
Por João Peres Tatiana Merlino Julia Dolce de Formoso do Araguaia (TO) e São Paulo (SP) l O Joio e o Trigo – publicado em 29 de outubro de 2025.

No projeto de assentamento Pirarucu, município de Formoso do Araguaia, no sudoeste do Tocantins, vivem dois agricultores chamados Pedro Pereira. A coincidência não para por aí — eles têm outras duas coisas em comum: jovens familiares acometidos por tumores e uma forte suspeita de que a contaminação por agrotóxicos esteja por trás desses diagnósticos.
O neto de Pedro Pereira Mendes, hoje com 18 anos, tem um tumor raro no cérebro. “Desde criancinha ele chorava dizendo que tava com dor de cabeça”, relata Maria das Neves, esposa de Mendes, em entrevista durante uma tarde quente, na varanda de sua casa.
Somente aos nove anos, quando o menino reclamou que os amigos tiravam sarro de sua altura, os médicos tiveram um diagnóstico. “Ele não crescia, passou mais de um ano sem crescer, porque o tumor comia os hormônios de crescimento”, conta a senhora de cabelo branco preso em um coque.

Já a filha do outro Pedro, Pedro Pereira Cruz, faleceu de câncer em setembro de 2023, aos 38 anos. O assentado prefere não falar sobre o assunto: “A vida é assim”, resume. Um de seus grandes amigos, morador da região, também perdeu um filho com a mesma idade e para a mesma doença.
“A gente vê muitos casos [de câncer], e são pessoas que conviveram ali dentro do foco do Projeto”, afirma. Escutando tudo da cozinha, enquanto preparam o almoço, a filha e a esposa de Pedro não se contêm: aproximam-se e começam a listar os vizinhos que apresentaram casos de câncer recentes. São tantos, em tantas famílias, que chegam a parecer uma banalidade – uma situação corriqueira.
O “projeto” ao qual o assentado se refere é o Projeto Rio Formoso, que fica nas margens do rio homônimo. É o maior empreendimento de agricultura irrigada da América Latina, ocupando quase 28 mil hectares, o equivalente à área de 28 mil campos de futebol, em Formoso do Araguaia.
Ele foi instalado na região nos anos 1980, durante a ditadura civil-militar (1964-1985), quando o território do Tocantins ainda fazia parte do estado de Goiás. Desde então, é gerenciado por cooperativas monopolizadas por grandes empresários.
Lá, se produz principalmente arroz irrigado no período de chuvas, e soja, na seca. O ciclo alternado significa mais do que uma produção dobrada: também indica que agrotóxicos são pulverizados durante o ano inteiro, sem intervalos.
Embora seja difícil de contabilizar o número exato dos casos de câncer na cidade, uma quantidade considerável de moradores é atendida no Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo. Dados mostram também uma alta ocorrência de mortes por câncer em Formoso do Araguaia. E pesquisas indicam a relação entre uso de agrotóxicos e incidência de casos oncológicos.
O Projeto Rio Formoso fica a menos de um quilômetro do assentamento Pirarucu e a 14 quilômetros do assentamento Lagoa da Onça, ambos criados no fim da década de 1990. Esse último é vizinho de outro projeto de arroz irrigado, a Companhia Brasileira de Agropecuária (Cobrape), fundada em 1982.
Em março de 2025, o Joio esteve na região: foi conhecer o Projeto Rio Formoso, entrevistou moradores dos dois assentamentos e do município de Formoso do Araguaia.

Uma placa enorme e descascada indica que chegamos ao Projeto. A pessoa que nos acompanha conversa com o segurança para liberar a entrada. É tudo imenso. As estradas são largas e os canais de irrigação que formam o projeto também: há o maior, de 80 metros de largura, e outros menores, de 20 metros.
A área de monocultura é tão grande que não é possível ver onde acaba. Tratores e caminhões circulam pra lá e pra cá. Visitamos uma das cooperativas, que recebe arroz de vários produtores e faz o beneficiamento.
A proximidade física e trabalhista com os projetos agrícolas é um denominador comum entre as pessoas ouvidas pela reportagem. A proximidade com pacientes oncológicos também.
O filho mais novo de Pedro Pereira Mendes, por exemplo, trabalhou por muitos anos no Projeto Rio Formoso e, assim como o neto do casal, sofre com dores de cabeça. “Ele mexia com veneno. Lá, quando tira um já planta outro, é zoada de avião de agrotóxico direto”, afirma.
“Sai gente para Barretos toda semana”
José Olímpio é morador do assentamento Lagoa da Onça. Sua mãe, aos 80 anos, tratou um câncer de reto no Hospital de Amor, nome atual do Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo. Distante 1.234 quilômetros, a cidade paulista é um destino comum para os moradores da região.
Essa distância é justamente uma dificuldade na hora de checar os dados sobre a origem de casos de câncer. A confirmação da informação não é simples. O diagnóstico costuma ocorrer em hospitais especializados em municípios maiores, para onde os pacientes se mudam temporariamente para tratamento, dificultando entender de onde vieram.
José Olímpio diz que Formoso do Araguaia lidera os municípios tocantinenses em incidência de câncer. O Joio questionou a Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins (SES-TO) sobre a afirmação, mas não obteve resposta.
Dessa forma, entender a incidência de câncer por município ainda é um “problema”, como explica Mariana Rosa Soares, enfermeira e doutora em Saúde Coletiva. “Além disso, no geral, os estados não têm registros atualizados, então a notificação do câncer é um problema”, avalia.
Mas a suspeita dos assentados não é infundada. Soares estuda exatamente a relação entre uso de agrotóxicos e incidência de câncer no Núcleo de Estudos Ambientais, Saúde e Trabalho (Neast) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), referência em pesquisas sobre o assunto no país.
A enfermeira tem estudos que mostram uma alta na incidência e na mortalidade por câncer infantojuvenil em jovens moradores de municípios sojeiros no Mato Grosso, marcados pelo alto consumo de agrotóxicos, como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso.
Para isso, o Neast mapeia principalmente os prontuários de hospitais regionais. A pesquisa de Soares mostra, por exemplo, que mais de 60% dos pacientes infantojuvenis do Hospital do Câncer em Cuiabá vêm desses municípios tomados pelo agronegócio.
O Joio solicitou ao Hospital de Amor de Barretos os dados de pacientes naturais de Formoso do Araguaia. O hospital, como o Projeto Rio Formoso, também ostenta um pódio latino-americano: o de maior centro de tratamento oncológico gratuito do continente.
Somente em 2024 o hospital realizou 905 atendimentos para 325 pacientes que indicaram Formoso de Araguaia como seu município de origem. O número é bastante alto. Para se ter dimensão, o total de pessoas atendidas representa 1,7% da população total de 18.881 habitantes do município tocantinense.
A mãe de José Olímpio não foi a única moradora de Formoso do Araguaia que viajou mais de mil quilômetros para se tratar em Barretos. De acordo com as pessoas que entrevistamos, é para lá que vai a maior parte dos pacientes oncológicos no município. “Sai gente para Barretos toda semana”, conta o assentado.
Elziná Cabral Ferreira, articuladora do Centro de Direitos Humanos de Formoso (CDHF), também menciona o hospital como destino comum dos moradores. “A gente conhece um monte de gente se tratando em Barretos, um atrás do outro. É assombrador.”

Os habitantes de Formoso do Araguaia, no entanto, relatam não apenas uma alta incidência: também revelam uma alta mortalidade pela doença. Nelsa Pereira Barros, moradora do assentamento Lagoa da Onça, fala sobre o alto número de óbitos por câncer no município. “Morre gente demais, todo mundo fica besta.”
Segundo Vanessa Neves, filha de Pedro Pereira Mendes, os óbitos de jovens têm crescido na região. “Cada vez mais gente jovem vai morrendo, antigamente a gente não via isso. Hoje a criança já nasce com câncer.” Ela lembra do caso da filha de um conhecido do Projeto de Assentamento Araguaia, vizinho ao Lagoa da Onça. A menina faleceu de câncer aos dez anos de idade. “Ela sofreu demais, nossa, essa menina sofreu.”
“Mesmo que os médicos tenham consciência da intoxicação, eles não falam”
Numa manhã quente de domingo, os moradores da região se reúnem para pescar. Calmamente. Os peixes mais fáceis de pegar não estão nos rios, mas nos imensos canais do Projeto. É ali, da água recém-escoada de lavouras tratadas com venenos e fertilizantes químicos, que sai a carne que vai abastecer as mesas dos camponeses.
Seguindo o caminho das imensas tubulações que abastecem os canais, chega-se ao rio. É de lá que a água é tragada, aos milhões de litros, quando as plantações demandam, e é para lá que elas retornam, levando venenos e o que mais vier.
O Tocantins é um dos estados brasileiros com mais registros históricos de intoxicação por agrotóxicos, segundo a publicação “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, elaborada pela geógrafa da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Bombardi.
O município vizinho a Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão, é um dos líderes desse ranking. Em 2024, ele foi o 19º município brasileiro com mais casos registrados, perdendo para cidades com populações consideravelmente maiores, entre elas, oito capitais.
Entretanto, foram apenas 35 registros de intoxicação. Já Formoso do Araguaia registrou apenas dois casos no mesmo ano, e apenas 25 na série histórica do SUS, que começou a ser realizada em 2009.
Esses dados, porém, tampouco são confiáveis. A subnotificação de intoxicação por agrotóxicos no Brasil é fato conhecido dos pesquisadores da área. Nos cálculos científicos, ela é estimada na ordem de 50 vezes – ou seja, para cada caso notificado haveria em torno de 50 não notificados.
Essa lacuna nos dados acontece tanto pela ignorância dos sintomas da intoxicação nas unidades básicas de saúde quanto por pressões diretas e indiretas do agronegócio sobre trabalhadores contaminados e sobre servidores da saúde.
Uma funcionária do Hospital Municipal de Formoso do Araguaia afirma que por lá chegam muitos trabalhadores do Projeto Rio Formoso com intoxicação. “Mas não tem um que tenha coragem de passar a informação correta. Os médicos que diagnosticam têm medo, registram como uma coisa comum. Eu até tento olhar o que eles escrevem, e é só ‘chegou passando mal, com falta de ar’. Mesmo que os médicos tenham consciência, eles não falam”, revela.
Ainda que não houvesse uma omissão nos registros, os dados representam apenas os casos agudos de intoxicação. Doenças crônicas provocadas por anos de exposição a agrotóxicos, como é o caso do câncer, não são contabilizadas.
A reportagem consultou o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) e a Secretaria Estadual de Saúde sobre as intoxicações por agrotóxicos e os relatos sobre a alta incidência de câncer.
A SES-TO informou que “em toda a produção agrícola intensa, há o risco de exposição ocupacional e de intoxicação por agrotóxicos em trabalhadores”, e que atua há anos, via Cerest, com ações de prevenção de intoxicação dentro do Projeto Rio Formoso, bem como em ações voltadas à questão da água contaminação por agrotóxicos.
Sopa de agrotóxicos nas águas do rio Formoso
Muitos agrotóxicos são apontados como prováveis ou possíveis carcinogênicos. Entre eles está o herbicida atrazina, um dos mais utilizados no mundo.
Um estudo conduzido pelo Laboratório de Pesquisa em Química Ambiental e de Biocombustíveis (Lapeq), da Universidade Federal do Tocantins (UFT), mapeou agrotóxicos nas águas do rio Formoso. A atrazina foi um dos produtos encontrados em maior concentração.
Classificada como desregulador hormonal por uma robusta bibliografia científica, a atrazina é associada a problemas reprodutivos. Alguns estudos, porém, têm indicado também seu potencial cancerígeno.
“Ela causa lesão renal, mutagênese [mutações genéticas], teratogênese [impactos no desenvolvimento embrionário] e carcinogênese [formação de câncer]”, afirma a pesquisadora do Neast, Mariana Soares.
Ainda assim, a Anvisa classifica o ingrediente como “improvável de causar dano agudo” para a saúde humana, embora também o classifique como “muito perigoso ao meio ambiente”.
O estudo do Lapeq, que integrou a tese de doutorado de Patrícia Guarda Martins, professora da UFT, investigou a presença de 69 ingredientes ativos de agrotóxicos em diferentes pontos do corpo hídrico. Além da atrazina, outros 20 foram detectados. O herbicida clomazone também se destacou pelas altas concentrações.
Embora tenha sido identificada em diferentes pontos de coleta do rio, a contaminação da água por atrazina e por clomazone era até cinco vezes maior na água coletada após o rio margear o Projeto Rio Formoso.
Um detalhe importante é que, segundo a professora, o uso da atrazina para arroz e para soja, principais culturas do Projeto Rio Formoso, não era autorizado no Tocantins à época da coleta, entre 2018 e 2019. Entre as sub-culturas plantadas no projeto, o milho é o único que tem autorização para uso de atrazina.

A concentração dos ingredientes ativos identificados pelo Lapeq no rio Formoso ficou abaixo do limite brasileiro para contaminação de agrotóxicos em água. A professora Patrícia Martins avalia, porém, que o limite brasileiro é muito permissivo e sequer considera os potenciais danos da mistura de diferentes agrotóxicos na água.
“Quando a gente fala de limite, a legislação aborda princípios ativos isolados. Então, quando você tem uma sopa de agrotóxicos, como esses 21 que detectamos, você tem que levar em consideração que essas substâncias misturadas podem ter maior toxicidade”, explica.
Mais sobre a atrazina
A atrazina foi proibida na União Europeia em 2004. A Suíça, sede da multinacional agroquímica Syngenta, que desenvolveu o ingrediente ativo, também proibiu o produto em 2012, mas segue exportando para diferentes países, incluindo o Brasil. Em 2021, o ingrediente foi o quinto agrotóxico mais vendido no país: foram 37 mil toneladas de atrazina comercializadas. Em 2023, o Ministério Público do Trabalho (MPT) chegou a entrar na Justiça para cobrar da Anvisa o cancelamento do registro da atrazina, alegando ser impossível falar em níveis seguros da utilização do ingrediente no Brasil. A atrazina também é o agrotóxico mais identificado em pesquisas que investigam a contaminação de águas no Brasil e no mundo.
O Projeto Rio Formoso e a família Valadão
Um dos argumentos mais comuns para a defesa da instalação de projetos de infraestrutura que chegam com impactos socioambientais é o progresso. Não foi diferente com o Projeto Rio Formoso. José Olímpio pondera que, apesar dos “malefícios” trazidos pelo empreendimento agrícola, ele “alavancou a economia do município”.
Entretanto, o assentado pondera que os ganhos econômicos estão “na mão de poucos”. Neste caso, mais especificamente, de uma família: os Valadão.
O Projeto Rio Formoso foi um dos principais legados de Ary Ribeiro Valadão, ex-governador do Goiás, falecido em 2021. O empreendimento envolveu a criação dos canais de irrigação e reservatórios que desviaram as águas do rio Formoso.
Apesar de ter sido implantado com orçamento público, inclusive fundos do BNDES — à época, apenas BNDE, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico — a titulação das terras e a gestão da produção foram transferidas ao poder privado organizado em cooperativas de produtores.
Pesquisas acadêmicas mostram que, durante a aquisição das terras para a implantação do projeto, houve uma série de irregularidades. Os moradores anteriores dos 28 mil hectares, posseiros e indígenas, revelam esses estudos, foram expulsos. Sua participação na operação sequer teria sido considerada. As terras ficaram nas mãos de imigrantes.
Em 1979, foi fundada a Cooperativa Agroindustrial Rio Formoso (Cooperformoso), para gerir a primeira etapa do projeto. No mesmo ano, para a segunda fase, foi fundada a Cooperativa Mista Rural Vale do Javaés Ltda (Cooperjava). Já em 1981, para a terceira etapa, foi fundada a Cooperativa Mista Rural Lagoa Grande Ltda (Cooperagran).
Com o início das operações, as cooperativas deveriam ressarcir o estado de Goiás pelos gastos efetuados. Porém, com a criação do estado do Tocantins, em 1988, essas dívidas foram absorvidas pela União, e deixaram de existir.
“Nesse processo, os grandes beneficiários acabaram sendo os próprios produtores agrícolas das cooperativas”, escreveu o geógrafo Daniel Bartkus Rodrigues em dissertação sobre o projeto, defendida na UFT, em 2013.
Desde o início, essas cooperativas ficaram nas mãos de grandes fazendeiros. A principal parcela do Projeto Rio Formoso ficou com os próprios parentes do governador Ary Valadão.
Embora a Política Nacional de Cooperativismo, de 1971, já estabelecesse à época que o ingresso em cooperativas é livre a qualquer cidadão, as cooperativas do Projeto Rio Formoso foram monopolizadas por esses empresários.
Entre os beneficiados da segunda etapa do projeto havia parentes do ex-governador: seu irmão Ovídio Valadão, e seus sobrinhos Cloves Oliveira Valadão e Carlos Oliveira Valadão. Barbosa mapeou que, no início dos anos 1990, os três parentes de Ary reuniam 1.422 cotas de terras, de tamanho variável entre 150 e 750 hectares, subscritas na Cooperjava, tanto como pessoa física quanto como pessoa jurídica.
Um morador de Formoso do Araguaia que também trabalhou no Projeto Rio Formoso resume esse controle por parte dos herdeiros de Ary Ribeiro Valadão. “Outros não entram lá, não tem espaço. Eles são quem dita o preço da carga, controlam tudo. Fica na unha deles.”
Hoje, o patriarca da família na região é Cloves Valadão, diretor da Coopergran e proprietário de 13 empresas, a maioria delas parte do grupo Cereais Vale do Javaés.
Em 1994, uma reportagem da Folha de S. Paulo já nomeava Cloves como o “maior produtor individual de arroz do Projeto Formoso”. À época, eram três mil hectares distribuídos na Cooperjava e na Cooperformoso.
O Joio levantou os Cadastros Ambientais Rurais (CARs) de propriedades registradas no nome de Cloves Valadão ou de suas empresas. O CAR é um registro público, autodeclaratório, que reúne informações de propriedades rurais. Ele tem 56 CARs ativos, totalizando 34.242 hectares, sendo 38 deles, um total de 4.639 hectares, módulos do Projeto Rio Formoso.
Em outras palavras, 16% das terras do projeto criado pelo ex-governador estão nas mãos do sobrinho.
Segundo a pesquisa do geógrafo Daniel Rodrigues, enquanto seis assentamentos da reforma agrária, que abrigam 500 famílias, ocupam 2% do território do município de Formoso do Araguaia, apenas seis proprietários de terra controlam 8%.
As empresas de Cloves reúnem sete multas no Ibama entre 2015 e 2019, sendo quatro delas em lotes do Projeto Rio Formoso. Todas as infrações dentro do projeto se resumem ao uso ou ao depósito de agrotóxicos em desacordo com a lei.

Uma denúncia do Ministério Público referente às fiscalizações do Ibama revela que os fiscais do órgão ambiental constataram o depósito de agrotóxicos vencidos há mais de seis meses.
O Joio também localizou uma apresentação de 2023 elaborada por representantes da Syngenta, uma das maiores multinacionais de agrotóxicos, sobre os produtos da empresa utilizados por Cloves Valadão no Projeto Rio Formoso.
A apresentação traz um mapa dos lotes do projeto, com destaques em vermelho, aparentemente representando todos os lotes nas mãos do empresário.

A apresentação mostra também fotos de visitas de consultoria e acompanhamento feitas por técnicos da Syngenta à produção de Cloves, motos entregues ao empresário como “ações de relacionamento”, além de incluir um planejamento para a safra de 2023/2024, no qual são listadas dezenas de agrotóxicos a serem utilizados. A atrazina é indicada para a produção de milho.
Além do poder econômico, Cloves segue próximo à política institucional. Em 2022, ele foi agraciado com a Comenda de Mérito do Agronegócio do Estado do Tocantins, em homenagem do então presidente da Assembleia Legislativa do Tocantins, o atual deputado federal Antônio Andrade (Republicanos-TO).
Contatado, Cloves Valadão não se posicionou sobre as questões apresentadas pela reportagem até a publicação.
m paralelo, o Estado segue direcionando recursos do orçamento público para o Projeto Rio Formoso. Em 2021, foi anunciado que o Governo do Tocantins destinaria R$ 30 milhões para revitalizar a infraestrutura dos canais de irrigação e barragens do projeto.
Barragens, enchentes e secas.
Para chegar à casa de Nelsa, atravessamos um, dois, três, quatro, cinco, seis colchetes. Seu sítio fica ao final da estrada do assentamento. Embora sua casa, seu gado e sua roça tenham sofrido muito com enchentes, a diversidade de árvores e plantas de seu quintal chama a atenção.
Os assentados de Formoso do Araguaia estão acostumados a perder toda a produção para enchentes. Periodicamente, o município sofre com alagamentos intensos. O último deles foi em 2023. “Morreu tudo, 80% do nosso gado morreu”, afirma a assentada.
Os entrevistados acreditam que as modificações feitas pelo agronegócio nas bacias do rio Formoso, e do rio Javaés, que margeia o Assentamento Lagoa da Onça e o projeto Cobrape, estejam por trás dos eventos climáticos extremos.
“Nós conhecemos a região e sabemos o tamanho dos impactos que o projeto causa. A água que a gente espera é a que vem da chuva. Agora, a água que é tirada de uma lavoura e jogada no rio, é diferente. Ela enche de uma hora para outra”, afirma a ribeirinha Olinda Coelho de Melo, que mora às margens do rio Javaé.

“Amanheceu e a gente ficou caçando os chinelos, porque a água tava chegando na cama. Nessa época realmente nós perdemos tudo. Todo mundo perdeu e teve que reconstruir tudo”, lembra Maria Helena dos Santos Guimarães, do assentamento Lagoa da Onça.
Em 2017, a Agência Nacional de Águas (ANA) informou que três barragens do Projeto Rio Formoso (Taboca, Calumbi I e Calumbi II) estavam classificadas em um nível de Dano Potencial Alto no Relatório de Segurança de Barragens. Sobre a barragem Taboca, foi descrito que havia “estruturas comprometidas e parcialmente inoperantes”.
A recuperação das barragens estava prevista na obra de R$ 30 milhões anunciada pelo governo do Tocantins para o Projeto Rio Formoso. O Joio questionou o governo estadual, mas não obteve resposta.
Mas as enchentes não são os únicos impactos climáticos do agronegócio na bacia do rio Formoso. A irmã Marie Madeleine Hausser, conhecida como Mada, uma das fundadoras da Comissão Pastoral da Terra Araguaia-Tocantins, aponta que se as enchentes inundam casas e plantações no período da cheia, as secas também estão mais intensas na região.
“O Projeto Rio Formoso chupa praticamente toda a água do rio. Eles têm canais enormes. Depois que passa pelo projeto, parece outro rio. Tem tempo que o ribeirinho fica se queixando que falta água também. Quem manda é quem tem o poder da grana, mesmo. É triste”, lamenta.
Em 2016, o rio Formoso viveu uma seca sem precedentes devido às outorgas para irrigação de fazendas. À época, o MP-TO judicializou a questão, e diagnosticou que o Naturatins não tinha nenhum controle sobre as outorgas. Três anos depois, os promotores pediram a suspensão dessas autorizações.
No entanto, os empresários dos grandes projetos agrícolas da região também dominam os espaços decisórios sobre a gestão de outorgas, como o Comitê da Bacia do Rio Formoso (CBHRF).
PERES, João. MERLINO, Tatiana. DOLCE, Julia. Camponeses vizinhos de projetos de irrigação sofrem com incidência de câncer no Tocantins, O Joio e O Trigo, São Paulo, 29 out. 2025. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2025/10/camponeses-vizinhos-de-projetos-de-irrigacao-sofrem-com-incidencia-de-cancer-no-tocantins/. Acesso em: 31 out. 2025.
