Unidades de Conservação, segundo levantamento do Observatório da BR-319.
Intitulado “Grilagem de terras na rodovia BR-319 como ponta de lança para o desmatamento amazônico”, em tradução livre, o estudo dos pesquisadores do Inpa mostra que a rodovia já exerce influência direta sobre 98% do desmatamento registrado no interflúvio dos rios Madeira e Purus. Dados divulgados pelo jornal O Globo também mostram que, em 2020, foram abertos 410 quilômetros de estradas nas regiões de influência da rodovia. Um aumento de 13% em relação ao ano anterior.
“As estimativas do estudo são bastante generosas, porque na verdade o desmatamento vai aumentar muito mais que 1.200% até o ano de 2100 e influenciar, direta ou indiretamente, outras áreas ainda preservadas da floresta”, diz Ferrante.
Bolsonarista de toga
O projeto de reconstrução da BR-319 desengavetado por Bolsonaro já foi proposto nos governos de Fernando Henrique (1994-2001), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). Todos esbarraram na questão ambiental. Entretanto, o plano de Bolsonaro de ocupar a Amazônia a qualquer custo tramita a toque de caixa no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), do Ministério da Infraestrutura, que atropela a legislação e ignora a necessidade de ouvir as comunidades antes das obras.
O projeto também encontrou no Judiciário um aliado para driblar as exigências ambientais que há anos impedem a reconstrução: trata-se de Humberto Martins, presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que é próximo a Bolsonaro e chegou a ser considerado pelo presidente para uma vaga no STF.
O DNIT lançou, em agosto de 2020, o edital para reconstrução do lote C (Lote Charlie, uma parte da estrada a ser reconstruída), mas sem estudos de impacto, licenças ambientais e consultas aos povos indígenas. O MPF conseguiu suspender a licitação, mas acabou desautorizado por Martins.
O magistrado permitiu, em decisão liminar, a contratação de empresa para iniciar as obras num dos trechos mais críticos da rodovia. Sem alarde, em abril, o presidente do STJ sustentou que o governo não precisava de licenças e estudos ambientais para as obras no local e alegou que a BR-319 é “imprescindível” para o transporte de “medicamentos, vacinas e insumos hospitalares, notadamente oxigênio”. Ele se referia à crise em Manaus, quando infectados por covid morreram por falta de oxigênio nos hospitais.
A decisão de Martins abriu caminho para a contratação da LCM Construções, que já iniciou “alguns trabalhos”, conforme anunciou o general Santos Filhos, diretor-geral do DNIT, em reunião na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia, em junho deste ano. As obras no trecho C de fato começaram em julho. Em outro ponto crítico da rodovia, o chamado Trecho do Meio, as obras devem começar em janeiro de 2022, segundo o general.
Procurado, o ministro Humberto Martins disse que não comenta as próprias decisões fora do processo.
Apesar da derrota do MPF neste embate jurídico — ainda há um recurso a ser julgado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) —, os procuradores consideraram má-fé do DNIT o lançamento do edital sem cumprir a legislação.
“E o que é pior: permite que sejam criadas falsas expectativas na população em torno da recuperação da rodovia BR-319, com indisfarçável motivação política”, diz trecho da petição assinada por 15 procuradores federais.
Os procuradores sugerem ainda que “o DNIT está movimentando a máquina administrativa (e agora a máquina judiciária) para promover uma licitação sem nenhuma viabilidade jurídica”.
Em nota, o DNIT afirmou que a liberação do lote C da rodovia segue o que foi firmado em acordo com a Funai em 2007, já que as obras “não tratam da ampliação de capacidade e sim da conclusão de obra inacabada”. O órgão disse também que está preocupado com a questão ambiental, já que “contará com passagens de fauna subterrâneas e aéreas, implantações de recuos e recuperação de áreas degradadas”.
Sobre a consulta aos povos indígenas, o DNIT afirmou que “será apresentado e debatido com as comunidades indígenas potencialmente afetadas tão logo o documento seja declarado apto pela Funai”.
Enquanto isso, o governo federal iniciou, em setembro, as audiências públicas para as obras do Trecho do Meio da rodovia. A Justiça Federal chegou a suspender as audiências a pedido do MPF, em 27 de setembro. Na ocasião, a juíza federal Mara Elisa Andrade destacou que, com o “agravamento do desmatamento, queimadas e degradação florestal”, é necessário mais rigor para se conhecer “os reais riscos oferecidos pela BR-319”. No mesmo dia, entretanto, o TRF1 acatou o pedido do governo e derrubou a decisão. As audiências foram mantidas.
Para o MPF, trata-se de crime ambiental a tentativa do governo de licenciar a obra por trechos, com audiências públicas setorizadas, antes de realizar estudos abrangentes que contemplem toda a extensão da estrada.
O fatiamento dos estudos ambientais da rodovia em trechos a serem licitados, como quer o governo federal, não é capaz de mensurar outros impactos que prevêem a conclusão da BR-319, dizem os procuradores. Eles citam como exemplo a rodovia AM-366, que abriria acesso viário a uma imensa área de floresta ainda intacta — o que traz especulação imobiliária, grilagem e invasores.
O lote C da rodovia nunca foi alvo de um estudo de impacto ambiental. Essa parte da obra e o Trecho do Meio demandam a construção de mais de uma centena de pontes, reconstrução de sistema de drenagens e até mesmo alterações no traçado original da rodovia. Já os quatro estudos ambientais apresentados para o Trecho do Meio nunca foram aprovados — o mais recente, de 2020, está sob análise dos órgãos ambientais.
“Cria-se uma confusão orquestrada propositalmente. Realizam-se audiências fakes (sem reconhecimento legal, por não incluir todas as partes envolvidas) e há um lobby tremendo, principalmente na comunidade local”, analisa o professor e pesquisador Luis Fernando Novoa, da Universidade Federal de Rondônia.
Nem a consulta indígena nem o licenciamento adequado aparecem de forma clara nos planos do governo federal, que não titubeia ao anunciar que vai iniciar e concluir a obra em nome do “desenvolvimento e da segurança nacional”. Para comunidades tradicionais que vivem na região, entretanto, a reconstrução da rodovia é sinônimo de insegurança.