Especialistas criticam falta de fiscalização sobre uso dos produtos; estudantes de escola atingida por substância ficaram conhecidos como ‘os envenenados’
O Globo
Eram 9h15m no dia 3 de maio de 2013 e dezenas de crianças brincavam no pátio da Escola Municipal São José do Pontal, em Rio Verde (GO). As brincadeiras foram interrompidas pelo barulho de um avião que voava baixo e jogava agrotóxico no local, onde havia uma lavoura de milho.
Quase cem pessoas, entre alunos e professores, começaram imediatamente a se coçar e a ter dificuldade para respirar. O diretor, Hugo Alves, tirou a camisa e começou a balançá-la, com os braços estendidos, tentando chamar a atenção do piloto. A aeronave foi embora pouco depois.
— Foi um banho de veneno — lembra Alves. — Muitas crianças se jogaram no chão e pediram socorro. Todos foram levados a um hospital na cidade vizinha porque sentiam dor de cabeça e enjoo. Alguns alunos foram internados mais de dez vezes, porque a saúde melhorava por alguns dias, mas logo depois voltavam a manifestar os mesmos sintomas. Hoje, em toda a cidade, somos conhecidos como os envenenados. Foi uma trauma para as crianças.
O diretor, os estudantes e os professores da escola rural encaixam-se em uma estatística preocupante: as notificações por intoxicação por agrotóxico dobraram desde 2009, passando de 7.001 para 14.664 no ano passado, segundo o Ministério da Saúde .
Um relatório da pasta cogita que o fenômeno seria resultado do “aumento da comercialização dessas substâncias e da melhoria da atuação da vigilância e assistência à saúde”.
Desde o início do ano, o governo Bolsonaro abriu as portas para 124 novos agrotóxicos, quase um por dia. A avaliação sobre os produtos deve ser chancelada por três órgãos: Anvisa (que analisa o impacto à saúde), Ibama (estuda o efeito da substância no meio ambiente) e Ministério da Agricultura (responsável pela ciência agronômica).
No entanto, ambientalistas denunciam a imposição de uma série de fatores que tentam fortalecer o papel do ministério e estrangular a influência das outras instituições.
‘Estamos comendo veneno’
Membro do Grupo Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), André Burigo assinala que a emenda constitucional 95, de 2016, limitou por 20 anos os gastos públicos, congelando os investimentos em saúde. Além disso, em abril, o Ministério do Meio Ambiente anunciou o corte de 24% do orçamento do Ibama.
— O país está com a porteira aberta, vivendo uma crise sanitária. Estamos comendo veneno — protesta. — Ao contrário do que ocorre na União Europeia, nossa legislação não impõe uma avaliação periódica das substâncias usadas no campo. Desta forma, perdemos noção sobre os casos de infecção e os avanços científicos. Os relatórios da Anvisa sobre resíduos em alimentos, que eram divulgados anualmente, agora são divulgados apenas de três em três anos.
Os dados mais recentes da Anvisa referem-se ao período entre 2013 e 2015. O monitoramento incluiu 25 alimentos, que correspondem a 70% daqueles de origem vegetal consumidos pela população brasileira.
Das 12.051 amostras, 80,3% foram consideradas satisfatórias, enquanto pouco mais de 19% apresentavam irregularidades, como o uso não autorizado ou acima do permitido de agrotóxicos.
Segundo Pedro Serafim, coordenador do Fórum Nacional de Combate ao Impacto dos Agrotóxicos, o país assume a “vocação de uma lixeira”.
— Somos um dos maiores produtores de grãos do mundo, mas estamos perdendo mercado no exterior, porque cada vez mais países restringem o comércio de produtos com determinados agrotóxicos, em uma tentativa de proteger a saúde de sua população — explica. — No Brasil, não há o mesmo cuidado, já que o setor agrícola é o motor de nossa economia.
Serafim acredita que o governo federal dificilmente tomará iniciativas contrárias ao agronegócio. Por isso, há poucos recursos e equipes disponíveis para fiscalizar o uso de insumos contaminantes no campo.
Segundo a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, não há auditores destacados especificamente para a fiscalização do uso de agrotóxicos. Assim, não é possível determinar os recursos necessários e disponíveis para esta atividade.
Náuseas, sangramentos e até câncer
Em um dossiê sobre o impacto dos agrotóxicos, a Abrasco destacou que substâncias usadas em inseticidas, fungicidas e herbicidas podem causar sintomas como náuseas, contrações musculares involuntárias, sangramento nasal e conjuntivite. Se a intoxicação for crônica, o quadro pode evoluir, em alguns casos, para doenças como mal de Parkinson e câncer.
As vítimas da exposição aos agrotóxicos, porém, encontram dificuldades para mover ações judiciais contra as empresas responsáveis pelo produto, uma vez que é difícil determinar se a enfermidade foi motivada especificamente pelo contato com um veneno, e não por outros fatores.
No caso da escola goiana, a Justiça condenou no ano passado por danos morais as empresas Aerotex Aviação Agrícola Ltda, responsável pela pulverização, e a Syngenta Proteção de Cultivos Ltda, encarregada do uso do agrotóxico, a pagar R$ 150 mil às vítimas do incidente. Ambas recorreram e não há data para novo julgamento.
Em nota ao GLOBO, a Aerotex informou que prestou assistência às pessoas que tiveram “como fator gerador aquele incidente”, e está respondendo a ações em que foi “incapaz de acarretar os danos à saúde alegados”.
A Syngenta, por sua vez, afirmou que “promove regularmente treinamentos para que os produtos que comercializa sejam utilizados de forma correta e segura” e que lamenta “o (episódio) ocorrido”.