Enquanto boa parte do mundo luta contra sulfluramida, o Brasil continua a produção, uso e exportação (Ilustração S. Cho/Intercept)
Os representantes dos governos presentes na 9ª Conferência das Partes da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes aprovaram, em 3 de maio, a continuidade da utilização do agrotóxico sulfluramida na agricultura e não estabeleceram prazos limites para seu uso. A sulfluramida é empregada no controle de formigas cortadeiras. Quando se degrada no solo, a sulfluramida transforma-se em PFOS (sulfato de perfluorooctano), uma substância tóxica bioacumulativa que pode persistir no meio ambiente por centenas de anos. Assim, o uso do agrotóxico contribui para contaminação da água e do solo, acumulando-se nos alimentos.
“Em vez de proteger a saúde e o meio ambiente, que é o objetivo da Convenção de Estocolmo, o que se está protegendo são os interesses de algumas empresas químicas que encontraram aliados nos Ministérios de Agricultura de alguns países membros, fornecendo informações parciais para o Comitê de Especialistas, que propôs esta decisão lamentável”, afirma Fernando Bejarano, representante do IPEN na América Latina. O IPEN, em conjunto com a Rede de Ação em Praguicidas e suas Alternativas na América Latina (Rap-AL), produziu um documento informativo que explica as razões para a proibição mundial da sulfluramida.
A permissão do uso agrícola da sulfluramida admite que três empresas estabelecidas no Brasil, integrantes da Associação Brasileira de Fabricantes de Iscas Inseticidas (ABRAISCA), continuem produzindo e exportando a sulfluramida para vários países da América Latina – como Argentina, Uruguai, Paraguai, Colômbia, Costa Rica – e alguns países da América Central – através das marcas Mirex-S, FLUORAMIN, Grão Verde, entre outras. O Brasil é o principal produtor mundial de sulfluramida, substância que já não é mais fabricada nos Estados Unidos, na Europa e que, ainda este ano, teve produção interrompida também na China.
A sulfluramida também é formulada na Argentina, onde é comercializada para fins agrícolas e jardinagem pela marca HORTAL, e exportada a países como Paraguai e Uruguai: “A Argentina deve cancelar imediatamente a utilização da sulfluramida para jardinagem, e apoiar as alternativas agroecológicas a fim de estabelecer prazos limites ao seu uso agrícola”, declarou Javier Souza, coordenador da RAP-AL.
Para María Cárcamo, da RAP-AL Uruguai, “o uso e venda sem nenhum controle da sulfluramida – em lojas e até em estabelecimentos que vendem alimentos – deve acabar. A utilização na jardinagem deve ser proibida, porque viola a Convenção de Estocolmo, e deve-se estabelecer a obrigatoriedade da receita agronômica [prescrição técnica para agrotóxicos e afins], ao mesmo tempo em que se encerra a aplicação do produto em culturas específicas”.
Por fim Zuleica Nycz, da Toxisphera, do Brasil, afirma que o governo brasileiro “informou mal o Comitê de Especialistas da Comissão de Estocolmo, ocultando a existência de produtos alternativos, como a Bioisca – que está oficialmente registrada no Ministério da Agricultura do Brasil há vários anos para uso na agricultura orgânica e culturas convencionais”. Além disso, ela acrescentou que o governo “está focado apenas na discussão de como a sulfluramida se transforma em PFOS, quando também deveria aplicar os recursos públicos no controle da venda da sulfluramida e no desenvolvimento de alternativas não-tóxicas no combate às formigas cortadeiras”.
Ligado ao baixo peso de recém-nascidos, ao enfraquecimento da imunidade, a efeitos hepáticos, ao colesterol elevado, à disfunção da tiróide, aos cânceres e a outros problemas de saúde, o PFOS não é mais fabricado ou utilizado na maioria dos países. Mas a Convenção de Estocolmo abriu várias brechas para o PFOS, incluindo uma para seu uso com o objetivo de matar formigas cortadeiras. A sulfluramida é feita de PFOS e, ao se quebrar, divide-se no próprio PFOS e em outros produtos químicos dentro de poucas semanas. O Brasil, único país sob a tutela do tratado que tem permissão para produzir o pesticida, conseguiu exportá-lo sem notificar a convenção porque o acordo restringe o PFOS, mas não faz menção à sulfluramida, que hoje é amplamente usada em países como Uruguai, Brasil, Argentina, Paraguai, Colômbia e Venezuela, entre outros países.
A Abraisca (Associação Brasileira das Empresas Fabricantes de Iscas Inseticidas), associação comercial que representa os principais fabricantes do agrotóxico no Brasil, insiste que a sulfluramida é necessária “para garantir a segurança das pessoas e do meio ambiente”. Enquanto grupos ambientalistas apontam que há maneiras de matar formigas cortadeiras que não envolvem a criação de resíduos tóxicos persistentes, o grupo industrial insiste que não existem alternativas eficazes para a sulfluramida. A Abraisca não respondeu aos vários pedidos de comentários sobre a questão.
Nos últimos anos, como o uso de PFOS foi eliminado na maior parte do mundo, a indústria brasileira de sulfluramida cresceu. Em 2008, o país produziu cerca de 30 toneladas do pesticida. Em 2015, ano das estimativas mais recentes, a produção havia crescido para 40 a 60 toneladas.
Embora o Tratado de Estocolmo permitisse a utilização do produto químico apenas para controlar duas espécies de formigas cortadeiras, os produtos que contêm sulfluramida, como o Mirex-S, Atta MEX-S e Dinagro-S estão agora amplamente disponíveis em lojas e online para combater todos os tipos de insetos no Brasil, ainda de acordo com Zuleica Nycz.
Ainda há, contudo, pouca conscientização sobre os perigos deste composto estritamente restringido. Como o uso da sulfluramida cresceu, não é surpresa que tenha havido uma explosão de contaminação por PFOS no país. Entre 2004 e 2015, a produção de sulfluramida resultou em até 487 toneladas de PFOS sendo liberadas no meio ambiente – uma porção considerável da contaminação global do produto químico. Enquanto isso, o PFOS, que permanece indefinidamente no meio ambiente, tem aparecido cada vez mais no solo, plantas, águas costeiras e rios no Brasil.
Ambientalistas fizeram pressão para a sulfluramida ser mencionada no tratado, o que exigiria que o Brasil informasse suas vendas para fora do país, além de colocar um limite de cinco anos para acabar com a brecha que permite o uso contra formigas cortadeiras – mas perderam a batalha e a decisão só será revista em quatro anos.