Por Clara Sanchéz
Do Brasil de Fato
Desde antes e sobretudo neste tempo de covid-19, tem-se debatido sobre a necessidade de uma nova ordem pós-capitalista, alternativa ao desenvolvimento ou pós-desenvolvimento, que vá para além de um novo modelo econômico, com uma nova forma de vida baseada no equilíbrio, na harmonia e no respeito à vida, que pode ser possível em um novo mundo pós-pandemia. Ao contrário disso, considerando a complexidade da atual crise econômica, “diferente de tudo que se conhece na história”, outros exigem “salvaguardar os princípios da ordem mundial liberal”, ou seja, garantir que tudo se mantenha como está.
Quando se iniciou a pandemia, acenderam-se os alarmes em diferentes países do mundo, sobretudo na União Europeia (Alemanha, França e Itália), no Reino Unido e nos Estados Unidos, diante de episódios de escassez, desabastecimento, racionamento ou largas filas para adquirir alimentos. Começou-se a considerar o coronavírus como uma ameaça para os sistemas agroalimentares, e que também o Estado necessitava intervir para evitar o colapso, como aconteceu em seus sistemas de saúde. Esse discurso se fez extensivo nos fóruns multilaterais como ONU, FAO ou Banco Mundial.
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Os prognósticos da pandemia no tema da alimentação
Já em abril e maio de 2020, se haviam caído os mercados, qualificou-se os efeitos da pandemia como a pior crise financeira desde 2008; que finalmente se converteu na maior contração da economia mundial desde 1946 e, para a América Latina, como a maior queda do Produto Interno Bruto (PIB) do último século, baixando os preços do barril de petróleo de forma ainda mais drástica; e de produtos agrícolas como a soja, o trigo e o milho, ainda que em um ritmo menor ao das demais commodities.
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Inicialmente aumentou o custo dos alimentos, e, portanto, o preço do consumidor e da inflação. Exemplo disso foi o caso da China: alertava-se sobre as interrupções nas cadeias de distribuição pela baixa nos volumes de carga nos portos, seus efeitos sobre o comércio dos produtos agrícolas de diferentes maneiras; esperava-se que as baixas conduziriam a uma escassez; e se colocava em perigo a segurança alimentar do mundo.
Porém, advertimos, naquele momento, que a pandemia afetaria os sistemas agroalimentares cujo objetivo é alimentar toda a população, de diferentes maneiras, a uns países mais que a outros, particularmente por sua configuração e conformação dependente de forma subordinada ao sistema agroalimentar mundial, onde o impacto, em maior ou menor escala, estaria nas mãos das decisões políticas tomadas e a condição estratégica que particularmente será concedida e na qual a intervenção do Estado se fazia determinante novamente, nesses tempos de covid-19.
Com o passar do tempo, por uma parte se especula que ainda não se visualizam os efeitos definitivos da covid-19 sobre o sistema agroalimentar mundial; e por outra, considera-se que a pandemia, sim, tem afetado muitos sistemas alimentares, inclusive com consequências catastróficas.
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O certo é que, no primeiro ano da pandemia mundial, o setor agrícola se desenvolveu comercialmente melhor do que outros setores, como reflexo da natureza essencial dos alimentos. Portanto, pode-se assegurar por enquanto que, apesar do impacto não ter sido a nível mundial, ocorreu a nível regional, em países ou localidades, em diferentes partes dos circuitos do sistema ou associados a setores específicos de produção.
O que não tem discussão, nem debate, nem especulação é que a fome no mundo seguiu aumentando, ainda que no ano de 2020, a FAO tenha apresentado, considerando a revisão dos números da China, uma depuração dos valores projetados para 2019, no qual 687,8 milhões de pessoas, ou seja, 8,9% da população mundial se encontrava em desnutrição e não os 821 milhões, que durante vários anos consecutivos apresentaram. Só um erro de cálculo que diminuiu a fome no planeta em 132 milhões de pessoas.
Coisa que não é novidade para a FAO, já que seu relatório oficial já variou de um ano para outro em outras oportunidades, como sucedeu entre 2011-2012, em mais de 250 milhões de pessoas, demonstrando a imprecisão de seus métodos de medição com ampla margem de erro, por diferentes razões.
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No entanto, mantêm suas estimativas com relação ao fato de que a fome atingirá mais de 840 milhões de pessoas no ano 2030; e com o impacto da covid-19 asseguram que se agregaram entre 83 milhões e 132 milhões de pessoas a mais somente em 2020, ou seja, a mesma quantidade que havia subtraído.
Para tal, de acordo com a queda da economia, projeta três cenários. Se isso é correto, para o fim do ano 2020, estima-se entre 695,7 e 827,9 milhões de pessoas desnutridas no mundo; que para 2030 seriam entre 841,4 milhões e 909 milhões de pessoas subnutridas, em insegurança alimentar ou fome crônica.
Por enquanto, a Cepal, em suas últimas projeções de crescimento para a região da América Latina e o Caribe, estima uma queda de -7,7% em 2020 e uma recuperação que alcança o 3,7% em 2021, correspondendo ao segundo cenário apresentado.
Por sua vez, os indicadores de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 garante, sem considerar ainda o impacto da pandemia, que existem 2001,1 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar moderada e grave em todo o mundo.
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América Latina: a mina para a produção de alimentos
Enquanto isso, na América Latina e no Caribe, a mina para a produção de commodities alimentares e maior exportadora nata de alimentos do mundo, encontram-se 47,7 milhões de pessoas desnutridas, com um aumento que tem sido progressivo e consecutivo nos últimos anos, que para 2030 se estima que alcançará 66,9 milhões de pessoas.
É na América Latina onde se encontra a maior disponibilidade de água para a produção de alimentos. Em 1998, seu nível de utilização do recurso hídrico oscilava entre 0% e 5%, enquanto países desenvolvidos e em desenvolvimento como China e Índia alcançavam níveis de uso entre 20% e 40% de água subterrânea em algumas zonas, superando os limites que conduziram a escassez do recurso.
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Da mesma forma, é a região que sozinha utilizava apenas 19% da terra cultivável nesse momento, encontrando-se mais da metade dessas, em escala mundial em somente sete países, entre América Latina (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia) e África Subsaariana (Angola, República Democrática do Congo e Sudão), portanto, esperava-se que mais de 80% da expansão da superfície cultivada se produziria nessas regiões do planeta.
Ademais, trata-se de uma região com abundantes recursos naturais energéticos, associados a matriz de hidrocarbonetos do modelo agroindustrial atual, para seu funcionamento.
E, finalmente, um elemento de importância estratégica: a genética relacionada à semente, que na América Latina representa também os maiores índices de biodiversidade do mundo.
Portanto, era de se esperar que, nesses 20 anos fora do cenário da corrida pelo petróleo e outras fontes de energia, ocorresse a apropriação de terras (land grabbing), o controle da água e a apropriação de recursos genéticos, cujo principal exemplo é a semente. Competição que não parou nem com a pandemia mundial.
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A produção de commodities alimentares não diminuiu durante a pandemia
No primeiro ano de pandemia, a FAO afirmou que os prognósticos de produção reduziram e se reduzirão ainda mais. Contudo, a produção mundial de cereais alcançou níveis sem precedentes na safra 2019-2020. Assim, espera-se 2,742 milhões de toneladas para 2020-2021, ou seja, 1,3% mais que o ano anterior. Isto é, que a produção de milho se mantenha em 1.471,5 milhão de toneladas, sendo os Estados Unidos quem possivelmente conseguirá sua terceira maior colheita jamais registrada. Enquanto que a produção mundial de trigo se encontra em nível comparável ao de 2019, em 761,7 milhões de toneladas; e o arroz “alcançará um recorde histórico de 508,4 milhões de toneladas, cifra que se encontra 1,5% acima de 2019”. Ou seja, não diminuiu, pelo contrário, aumentou.
Igualmente, estima-se para a soja, ainda com um ajuste de 362,6 milhões de toneladas, um nível histórico na produção do grão, superando o volume alcançado na safra de 2018-2019.
Mesmo assim, em meio a pandemia no Brasil e Argentina, principais países com as maiores quantidades de terras aptas para a agricultura no mundo, não diminuiu a produção, pelo contrário, realizaram-se recordes históricos de colheita em produtos do agronegócio mundial, e ainda que, diminuíram as exportações totais por causa do coronavírus, não foram as agrícolas, pelo contrário, algumas aumentaram, atestando que a agricultura se mostrou “resiliente” e o comércio agrícola foi mais resistente que o comércio em geral.
Além disso, que as interrupções nas cadeias de abastecimento de alimentos, particularmente de cereais e oleaginosas, não foram objeto de interrupções maiores, somente a nível local.
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Na Argentina, o primeiro exportador mundial de aceite e farinha de soja e o terceiro de soja e grãos de milho, caíram as exportações totais do país em 14,6% até novembro de 2020, relacionadas a quantidades e preços, no entanto, os que menos retrocederam foram os produtos agrícolas primários e as manufaturas de produção agropecuária, os quais ocuparam 70% do total de exportações; apenas o complexo do milho, soja, trigo e carne bovina/couro representaram 53% das mesmas. De fato, as exportações de milho durante os primeiros dez meses de 2020 bateram recorde com 34,5 milhões de toneladas comercializadas, 10% a mais que o ano anterior.
Ao mesmo tempo, espera-se que a colheita de soja e milho, os dois principais cultivos que se desenvolvem no país, cheguem a um recorde na safra 2020-2021, não porque se espera maior produção, mas sim pelo aumento dos preços desses produtos que, com a pandemia, subiram a níveis não vistos há seis anos para as sementes oleaginosas, e há quatro anos para os cereais.
No Brasil, também se registrou uma queda geral nas exportações por causa da crise econômica advinda da covid-19. Queda que chegou a -7,4% nos primeiros onze meses do ano, no entanto, o volume de produtos vendidos pelo país cresceu em comparação com o ano anterior, especialmente no setor do agronegócio, que aumentou em 4,9%, com exportações recordes, e representou 80,9% das vendas externas do setor brasileiro em 2020; sendo o complexo da soja (grão, farelo e óleo) o de maior participação (37,1%), colocando-se como o principal exportador do grão no planeta, título que alcançou na safra 2012-2013, agora com um recorde anual, que supera as 99,86 milhões de toneladas no ano, superior às 86,8 milhões de 2019.
Para a safra 2020-2021, espera-se que o Brasil alcance uma produção total de cereais e sementes oleaginosas de 265,9 milhões de toneladas, das quais, estimam-se 134,95 milhões de toneladas de soja, que coloca o país como o maior produtor mundial; e 104,89 milhões de toneladas de milho, cuja superfície plantada será a maior da história (18,4 milhões de hectares); enquanto que para 2021, visam exportar 85 milhões de toneladas de soja (somente de grão), dos quais 80% são vendidos ao exterior e a China tem potencial para adquiri-los integralmente.
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Continuou a acumulação de terras
Para além do colapso do agronegócio mundial, baseado na produção e exportação dos principais complexos do trigo, milho, soja e arroz, que constituem 60% das calorias consumidas no mundo e que suportou o primeiro ano da crise econômica mundial causada pela pandemia, que também esteve marcado por um desenvolvimento “normal” do atual modelo agrícola mundial.
Estima-se que existam 608 milhões explorações agrícolas no mundo, 90% dessas são de caráter familiar, e aproximadamente 2500 milhões de pessoas estão envolvidas na agricultura de pequena escala. Ainda assim, somente 1% das grandes empresas, exploram 70% das terras agrícolas do planeta, associado ao sistema agroalimentar corporativo mundial, enquanto que mais de 80% são pequenas propriedades com menos de 2 hectares, geralmente excluídas da cadeia alimentar mundial; mostrando uma desigualdade no campo que se havia subestimado até 2020.
Isto é, um aumento da concentração da terra rural em 41%, levando em consideração o valor da terra agrícola e a população sem-terra, onde os 10% mais ricos da população, capturam 60% do valor da terra agrícola, enquanto que os 50% mais pobres e dependentes da agricultura, obtém somente 3%.
A América Latina e o Sul da Ásia exibem os mais altos níveis de desigualdade, porque 10% dos proprietários de terras capturaram 75% das terras agrícolas, superando a média mundial; enquanto que os 50% mais pobres possuem menos de 2%.
No Brasil, se deduz que a política do governo de Jair Bolsonaro de incentivar o desenvolvimento econômico da Amazônia a favor da agroindústria e da mineração é a causa do aumento das queimadas no país. O Instituto Nacional de Investigação Espacial (INPE) indica que foram registrados 12% a mais de incêndios durante o ano de 2020 em comparação com 2019, alcançando um total de 312,140 km² de área queimada.
O INPE também registou que somente no Pantanal, a zona húmida mais grande do planeta, compartilhada com Bolívia e Paraguai, se incendiaram 40,606 km², a maior área desde que começaram os registros em 1998; ao mesmo tempo, estima-se que em 2020, o desmatamento da Amazônia Legal alcançará os 11,088 km², superior aos 10,129 km² do ano anterior, um aumento de 9,5%, que corresponde a mais de um milhão de novos hectares desmatados.
O aumento das queimadas e do desmatamento estão associados a grilagem e a acumulação de terras no Brasil, através de formas de apropriação ilegais, irregulares, pela força ou intimidação; que uma vez apropriadas, destinam-se a produção de itens agrícolas básicos, destinados em sua maioria para exportação, que em 2020 alcançou níveis recordes, às custas das florestas e, portanto, da destruição da biodiversidade.
Na Argentina, durante 2020, também as queimadas devoraram uma quinta parte do Delta do Paraná, por causa dos incêndios provocados intencionalmente por empresários criadores de gado, que alcançou mais de 165,000 hectares, dos quais se prevê, serão usados no futuro para agricultura, pecuária, mineração e imobiliária, pois é o interesse que persiste sobre esses territórios.
Mas, não foi só no Brasil e na Argentina. No Paraguai e na Bolívia também se registraram incêndios florestais, sobretudo por queimadas em pastagens com o objetivo de ampliar a fronteira agrícola.
Por isso, a taxa de desmatamento na América Latina e no Caribe é três vezes a média mundial.
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Continuou o registro e a venda de pesticidas altamente perigosos na América Latina
No Brasil, o maior consumidor de pesticidas do mundo, que em 2019 autorizou a liberação, com um recorde histórico, de 474 novos produtos destinados ao uso industrial (matéria prima) e dos agricultores, não deixou de fazê-lo durante a pandemia mundial em 2020, e apesar do avanço da covid-19, com graves consequências na população, culminou o ano com um total de 405 novos registros.
E é isso, na América Latina continuam vendendo pesticidas “altamente perigosos”, proibidos, por exemplo, em países da União Europeia, que as grandes transnacionais de agroquímicos como Bayer/Monsanto, Corteva Agriscience, Syngenta, BASF, entre outras, destinam aos “países em desenvolvimento”, encontrando mercado na região.
Prova disso, foi a apresentação na Argentina de uma investigação da Rede de Ação em Pesticidas e suas Alternativas na América Latina (Rapal), que demonstra a venda de 108 formulações “altamente perigosas” com restrições em outros países, promovidas, comercializadas e de uso livre no país pelas transnacionais do agronegócio, onde encontra-se além do glifosato, a atrazina, clorpirifos, paraquat, fipronil e imidacloprid, entre outros, com os quais segue-se fumigando escolas ou povos inteiros próximos aos campos de plantação.
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Cenário de novos transgênicos
2020 também foi palco para que na Bolívia, em plena emergência sanitária do coronavírus, fossem aprovados pelo governo de fato de Jeanine Añez, o polêmico decreto 4232, que abre as portas para quatros cultivos transgênicos, tanto para o consumo interno e para exportação, com a finalidade de garantir em meio à pandemia a segurança alimentar, mediante a abreviação de procedimentos em 10 dias, que logo foram levados a 40 dias (Decreto 4238), para a avaliação de sementes transgênicas de milho, trigo, cana de açúcar e algodão, levando em conta que a soja (RR1) está autorizada desde 2005, ainda que com esta norma fossem incorporados novos eventos; transformando a Bolívia, de se concretizar sua aplicação, no segundo país da América Latina e do Caribe, depois do Brasil, com maior quantidade de variedades em cultivos de organismos geneticamente modificados e em oposição a Constituição Boliviana, que proíbe, em seu artigo 225, a importação e produção de transgênicos.
Uma das curiosidades do decreto é a referência ao trigo transgênico, que ainda não se cultiva de maneira intensiva em nenhum país do mundo; mas que, meses depois foi aprovado na Argentina, também em meio à pandemia, lançando o primeiro Organismo Geneticamente Modificado do cultivo a nível mundial.
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Na ocasião, Luis Arce, atual presidente da Bolívia, se opôs ao decreto e exigiu sua revogação imediata, a qual se anunciou no fim do ano, porque atenta “não só contra a saúde pública, como também contra a segurança e soberania alimentar”, que são dois princípios básicos considerados em sua política de desenvolvimento produtivo, além disso, porque são alimentos dos quais suas sementes são fontes de origem e diversidade no país, especialmente, o milho.
Quando chegou outubro, foi na Argentina, o mês do trigo transgênico HB4 aprovado pelo Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET) e pela empresa nacional Bioceres, esta última, envolvida com a Monsanto, a qual comprou 5% das ações, mediante a capitalização de um empréstimo realizado em 2018, no valor de 8,1 milhões de dólares. Por outro lado, as variedades serão desenvolvidas por Trigall Genetics, um joint-venture entre Bioceres e Florimond Desprez, da França, uma das empresas líderes a nível mundial em genética de trigo.
Com este evento, Argentina se torna o primeiro país do mundo em aprovar este tipo de cultivo resistente a seca, com o qual se pretende melhorar a produção do quarto maior exportador de trigo do mundo, que espera a aprovação no Brasil, para começar sua comercialização, posto que é este gigante do agronegócio, o primeiro comprador de trigo argentino.
No entanto, a liberação foi considerada um atentado à soberania agroalimentar, que repete a história da soja transgênica, acarretando na maior utilização do herbicida glifosato no mundo; e com isso, a reprodução do modelo agroindustrial atual, faz da Argentina dependente e subordinada ao modelo agroexportador mundial, que por sua vez coloca em risco o pão dos argentinos, base da comida nacional.
É que o HB4, resistente a seca, é considerado como pretexto para a introdução do herbicida glufosinato de amônio, o qual será tolerado, proibido na Europa desde 2013 por ser neurotóxico, além disso, gera outras consequências na saúde humana; cuja substituição refere-se à resistência que tem adquirido as plantas daninhas ao glifosato no país, por isso que é testado com um novo pesticida.
Enquanto isso, Bioceres e Florimond Desprez, deixaram a bola para os dois grandes produtores de transgênicos do mundo, Argentina e Brasil, para começar sua comercialização.
Cuba, é outro exemplo inédito no campo dos transgênicos nesse ano 2020. Através da união entre a necessidade e a ciência, e uma vez Decretada a Lei da Comissão Nacional para o Uso dos Organismos Geneticamente Modificados na Agricultura Cubana, foi liberado o milho hibrido transgênico CIGB, para alimentação animal e enfrenta a crise de alimentos, em meio ao endurecimento do bloqueio estadunidense que resiste a população desde 1960.
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Transgênico resistente à principal praga que esta cultura possui na ilha, a mariposa. Nessa semente, se usa o gene da bactéria Bacillus thuringiensis, BT, com a diferença de que esta faz mais de um século que é cultivada no mundo e se aplica sobre os cultivos para protege-los, cujo gene foi inserido no genoma da planta.
Nesse caso, Cuba pretende inserir-se na produção de uma forma autóctone e soberana, mediante investigação agropecuária própria em seus centros científicos, como o Centro de Engenharia Genética e Biotecnológica (CIGB), o Instituto Nacional de Ciências Agrícolas e o Instituto de Investigações de Grãos da Agricultura, o que só faz Brasil e tenta conseguir a Argentina, de resto, os 40 países que plantam transgênicos no mundo compram licenças, o que não pretende fazer o governo cubano, graças ao desenvolvimento de sua indústria biotecnológica e suas instituições científicas, por meio de variedades cubanas, modificadas com engenharia genética cubana e de propriedade integral sobre a semente de milho cubano, sem patentes estrangeiras.
Ao milho CIGB, também se soma o estudo de uma semente de soja cubana, resistente a fungos, cana de açúcar e no futuro sobre o feijão, base da alimentação nacional, em uma combinação de áreas desenvolvidas no país para bioinsumos, agroecologia e transformação genética, o prognóstico é que dará bons resultados para o país.
A competição pela água; a nova mercadoria?
Finalmente, em um feito inédito no último mês de 2020, se ainda falta uma cereja ao primeiro ano da pandemia, começou a cotização da água na Bolsa de Valores de Nova Iorque; recurso básico e necessário para manter a vida no planeta, ainda que em diferentes países, mais de dois milhões de pessoas não tenham acesso suficiente a esse recurso natural nesse momento, e ainda que, tenha sido declarado como um direito humano desde 2010, corre-se o perigo de converter-se em uma nova mercadoria, como ocorre com o ouro, o petróleo ou o lítio, mas também com a soja, o milho, o arroz, o trigo.
E é que no caso da água surpreendeu o mundo, porque supera certas discrepâncias relacionadas a qualificação desse recurso natural como estratégico e, embora alguns argumentem que é apenas por causa dos níveis de escassez e o tempo de esgotamento, assim como o impacto sobre a vida, a biodiversidade, tem quem mantenha que é apenas pela demanda mundial de novos ciclos tecnológicos que podem desenvolver-se ou, em todo caso, destruir ciclos anteriores; que são de menor duração nos tempos atuais, o que dar o caráter vital, como ocorreu com o guano, o petróleo ou o lítio; e com a água? qual ciclo tecnológico começa ou quebra? o ciclo da vida na terra?
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Para além de uma “ideia” nascida na California, através do índice de Nasdaq Veles California Water Index, que dar “acesso ao recurso e a disponibilidade do direito de uso” ou o preço das principais bacias hidrográficas do estado, para acesso industrial e da agricultura, a qual sofre de uma severa escassez desse recurso vital, desde finais de 1970, associada aos incêndios florestais; e cuja ação pode ser usada agora como referência mundial. A medida é o acre-pé, estimado em 500 dólares na atualidade, por cada 1.233 metros cúbicos de água.
Ação que, desde o âmbito geopolítico, como recurso natural estratégico, senta as bases para o aprofundamento de conflitos sobre a disputa em todo ao acesso transnacional corporativo, que já existe sobre a mesma, para o qual, 70% do uso é para a agricultura, em outras palavras, para a produção de alimentos, e cuja escassez, ainda que não é a nível mundial, já ocorre em regiões ou em zonas locais como a California.
Considerações finais
Em resumo, não colapsou o sistema agroalimentar mundial baseado no modelo agrícola atual, que se reforça e se reinventa ainda em tempos de pandemia, instalado desde a Revolução Verde, altamente dependente dos hidrocarbonetos, onde só tem acesso aos alimentos aqueles Estados ou indivíduos que possam pagar por eles; enquanto que o desafio colocado de resolver a subalimentação e a fome no mundo no ano 2030, simplesmente, não acontecerá, porque segue sendo demonstrado que não é o aumento da produção de alimentos, o que acabará com a fome no planeta.
E na Argentina, o sexto maior exportador de carne bovina do mundo, enquanto o consumo de carne na população se reduziu aos níveis mais baixos dos últimos 100 anos, contraditoriamente, 14 milhões de cabeças de gado foram abatidas, o maior volume desde uma década, e se realizou a segunda maior exportação de carne em toda a sua história, desde 1924.
Ou no caso do Brasil, que, pelo preço no mercado internacional e as vantagens cambiais, terminou vendendo toda a produção de soja; sendo necessário importar dos Estados Unidos para suprir a sua demanda interna.
Este cenário nos dar uma mostra do que acontecerá nos próximos anos, quando a China, o país com maior quantidade de habitantes no planeta se prepara para fortalecer seu banco de sementes, através de um desenvolvimento industrial do “chip” da agricultura, para reforçar o seu banco de germoplasma e armazenar 1,5 milhões de sementes de diversas culturas, que se constituirá na reserva mais grande do mundo; associada a conservação da terra agrícola, e proibindo o uso de estas para fins não agrícolas, que lhes garante a produção de cereais, que na realidade é garantida pelo fornecimento seguro de alimentos em meio a competição mundial pelos recursos naturais, como a biodiversidade e a terra, mas também a água, o petróleo e o gás, em meio da pandemia mundial.
Onde modelos de produção baseados em práticas insustentáveis para o planeta continuam sendo desenvolvidos, em meio a grandes discursos do mundo pós-pandemia durante a pandemia, ao passo que a “catastrófica” recessão econômica de 2020, só poderá diminuir até um -7% as emissões de dióxido de carbono e outros gases do efeito estufa, com um impacto insignificante a longo prazo nas mudanças climáticas, que reduziu em 20% o acesso a água doce nas últimas duas décadas, que para 2030 pode alcançar 40%, e com isso, os desastres naturais, as secas, os incêndios, a perda de biodiversidade e a vida, etc.
Pelo menos, neste primeiro ano, fica demostrado que os efeitos da pandemia não salvarão o planeta por si só. Mudemos o sistema! E, como consequência, começaremos a salvar o planeta.
* Clara Sánchez é investigadora, engenheira agrônoma e mestre em Estratégia e Política; mantêm o site Alimentos y Poder, onde publica artigos de investigação e análises sobre o mundo alimentar e todas as relações que dela se derivam.
** Este artigo foi publicado originalmente em 15 de janeiro na página Alimentos y Poder.
Edição: Camila Maciel