Brasil: a possível Metamorfose Agroecológica

Do Outras Palavras

Paulo Petersen, da Articulação Nacional da Agroecologia, entrevistado por Antonio Martins

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> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Paulo Petersen. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgatepor meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

A suposta “vocação” do Brasil para o agronegócio é um mito colonial, assim como é charlatã a ideia de que o setor agrário “salva” o país em meio à crise. Estas falsidades provocam atraso, devastação, desigualdade. Comandadas pela maior concentração de terras do mundo, elas alienam, em especial, o país de sua verdadeira ligação com o campo – onde poderiam multiplicar-se a produção familiar, os alimentos livres de venenos, cooperativas periurbanas capazes de oferecer ocupação e desafogar as metrópoles, áreas públicas de lazer aprazíveis e despoluídas. Nada disso precisaria ser tirado da cartola: já há, ramificadas pelo país, experiências agroecológias bem-sucedidas e políticas públicas que as apoiam. São saudável embrião. Falta generalizá-las – e para isso, será preciso enfrentar a resistência feroz do sistema agrícola dominante e de seu poder econômico, político e ideológico. Será preciso uma Metamorfose Agroecológica, cujos primeiros passos podem ser dados desde já – em especial se o país se livrar do neoliberalismo.

Passava das 9 da noite da última sexta-feira (2/7) quando o agrônomo Paulo Petersen, que integra o Núcleo Executivo da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), terminou de expor suas ideias. A entrevista que mantivemos pode ser vista como uma aula de Paulo – sobre as interações econômicas entre o ser humano e a natureza, a agricultura brasileira, as relações entre sua transformação e a democracia. Está disponível no vídeo e no podcast acima. É parte do Resgate, o projeto em que Outras Palavras procura – com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo – discutir a reconstrução do Brasil em novas bases e propor um novo horizonte político, alternativo aos do fascismo e do neoliberalismo. Há sempre, nestes casos, risco de simplificação, mas penso poder sintetizar a exposição nos seis pontos a seguir:

1. Se o PIB é um indicador enganoso, muito mais o é quando tenta medir a “produção” agrícola. Porque se trata da atividade humana que mais incide sobre a natureza; e os custos e danos impostos ao ambiente e à sociedade jamais são contabilizados. A produção brasileira de grãos mais que triplicou, nas últimas duas décadas. O setor primário (agropecuária e minérios, essencialmente) é o único, há anos, em que o país registra saldos comerciais positivos com o exterior. Mas esta contabilidade supostamente positiva esconde uma tragédia social e ambiental. Por estar concentrada em muito poucas mãos, a riqueza agropecuária contrasta com um país que retornou ao Mapa da Fome. A inflação da cesta básica disparou, em boa medida porque a agricultura brasileira está cada vez mais voltada à produção de commodities para exportação e não para atender às demandas alimentares da população.

O Brasil, que possui a maior área agricultável do planeta, tem, segundo Ladislau Dowbor, uma superfície equivalente à de cinco Itálias desaproveitada no campo. Não são áreas de florestas ou cerrado, mas propriedades rurais registradas, destinadas à especulação fundiária a uso de baixíssima intensidade – pecuária extensiva, por exemplo. Mas apesar disso, os grandes proprietários e as corporações associadas a eles não param de exercer pressão. Avançam sobre territórios de povos tradicionais e áreas de proteção ambiental. Têm força no Congresso para “passar boiadas” seguidas, como o “Projeto da Grilagem” (PL 510/2021), que legaliza o roubo de áreas públicas e o “Marco Temporal” (PL 490/2007), que pretende avançar sobre as terras indígenas. Quanto mais enriquecem, mais agem para excluir. “Por basear-se na lógica de competição, e na maximização do lucro no curto prazo, o agronegócio precisa expandir-se incessantemente”, lembra Petersen.

2. Dois fatores concorrem para esta distorção. O primeiro, suficientemente conhecido, é a formação colonial brasileira — que privilegia, desde que o pais foi fundado, o latifúndio e a monocultura e, como consequência, resulta em segregação social e degradação ambiental. Mas este fenômeno ganhou novos contornos nas últimas três décadas, fortalecendo-se com a globalização neoliberal. O marco principal da mudança, lembra Petersen, foi o Acordo Agrícola da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Ele transformou o campo em todo o mundo. Promoveu mercantilização sem precedentes, ao inundar os mercados nacionais com bens produzidos a milhares de quilômetros de distância e quebrou as barreiras que protegiam as agriculturas locais. Graças a ele, as megacorporações agrícolas globais do agronegócio agigantaram-se através de fusões. E, já sem conhecer fronteiras, firmaram alianças em diversos países com as classes locais de grandes proprietários de terra. É esta força que dá origem e alimenta fenômenos como a “bancada ruralista” brasileira.

3. Mas a verdadeira AgriCultura expressa, como diz a palavra, uma interação muito mais profunda do ser humano com a natureza e consigo mesmo. Ela não visa apenas obter produtos. Sua atividade reprodutiva é essencial – envolve relações com o clima, a manutenção de uma cobertura vegetal protetora, a preservação dos solos, as dinâmicas ecológicas locais, as culturas alimentares. É ao tentar reduzir todos estes processos à produção em escala de mercadorias que o agronegócio rompe estes equilíbrios e introduz as dinâmicas da devastação socioambiental.

Porém, há um mundo camponês que pulsa, sob a hegemonia da aliança entre os neoliberais e os herdeiros da colonização. Há ao menos 45 milhões de brasileiros – uma Argentina – no campo (e mais, segundo novas metodologias demográficas). Estas mulheres e homens produzem, segundo o IBGE, 70% dos alimentos que os brasileiros consomem.

4. A reconstrução do Brasil em novas bases precisa debruçar-se sobre as potencialidades do campo brasileiro, hoje tão subaproveitado e reduzido. A Reforma Agrária – vista como não apenas a redistribuição das terras, mas também a promoção de um novo projeto agrícola e econômico para o mundo rural – pode mudar as relações dos brasileiros com si mesmos e com a natureza. Implica respeitar a diversidade e refinamento dos cultivos e das culturas alimentares – ao invés de produzir commodities. Significa proteger os biomas naturais e, em vários casos, recompor os que foram devastados. Envolve a proteção dos solos e dos rios – hoje contaminados por venenos químicos e drenados além de sua capacidade. Inclui realizar o papel principal da Agroecologia: respeitar os conhecimentos agrícolas tradicionais e combiná-los com ciência avançada.

Mas este possível novo campo brasileiro tem também uma potencialidade pouco debatida. Ele pode ser, em especial nos tempos da internet e do trabalho em qualquer parte, alternativa de ocupação e moradia para parte da população comprimida nas metrópoles. Viver em comunidade junto à natureza, produzindo segundo métodos que a respeitem e combinando saberes tradicionais com técnicas avançadas pode ser uma perspectiva capaz de atrair milhões de brasileiros – de distintas classes sociais e faixas etárias. Imagine um pequeno sítio próximo a um centro urbano, onde trabalhe um grupo de famílias – parte diretamente envolvida em práticas agroecológicas, parte ligada a atividades urbanas, e conectada a elas a distância. Este núcleo desafogaria o déficit habitacional urbano, o encalacramento viário, a poluição, a superpopulação das metrópoles. Precisaria de terra – via Reforma Agrária –, crédito, assistência técnica, mercados por onde escoar a produção. Um novo projeto de desenvolvimento, construído após o colapso do neoliberalismo fiscal, precisa contemplar esta possibilidade.

5. A enorme vantagem, assegura Petersen, é que esta Metamorfose Agroecológica nem parte do zero. Ela pode apoiar-se em dezenas de milhões de agricultores em carne e osso, e em centenas de iniciativas agroecológicas que se espalham pelo país. Já há, inclusive, exemplos de políticas bem-sucedidas. No plano nacional, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos, ou os dispositivos que induziam prefeitos a adquirir de agricultores locais a comida destinada à merenda escolar. Vigoraram nos governos Lula e Dilma – embora, mesmo então, os recursos destinados ao agronegócio pelo Estado fossem incomparavelmente maiores. Foram destruídos numa ação de criminalização coordenada por Sérgio Moro, que Petersen descreve na entrevista.

Mas as políticas bem-sucedidas espalham-se pelo território. Uma pesquisa da ANA, durante as eleições municipais de 2020, identificou cerca de 760 iniciativas, em todos os Estados, encapadas por prefeituras e câmaras de vereadores em todo o espectro partidário. Neste caso, há semelhança com o SUS. A defesa dos agricultores é encampada pela população é assumida pelos governantes, que não querem se indispor com o eleitorado. Com base nesta experiência, e a exemplo do que já há na Espanha e está se formando na Argentina, a ANA levanta agora em lançar uma Rede de Municípios Agroecológicos, preparada para difundir e estimular as políticas contra-hegemônicas.

6. Ao longo da entrevista, Petersen frisou várias vezes: a construção de um Brasil Agroecológico não é um passeio: a resistência do agronegócio é e será feroz. Removê-la exigirá um processo politico baseado não em alianças institucionais, mas em mobilização social.

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