Por Patricia Fachin
Do IHU Unisinos
Desde a criação do primeiro computador comercial da história, o Univac I, utilizado pelo Departamento de Censo dos Estados Unidos em 1951, e do surgimento da internet no final da década de 1960, passaram-se 70 anos. Hoje, a fase tecnológica em que estamos é de “digitalização intensa” e “estamos trabalhando de modo muito diferente em relação à primeira década do século XXI”, disse Sérgio Amadeu, na palestra intitulada “Tecnologia e fome. A uberização do alimento e as big techs na digitalização do agronegócio“, ministrada no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 29-07-2021.
Segundo o sociólogo, que pesquisa as relações econômicas e sociais da tecnologia e suas múltiplas implicações na sociedade e nas transformações do capitalismo, uma das principais mudanças está ocorrendo na agricultura porque as empresas de plataforma estão disputando o mercado de diversos bens e serviços. “Empresas que antes conhecíamos como empresas de software estão trabalhando em áreas inimagináveis, como as big techs na agricultura, na pequena agricultura e na agroecologia“. Nesta nova era, acentua, “os dados passaram a ser um ativo de grande valor econômico e, portanto, o capitalismo digital, na segunda década do século XXI, iniciou uma conversão para um capitalismo digital-dataficado“.
A seguir, reproduzimos a conferência de Amadeu no formato de entrevista, na qual ele explica as grandes transformações que as plataformas digitais estão gerando no campo, atuando junto a pequenos, médios e grandes produtores, e prestando serviços para todos os tipos de consumidores. “Assim que as big techs chegam, elas criam uma série de vantagens para o pequeno, médio e grande agricultor ao mesmo tempo que criam novos intermediários, concentram renda e retiram renda de médios produtores e pequenos prestadores de serviços e passam a concentrar tudo isso em seus mecanismos algoritmizados de automação de atendimento. O que está acontecendo é que o novo agronegócio coleta dados dos agricultores e aprofunda as suas parcerias e o uso de venenos, de produtos químicos e de transgenia. Existe uma guerra para ver qual plataforma vai se sair melhor nesse mundo do campo”, assinala.
Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é professor da Universidade Federal do ABC – UFABC, no estado de São Paulo. Foi um dos pioneiros no debate da inclusão digital no Brasil e pesquisou as práticas colaborativas e o software livre. Foi, ainda, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Entre suas publicações, destacamos o livro Exclusão Digital: a miséria na era da informação (São Paulo: Perseu Abramo, 1996).
Confira a entrevista.
IHU – Quais são as principais transformações do capitalismo digital nas últimas décadas? O que caracteriza a fase tecnológica em que estamos?
Sérgio Amadeu – Eu trabalho a questão do digital, mas meu mestrado foi sobre a regulamentação da internet, ainda na década de 1990, e o doutorado, sobre a propriedade intelectual dos bens imateriais. Trabalho as relações econômicas e sociais da tecnologia e as implicações múltiplas que têm existido. Ao acompanhar a fase tecnológica atual, de digitalização intensa, percebo que estamos trabalhando de modo muito diferente em relação à primeira década do século XXI: empresas que antes conhecíamos como empresas de software estão trabalhando em áreas inimagináveis, como as big techs na agricultura, na pequena agricultura e na agroecologia.
Gostaria de começar citando Vandana Shiva, uma física, ambientalista e feminista, que já nos anos 1990 denunciou o que seria a nova colonização genética de monoculturas da mente e do empobrecimento da biodiversidade. O professor Laymert Garcia dos Santos, no livro Politizar as novas tecnologias, trata da questão crucial que Vandana trabalhava, quando ela dizia que “a biodiversidade foi virtualizada, ou seja, o que realmente interessa ao capital internacional são apenas as informações genéticas e moleculares contidas nos organismos vivos e não mais esses organismos em si”. Ela já tinha percebido esse movimento do capital de transformar todos os fluxos da vida em dados. Então, o que alguns sociólogos, como Manuel Castells, chamavam de era informacional, Dan Schiller chamava de capitalismo digital.
Capitalismo de dados
Nós entramos no século XXI com estas duas terminologias principais: era informacional e capitalismo cada vez mais digitalizável e digitalizado. Só que a partir da metade da primeira década do século XXI, começamos a perceber que o digital estava se transformando num capitalismo de dados. Ou seja, a transformação de movimentos, de perfis e de ações humanas em algo que pode ser captado por dispositivos e quantitativamente chamado de dados passou a ser o principal elemento de fator econômico, o que vai redundar num capitalismo de plataforma.
As plataformas passam a mediar as diversas interações dos mercados, coletando e analisando dados dessas relações, e passam a interferir efetivamente nessas relações – Sérgio Amadeu Tweet
IHU – Qual é o peso do capitalismo de plataforma em relação às antigas empresas do século passado?
Sérgio Amadeu – Para introduzir efetivamente essa questão, eu queria mostrar três parágrafos do texto do Banco Mundial, “Data-Driven Development”, que é o desenvolvimento dirigido por dados, publicado em 2018. Nesse documento está escrito o seguinte: “A economia digital se tornou mais intensiva em informações e até mesmo os setores tradicionais, como petróleo e gás ou serviços financeiros, estão se tornando orientados por dados. (…) Em 2020, projeta Cisco (2017), o tráfego global da Internet chegará a cerca de 200 exabytes por mês, ou 127 vezes o volume de 2005, com grande parte do crescimento vindo de vídeos e smartphones. (…) E esses dados podem ter um valor enorme. O McKinsey Global Institute (2016) estima que os fluxos de dados transfronteiriços em 2014 valiam cerca de 2,8 trilhões de dólares, um aumento de 45 vezes em valor desde 2005”. Esse texto do Banco Mundial está dizendo que nossa economia foi “dataficada” – essa é uma palavra complicada em português, mas vem de datafication, em inglês –, ou seja, há uma dataficação da economia e da sociedade.
Para entender o que aconteceu, é interessante olharmos este exemplo do qual gosto muito: a imagem [abaixo] é de uma fechadura típica do mundo industrial, robusta e que cumpre uma função. Ela é instalada numa porta e serve para garantir ou bloquear a passagem de pessoas e, portanto, quem tem a chave consegue passar e quem não tem, não consegue, exceto se criar um dano na porta ou na fechadura.
Agora, repare o que está acontecendo no mundo informacional e digital. Estamos vendo uma fechadura que cumpre o mesmo papel, mas ela é digital e operada por biometria ou por senha [imagem abaixo]. Ou seja, ela, por ser digital e ter essa condição de abrir e fechar a porta e saber quem está abrindo e fechando, além de realizar o ato que o mundo industrial também realizava, está, em cada ato, gerando uma enormidade de dados sobre a ação realizada. Então, essa fechadura, além de abrir e fechar uma passagem, permite que nós possamos saber em que hora exata a porta foi aberta, quanto tempo ficou aberta, quantas vezes foi aberta no dia, na semana, no mês, quem a abriu e quem a fechou.
Todos esses dados são captados em um único ato e isso é impressionante. O que está acontecendo hoje é que o mundo industrial descobriu que suas ações, produtos e serviços não criavam dados sobre o que ele produzia ou servia e, portanto, o mundo digital poderia criá-los. Então, o digital começou a caminhar para criar uma série de soluções dataficadas, baseadas em dados. Ora, ao fazer isso, ele tem que acumular dados e essa imagem que vocês estão vendo [abaixo] é de um corredor de um datacentro. Ou seja, estamos vendo só nesta imagem mais de uma centena de servidores de rede de alta potência, que estão armazenando dados em grandiosas quantidades. Isso gerou, a partir da primeira década do século XXI, uma expressão que virou moda, chamada “big data”, que é um volume enorme de dados coletados e tratados em grande velocidade e variedade, gerando um grande valor.
O fato é que os dados passaram a ser um ativo de grande valor econômico e, portanto, o capitalismo digital, na segunda década do século XXI, iniciou uma conversão para um capitalismo digital-dataficado, ou seja, baseado em dados.
Os dados passaram a ser um ativo de grande valor econômico e, portanto, o capitalismo digital, na segunda década do século XXI, iniciou uma conversão para um capitalismo digital-dataficado – Sérgio Amadeu Tweet
IHU – Como essa mudança tem gerado novas empresas e modificado as antigas?
Sérgio Amadeu – É preciso notar que, para o tratamento de dados, surge um tipo específico de empresa, dentre as várias que existem, de big techs, de grande corporação tecnológica, que se posicionam de um modo melhor para coletar, tratar e extrair valor de dados. Essas instituições são o que nomeamos de plataformas. São estruturas empresariais de intermediação digital de diversas ações sociais ou de mercados. As plataformas atuam como intermediárias da oferta e da demanda de produtos e serviços a partir das suas interfaces e aplicativos.
As plataformas atuam como intermediárias da oferta e da demanda de produtos e serviços a partir das suas interfaces e aplicativos – Sérgio Amadeu
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Uber como exemplo de plataforma
O Uber é uma plataforma que oferece um aplicativo com uma estrutura dinâmica, amigável e extremamente funcional. E o que ele faz exatamente? Ele coleta dados de motoristas que querem ofertar o seu carro para prestar serviços e de clientes que precisam de carro para se locomover num ambiente urbano. Então, ele entra como um intermediário e passa a ofertar motoristas e carros para quem precisa se locomover e clientes para quem precisa vender o serviço de locomoção urbana. Só que essa intermediação se torna também uma mediação porque, a partir de uma certa quantidade de dados acumulados, as plataformas passam a mediar as diversas interações dos mercados, coletando e analisando dados dessas relações, e passam a interferir efetivamente nessas relações. Existem plataformas em diversos setores da economia e elas vão criando, inclusive, novos mercados.
O livro Platform Capitalism, de Nick Srnicek – autor de origem tcheca –, mostra as transformações pelas quais o capitalismo passou para que pudesse ser nomeado como capitalismo de plataforma. As plataformas estão penetrando em vários setores da economia e da sociedade.
Esta imagem [abaixo] é de uma pesquisa de 2017, de uma consultoria em que plataformas de diferentes tamanhos são nomeadas como white sharks (tubarões brancos), swordfish (peixe-espada) e piranhas. Ao mesmo tempo, isso mostra que existem inúmeras plataformas e uma plataformização de inúmeras atividades.
Sem dúvida nenhuma, as grandes plataformas são Google, Apple, Facebook, Microsoft, e as chinesas Alibaba, Tencent e outras. Existem plataformas intermediárias, como Netflix, Airbnb e outras, que o tempo todo estão sofrendo ataques das grandes plataformas, as quais muitas vezes “engolem” as pequenas. Para se ter uma ideia, essa consultoria apresenta um quadro, mostrando um conjunto das quatro grandes empresas norte-americanas, excluindo até a Microsoft. As quatro grandes empresas são Google, Amazon, Facebook e Apple. Elas têm infraestrutura, inteligência artificial, hardware, servidores de mensagem, aplicações de entretenimento, de mídia, carros eletrônicos, meios de pagamento eletrônico, redes de propaganda, redes programáticas. Essas empresas partem de pontos diferentes e cada uma tem um foco: o forte do Facebook é a rede social, o forte do Google são os mecanismos de busca e de visualização, o forte da Amazon é o comércio eletrônico e o da Apple é o hardware, mas todas caminham para um enfrentamento baseado em coleta extensiva de dados de várias áreas da economia.
IHU – Em que outras áreas essas empresas estão atuando?
Sérgio Amadeu – Essa plataformização chegou à área de saúde. Em abril, a Microsoft – uma empresa de software que está se transformando numa plataforma, mas já se transformou também numa empresa de cloud (nuvem), de hospedagem de arquivos e de streaming – comprou uma empresa de inteligência artificial nos EUA que trabalha e tem contratos com 70% dos hospitais norte-americanos. Ao comprar essa empresa, a Nuance, por 19 bilhões de dólares, a Microsoft fez a sua segunda maior compra. A sua primeira maior compra foi o LinkedIn, por 19,8 bilhões. Ao comprar a Nuance, a Microsoft está comprando um sistema, um conjunto de algoritmos, uma série de contratos na área de saúde e entrando decididamente numa área de inteligência artificial, de linguagem natural e de redes neurais profundas, para atender a área de saúde, mas, em breve, ela vai expandir esse serviço para o mundo inteiro. Essa plataformização não está acontecendo somente na área de saúde: empresas entram num mercado como intermediadoras e passam a ofertar interações e, depois, passam a controlar esse mercado a partir dos dados que obtêm de todos os agentes desse mercado. Isso é o que está acontecendo no campo hoje, na África, na Ásia e na América do Sul.
IHU – Como este processo está ocorrendo na agricultura?
Sérgio Amadeu – A Xarvio Digital Farming Solutions, da Basf, está criando uma série de estratégias para gerenciar o campo para médios e grandes negócios, como o agronegócio. Ela, que já vende agrotóxicos e transgênicos, agora vai tentar coletar dados do solo, da terra, para poder melhor atender e controlar essa atuação no campo relacionada à produção de alimentos.
Um exemplo é um aplicativo que se instala no celular e é operado tal como o Airbnb opera ou o Google, quando se faz um mecanismo de busca. O aplicativo coleta dados e quando se clica num link ele sabe para qual link estamos indo e consegue extrair um padrão de acesso. Ao chegar no campo, a empresa oferece um pacote completo a partir das interações dos seus parceiros, e coleta dados dos seus usuários. Nesse sentido, há uma propaganda grande para tentar digitalizar uma empresa tradicional do mundo do agronegócio.
A Xarvio Digital Farming Solutions, que já vende agrotóxicos e transgênicos, agora vai tentar coletar dados do solo, da terra, para poder melhor atender e controlar essa atuação no campo relacionada à produção de alimentos – Sérgio Amadeu Tweet
Gosto muito do texto “A invasão das Big Techs na agricultura e produção de alimentos”, da ONG Grain, que trabalha para a pequena agroecologia agrícola e para os movimentos sociais. Trata-se de um coletivo de pesquisadores e ativistas. Nesse texto, se explicita o que está acontecendo no campo: assim que as big techs chegam, elas criam uma série de vantagens para o pequeno, médio e grande agricultor ao mesmo tempo que criam novos intermediários, concentram renda e retiram renda de médios produtores e pequenos prestadores de serviços e passam a concentrar tudo isso em seus mecanismos algoritmizados de automação de atendimento. O que está acontecendo é que o novo agronegócio coleta dados dos agricultores e aprofunda as suas parcerias e o uso de venenos, de produtos químicos e de transgenia. Existe uma guerra para ver qual plataforma vai se sair melhor nesse mundo do campo.
Alguns podem dizer que há espaço para todo mundo. Mais ou menos, porque essas grandes corporações estão submetidas à economia de rede, onde aquele que vai se dando bem tende a um processo de monopolização ou no mínimo de oligopolização: a Bayer, a Basf, a Microsoft e outras empresas estão atuando no setor. Essas empresas estão coletando dados, mas também estão gerando soluções integradas para fazer empréstimos para os agricultores via seus aplicativos e meios de pagamentos dentro dos seus aplicativos. É o que o WhatsApp já está fazendo para o pequeno agricultor, para o pequeno prestador de serviço, que nem precisa sair do WhatsApp para fazer os pagamentos. Ele pode receber e pagar a partir do próprio aplicativo, que está fazendo parcerias com vários bancos. Alguém pode perguntar: isso não é bom? Isso tem um lado de facilitar as ações e tem um lado de tragar todas as relações de pagamento para dentro daquele aplicativo. Isso está acontecendo com o Alipay, da Alibaba, com o Digifarm, da Vodafone, que tem parceria com a Syngenta, uma empresa famosa no mundo dos transgênicos e dos venenos.
IHU – Que problemas estruturais o senhor vê na atuação das plataformas no campo?
Sérgio Amadeu – Temos uma terceira face dessa mesma problemática que é o novo intermediário, porque ele vai comprar direto dos pequenos, médios e grandes produtores, e vai criar uma cadeia de revenda. Quem está mais avançado nisso é a Twiga Foods, que está usando a nuvem da Microsoft e tem o apoio de um grande grupo de investimentos financeiros, o Goldman Sachs, que tira atores locais da distribuição de alimentos que são produzidos pelos pequenos agricultores e gera uma intermediação em grande escala. A Amazon também está entrando nesse mercado.
O quarto elemento dessa cadeia de plataformização da produção de alimentos, do campo e da agricultura em geral, é a fase do comércio eletrônico, que vai embalar e trabalhar melhor os produtos, vai usar redes logísticas que estão organizadas pela Alibaba e pela Amazon, que competem mundialmente com o Walmart e a Flipkart. Essas empresas vão se enfrentar com o Facebook, que unificou recentemente todos os dados das suas três aplicações: Facebook, WhatsApp e Instagram. A empresa está se unificando para tentar entrar no comércio eletrônico e também chegar no campo. A Amazon e a Alibaba já estão muito bem posicionadas em uma cadeia onde a plataforma vende o produto, como o fertilizante, tem um entregador específico para aquele produto, tem a cronometria de tudo e, depois, acompanha a plantação e conhece o solo do agricultor como ninguém, por causa do uso de uma série de dispositivos e instrumentos que são colocados à disposição do agricultor, inclusive satélites. Ao final, o agricultor pode entrar na cadeia de distribuição e comércio eletrônico das grandes plataformas.
Você poderia perguntar: isso não é muito bom? Tem algumas vantagens, como velocidade, alguma melhoria no fluxo, sem dúvida, mas, por outro lado, isso gera uma concentração e um controle do campo por parte das plataformas.
A transgenia é responsável por essas melhorias onde se mata tudo, menos a soja – Sérgio Amadeu
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Lavoura de soja
Para se ter uma ideia, a Xarvio já está fortemente instalada na lavoura de soja no Brasil. Esse mercado é bastante complicado porque, de um lado, traz divisas para o país – e hoje a soja é um dos principais produtos da pauta de exportação do Brasil –, mas, de outro lado, o país e a produção ficam na mão de grandes laboratórios que têm a propriedade intelectual da semente transgênica. A soja transgênica é o carro-chefe da economia do Brasil, diz o site da Basf, mas se for ver, trata-se de uma disputa sobre se é bom ou não é bom ter a monocultura e a agricultura nas mãos de laboratórios e sementes transgênicas. Trata-se de uma disputa que envolve o governo e os ruralistas de grande porte. Não é à toa que, de acordo com o estudo sobre “20 anos de transgênicos: impactos ambientais, econômicos e sociais no Brasil”, 92% da área total de plantio de oleaginosas é de soja geneticamente modificada. A maior parte dessas lavouras fica no Mato Grosso, líder nacional de produção de grãos. No mercado brasileiro, tolerância a herbicidas, resistência a insetos e as duas características combinadas são as melhorias trazidas pela transgenia à soja. Isso torna as variedades transgênicas mais protegidas e, consequentemente, mais produtivas do que as suas versões convencionais. A transgenia é responsável por essas melhorias onde se mata tudo, menos a soja. Então, se tem novamente aquele fenômeno da “primavera silenciosa” sem uso de veneno banido, mas agora com uso de transgenia. São vastidões de plantações de soja que servem, principalmente, para alimento de gado.
A soja transgênica é o carro-chefe da economia do Brasil, diz o site da Basf, mas se for ver, trata-se de uma disputa sobre se é bom ou não é bom ter a monocultura e a agricultura nas mãos de laboratórios e sementes transgênicas – Sérgio Amadeu
Velhas e novas empresas e o monopólio do campo
Mudando de plataforma, a Syngenta, uma empresa tradicional no campo de agrotóxicos, está tentando evoluir para enfrentar as grandes empresas, tentando ser também uma grande plataforma digital. Ela tem um aplicativo que está avançando no Brasil, o Cropwise Protector, que significa “colheita inteligente”. Essa plataforma, como a propaganda dela mostra, une a tecnologia a inovações que solucionam os desafios enfrentados diariamente pelo produtor brasileiro em sua operação, a partir de softwares que usam a inteligência artificial para tornar a gestão e a produção mais eficazes e potencializar os rendimentos.
Então, existem as big techs novas, que nasceram no mundo digital, entrando no campo, mas tem também as velhas empresas de fertilizantes, tentando se tornar empresas digitais.
A Syngenta tem uma história controversa, porque é acusada de atacar trabalhadores sem terra, adulterar decisões, documentos, contaminar o solo e está envolvida em casos de violência física e moral contra trabalhadores rurais. O próprio relator da Organização das Nações Unidas – ONU sobre as Execuções Sumárias denunciou a Syngenta por atacar, no Paraná, militantes do Movimento Sem Terra – MST, que tinham uma ocupação e estavam produzindo agricultura familiar sem produto da Syngenta. Um dos casos mais famosos de ataques da empresa é o do Tyrone Hayes, que foi trabalhador e pesquisador da empresa durante muito tempo e acabou saindo e denunciando o herbicida atrazina [usado em plantações de milho, cana-de-açúcar e sorgo para o controle de ervas daninhas] porque ele tinha um efeito danoso. Ele foi perseguido, mas tem muita sustentação sobre as denúncias de que o herbicida ataca sapos e o ecossistema.
A penetração dos pesticidas e transgênicos os quais permitem que se façam plantios resistentes ao veneno, em geral, do laboratório que fez o tratamento da semente transgênica, facilita a vida do agricultor, mas, ao mesmo tempo, gera um problema de biodiversidade fenomenal: agride a terra, reduz e mata todas as outras espécies e, por causa disso, alguns tipos de fertilizantes e transgênicos foram banidos da Europa. Porém a Europa compra produtos de países que não os baniram: os asiáticos, os africanos e o Brasil. Vemos que a situação é bastante complicada e uma possibilidade é recorrer à agroecologia. Mas aí é que está: as plataformas chegaram também à agroecologia e têm ofertas para toda a extensão daquilo que é a prática do trabalho no campo. A Whole Foods era uma distribuidora independente, que se tornou grande, com foco em produtos agroecológicos. Há dois anos, a empresa foi adquirida pela Amazon. A empresa ainda não entrega no Brasil, mas em breve vai chegar aqui.
Existem as big techs novas, que nasceram no mundo digital, entrando no campo, mas tem também as velhas empresas de fertilizantes, tentando se tornar empresas digitais – Sérgio Amadeu
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IHU – Como as empresas de plataforma estão atuando no setor de agroecologia?
Sérgio Amadeu – Enquanto a Amazon negocia a venda de produtos do campo, que são extremamente danosos por ter uma quantidade danosa de venenos, ela também está no campo da agricultura agroecológica. Então, essas empresas de plataforma estão entrando para serem o controlador desse grande mercado, porque isso dá dinheiro. Tem um público preocupado com a saúde, ou preocupado com o ecossistema, com a biodiversidade. Então, as empresas não têm nenhuma dificuldade de atender o veneno do agronegócio e a agroecologia ao mesmo tempo, com empresas diferentes. A Amazon comprou a Whole Foods por 13,4 bilhões de dólares. Isso não é à toa. A empresa faz isso porque esse mercado tem um apelo.
Gostaria de mostrar que estamos vivenciando um rápido avanço da digitalização, da dataficação e da plataformização do campo. A Microsoft tem um serviço de nuvens, de hospedagem de sites, que é a Azure, mas ela também tem uma oferta de inteligência artificial para a agricultura. Se alguém tiver um contrato com a Azure FarmBeats, pode:
• Avaliar a integridade da fazenda usando os índices de vegetação e de água baseados em imagens de satélite;
• Obter recomendações sobre quantos sensores de umidade do solo devem ser usados e onde posicioná-los;
• Controlar as condições da fazenda visualizando os dados do terreno coletados de sensores de vários fornecedores;
• Obter o mapa de umidade do solo com base em dados unificados de sensores e satélites;
• Obter insights acionáveis ao complicar modelos de IA/ML usando conjuntos de dados agregados;
• Compilar ou aumentar a solução digital agrícola ao fornecer consultorias de integridade sobre a fazenda.
Com isso, as empresas vão obtendo informações para controlar a oferta e a demanda do prestador de serviço, para ficar como grande intermediário controlador do mercado e do campo. Elas têm datahub, acelerador, telemetria e várias precisões. Depois, a pessoa pode excluir todas essas informações sobre o seu terreno, mas elas não são excluídas dos servidores das empresas, conforme orientam em suas páginas: “Quando você excluir uma farm, os dispositivos e mapas associados a ela não são excluídos. Todas as informações de farm associadas ao dispositivo e aos mapas não serão relevantes. Você pode continuar a exibir dispositivos, telemetria e mapas do seu serviço FarmBeats”. É uma linguagem completamente confusa propositadamente. A empresa está dizendo para você que, para efeitos de processos jurídicos, os dados da sua terra, depois que você os excluir, não serão excluídos porque já serviram ao treinamento dos sistemas de aprendizado profundo que a empresa tem na Microsoft.
Isso tudo está ligado a um grande avanço da conectividade rural, que é essencial para poder avançar no campo com as plataformas. É por isso que o Facebook está muito preocupado em fazer a conectividade rural e a aceleração dessa conectividade rural. Esses elementos mostram que o digital dataficado e a plataformização chegaram com um objetivo: controlar economicamente as relações e a intermediação das interações no campo.