Por Maria Emília L. Pacheco
Do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e assessora e pesquisadora da FASE
Pela segunda vez, em dois anos da tragédia da pandemia, o governo veta um Projeto de Lei de apoio à Agricultura Familiar Camponesa. Um veto que exprime a negação de direitos daqueles que cultivam a diversidade da produção de alimentos saudáveis que chegam à mesa da população. Um veto que desconhece o papel cada vez mais importante da proteção de nossa biodiversidade e conservação do meio ambiente. Um veto que reafirma o descompromisso do governo com a tragédia da fome, que chegou a 19 milhões de brasileiros e brasileiras, nesses 75 anos do livro Geografia da Fome na voz do grande brasileiro Josué de Castro que a denunciou e clamou por justiça.
O PL 823 ( Lei Assis Carvalho II), aprovado recentemente na Câmara e no Senado, é uma reedição do PL 735 ( Lei Assis Carvalho I), já vetado em quase sua totalidade em 2020 pelo Presidente da República. Traz entre suas medidas a criação de um Fomento Emergencial não reembolsável para estruturação das unidades produtivas, destinando uma parcela de R$2.500,00 para família pobre; R$3.000,00 para a mulher agricultora como chefe de família, e R$3.500,00 quando incluir a construção de cisternas. Um Programa de Atendimento Emergencial à Agricultura Familiar (PAE-AF) como o Programa de Aquisição de Alimentos, no valor de R$6.000,00 por unidade familiar ou 7.000,00 quando o aporte for destinado à mulher agricultora. Inclui também linha de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), o Benefício Garantia Safra para cobertura de perda na produção, além de propostas de alargar os prazos para saldar as dívidas e suspender cobrança judicial.
Os recursos próprios destinados às agricultoras representam o reconhecimento de seu papel econômico, social, ecológico e cultural. A diversificação da produção e manejo nos vários espaços dos sistemas agrícolas – quintal, pomar, roça, práticas do extrativismo nas matas e florestas, o cuidado com o autoconsumo, a conservação e trocas de sementes, as preparações culinárias tradicionais são ações lideradas pelas mulheres que freiam a erosão genética, asseguram as culturas alimentares através das gerações. São elas de forma recorrente que iniciam processos de transição agroecológica, aplicando princípios que tecem os elos entre a agroecologia e a soberania e segurança alimentar e nutricional.
O veto é justificado pelo atual presidente com o argumento de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, o que expressa mais uma vez a atitude autoritária com a inversão de valores e violação dos direitos sociais contidos na Constituição.
É fundamental afirmar o direito à alimentação saudável em uma sociedade onde junto com a fome também crescem as doenças crônicas não transmissíveis em consequência da má alimentação. O agro não é tudo, como quer fazer acreditar o lobby do agronegócio. Não há uma só agricultura como querm fazer crer o poder dominante. Há sistemas alimentares diversos no país baseados na agricultura tradicional que desenvolve o agroextrativismo, nas práticas agroecológicas e de adaptação às mudanças climáticas, na defesa dos bens comuns e proteção da natureza. Expressam modos de vida da agricultura familiar e camponesa e a sociobiodiversidade representada pelas centenas de etnias dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais que precisam de salvaguardas nesses tempos de destruição e desmantelamento das políticas públicas.
O protesto contra a decisão do presidente que aprofunda as desigualdades e a grave situação de insegurança alimentar e nutricional no país precisa contar com a adesão e mobilização da sociedade para derrubar o veto.