Brasil Terra Indígena: nossa história não começa em 1988

Por Caio Barbosa*
Brasília (DF) | MPA Brasil

O Acampamento “Luta Pela Vida” é a maior mobilização indígena nos últimos 30 anos, com mais de 170 povos reunidos, o número de indígenas supera os 6 mil participantes. Lideranças e organizações indígenas seguem reunidas em Brasília na luta contra a tese do “marco temporal”, processo que novamente foi adiado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF.

Após a leitura do relatório inicial feita pelo ministro Edson Fachin, na tarde desta quinta-feira, o julgamento foi novamente adiado para o dia 01 de setembro. A análise do processo estava marcada para ontem, porém, antes havia o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.696, lei que possibilita autonomia ao Banco Central (BC).

Logo em seguida a ação do BC e um pequeno intervalo dos ministros, Fachin deu início a leitura do seu relatório, documento que resume o histórico do processo. Porém, a sessão foi encerrada às 18 horas, sendo suspenso o julgamento para a próxima semana. O voto de Fachin já foi protocolado em junho. Nele, o ministro rejeitou o chamado “marco temporal”.

Indígenas acompanham julgamento do STF na Praça dos Três Poderes. (FOTO: Caio Barbosa/MPA Brasil)

É o quarto adiamento em quase dois meses. O julgamento deste caso teve início em plenária virtual, no dia 11 de junho, mas o ministro Alexandre de Moraes, pediu “destaque” minutos após começar, assim sendo suspenso. Entretanto, no início da sessão de ontem, o ministro Luiz Fux confirmou que o caso será retomado na próxima quarta (1/9), como primeiro item da pauta.

LUTA PELA VIDA: grande oca indígena
O Acampamento que reúne os mais de 170 povos indígenas de todas as regiões do Brasil, teve início no dia 22 de agosto e tem previsão de acabar no próximo sábado. Apesar disso, as mobilizações indígenas começaram bem antes na luta contra o chamado Marco Temporal, e seguirá nos territórios após o acampamento, até que a tese do marco temporal seja derrubada, e os direitos dos povos tradicionais e originários garantidos.

Os mais de 6 mil indígenas chegaram em Brasília e levantaram a maior mobilização pós-constituinte, a vitória já está garantida – fora do STF. A união e mobilização realizada pelas lideranças e suas organizações mostraram ao mundo que o Brasil é, sim, terra indígena. Além do apoio em várias partes do país, essa luta ganhou apoio formal da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), organismo da Organização dos Estados Americanos (OEA), e do Relator Especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Francisco Cali Tzay, que manifestaram-se contra a tese do marco temporal.

Plenária durante Acampamento em Brasília/DF. (FOTO: Caio Barbosa/MPA Brasil)

“Se o STF aceitar o chamado marco temporal em sua decisão sobre a demarcação de terras, no final deste mês, poderá legitimar a violência contra os povos indígenas e acirrar conflitos na floresta amazônica e em outras áreas”, afirmou o Relator da ONU.

FUTURO DAS TERRAS INDÍGENAS: segue o julgamento

Com a nova suspensão, o julgamento será novamente retomado na próxima semana com as sustentações orais: da Advocacia-Geral da União (AGU), representando o governo federal; dos advogados da comunidade Xokleng, da TI Ibirama-LaKlãnõ (SC), alvo da ação original; e do governo de Santa Catarina, que a propôs; além da Procuradoria-Geral da República.

Em seguida haverá 34 falas dos chamados amici curiae (“amigos da causa”), pessoas ou organizações que auxiliam as posições dos envolvidos diretamente. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – Coiab, Conselho Terena, Conselho Indígena de Roraima – Cir, Aty Guasú e demais organizações indígenas e indigenistas realizarão sustentações orais. Logo após, o ministro Fachi faz a leitura do seu voto e depois é seguido pelos demais ministros. Porém, é possível uma nova suspensão, caso haja algum pedido de “vistas” por parte dos ministros.

Indígenas na frente do STF fazem seus rituais. (FOTO: Caio Barbosa/MPA Brasil)

“O julgamento começou com uma atmosfera interessante, no sentido de que o ministro Edson Fachin exaltou o caráter ‘originário’ dos direitos indígenas e a importância da teoria do indigenato […] queremos que o STF conclua o julgamento e enterre a tese do ‘marco temporal’, para que possamos viver o nosso bem-viver, a nossa cultura e nossa ancestralidade com paz” afirma Maurício Terena, assessor jurídico da Apib.

A disputa no STF vai para além da análise de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, isso significa que a decisão servirá de diretriz para demais gestão federal e todas as instâncias da Justiça nos procedimentos demarcatórios.

O chamado “marco temporal”, é uma tese ruralista que limita os direitos indígenas. Segundo a interpretação, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Caso, se não estivessem na terra, esta necessitaria ter material comprovando disputa judicial ou em conflito na mesma data. 

MARCO TEMPORAL NÃO

Aquela história que você escutou na escola, na qual Pedro Álvares Cabral havia descoberto o Brasil, estava errada. Bem antes dos portugueses ou espanhóis invadirem o território do Brasil, aqui, inúmeros povos indígenas e originários já habitavam essas terras. Por isso, um dos lemas dessa mobilização em Brasília é: “nossa história não começa em 1988.” 

A tese e toda repercussão sobre o marco temporal chegou ao STF por intermédio da ação apresentada pelo Governo de Santa Catarina no âmbito do Recurso Extraordinário (RE)  1.017.365. O caso tem como objeto um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. Esta área já teve sua identificação, após estudos antropológicos, declarada pela Funai e pelo Ministério da Justiça como terra tradicional.

Além dos povos que habitam a TI Ibirama-Laklanõ, objeto da ação, impactará em dezenas de casos de demarcação de terras e disputas  sobre TIs que se encontram atualmente judicializados, são aproximadamente 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação. Ainda existe a questão dos povos indígenas isolados, que não foram confirmados pelo Estado, e seguem em estudos ainda. Caso o marco temporal de 1988 seja aprovado, as terras desses povos isolados não serão reconhecidas, abrindo portas para o seu extermínio.

Indígenas no Acampamento Luta Pra Viver. (FOTO: Caio Barbosa/MPA Brasil)

A tese do “marco temporal” além de injusta se torna inconstitucional, segundo os povos indígenas, porque desconsidera as expulsões e remoções forçadas, além das práticas de violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Há um fato que também é ignorado, até 1988, os indígenas eram tutelados pelo Estado, assim não podendo entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.

*com informações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib

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