Por Daniel Giovanaz
Do Brasil de Fato
Em janeiro de 2019, Santa Catarina virou notícia nacional por ser palco de um dos maiores extermínios de abelhas no país: 50 milhões morreram em menos de um mês. Testes custeados pelo Ministério Público estadual indicavam que os agentes causadores eram agrotóxicos usados em propriedades vizinhas. Porém, a falta de um protocolo para notificação e análise ágil das amostras dificultava a comprovação.
As melhorias recentes no processo de atendimento às ocorrências permitem afirmar hoje que os episódios de maior mortalidade estão relacionados ao inseticida Fipronil, aplicado em plantações de soja.
Dois anos e oito meses depois daquele extermínio, Santa Catarina tornou-se o primeiro do Brasil a restringir o uso desse inseticida.
A aplicação foliar do Fipronil foi banida por meio de uma portaria da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), que entrou em vigor este mês de setembro.
O uso do agrotóxico continua permitido, por exemplo, para o tratamento de sementes. Nesse caso, o risco para a vida das abelhas é ínfimo, segundo o engenheiro agrônomo Matheus Fraga, gestor da Divisão de Fiscalização de Insumos Agrícolas da Cidasc.
“O Fipronil, na modalidade foliar, é permitido [no Brasil] para soja, algodão e cana de açúcar. Aqui em Santa Catarina, não temos cultivo comercial de algodão nem cana de açúcar. Então, talvez nosso caminhar tenha sido facilitado porque, para a praga que o Fipronil se propõe a controlar [na soja], temos alternativas de outros produtos”, analisa.
Santa Catarina é o maior produtor de mel do país. O epicentro da contaminação em 2019 foi a região do Planalto Norte, onde 200 apicultores exportam para países como Alemanha e Estados Unidos, além de abastecer o mercado interno.
Um dos produtores mais prejudicados foi Alcides Frogel, do município de Mafra, que teve 150 colmeias afetadas em plena safra. Os prejuízos foram estimados em R$ 50 mil.
A reportagem conversou com Frogel e outros apicultores da região, que preferiram não comentar o assunto do Fipronil por terem sido criticados por sojeiros locais ao se manifestarem na imprensa em 2019.
Coordenador-Adjunto do Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (FCCIAT), o vereador Marcos José de Abreu (PSOL), conhecido como Marquito, afirma que a pressão da indústria química fez com que muitos apicultores fossem tachados como inimigos da agricultura ao criticarem o uso indevido de agrotóxicos.
“Os representantes da apicultura foram fundamentais no início desse debate, com seus relatos. Hoje, a movimentação da indústria, cooptando as representações da agricultura familiar, acabou contaminando o debate sobre os agrotóxicos e sobre a necessidade de garantir justiça tributária, social e ambiental”, lamenta.
A questão tributária, a que ele se refere, é um dos debates prioritários do FCCIAT. Os integrantes do Fórum são contrários às isenções de impostos para compra de agrotóxicos, além de se posicionarem pelo banimento da aplicação do Fipronil em território catarinense.
“É óbvio que a gente queria fazer um debate mais aprofundado sobre a molécula, mas, na conjuntura que estamos vivendo, ter essas restrições já é um passo adiante”, ressalta Marquito.
A importância das abelhas não se resume ao mel. Elas se alimentam de pólen e, ao pousar de flor em flor, transportam seu alimento para outras plantas. Esse processo, chamado de polinização, é essencial para a reprodução de vegetais que são consumidos por seres humanos e outros animais.
“Nos últimos anos, a monocultura de soja começou a aumentar no estado. E, com isso, vieram os agrotóxicos, causando um aumento na mortandade de abelhas. Em 92% dos casos de mortalidade, aparece o Fipronil, sozinho ou com outros produtos”, relata Ivanir Cella, presidente da Federação das Associações de Apicultores e Meliponicultores de Santa Catarina (Faasc).
“Temos duas regiões mais preocupantes no estado. No Planalto Norte, onde ocorreram aquelas mortes por conta do uso de Fipronil na época do florescimento da soja, e no Oeste, do inverno à primavera, quando fazem a secagem [do solo] para poder plantar milho e soja”, completa.
O desafio
Alceu Tomporoski, de Canoinhas (SC), perdeu dez colmeias em janeiro de 2019 e teve prejuízo de R$ 10 mil. Porém, nunca conseguiu comprovar o que causou as mortes de suas abelhas.
“A pesquisa atestou que não tinha nada a ver com Fipronil. Mas acho que foi porque demorou muito para a gente coletar as amostras”, lembra ele.
Estruturar um protocolo para resposta ágil a esses casos foi só o primeiro desafio.
A reação dos latifundiários que usam o inseticida é outra barreira enfrentada por agentes do Estado que tentam impor restrições ao uso do Fipronil.
O diálogo franco com todas as partes envolvidas foi um dos trunfos de Santa Catarina, na avaliação do gestor da Cidasc.
“Desde o começo de 2019, primeiramente com apoio do Ministério Público, que aportou recursos, e depois com recursos do próprio governo do estado, criamos um programa estruturado para atender todas as ocorrências que envolvem a mortalidade de abelhas”, relata.
Na época, formou-se um grupo de trabalho dentro da Secretaria de Agricultura, envolvendo a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri-SC) e a Cidasc, que traçaram estratégias para enfrentar o problema.
“Ao longo desse período [dois anos], a gente teve 23 ocorrências relatadas em Santa Catarina. Então, realizamos coletas de amostras e enviamos as abelhas para análise. Em oito delas, havia presença de agrotóxico, e em todas essas foi identificado o produto Fipronil”, detalha Fraga.
O engenheiro agrônomo não descarta que haja subnotificação, devido ao tempo de atendimento de cada ocorrência ou ao grau de sensibilidade do aparelho usado.
“Então, fizemos um parecer técnico baseado nesses relatos de casos, com toda uma revisão bibliográfica a partir de estudos científicos sobre os problemas do Fipronil. Também fizemos reuniões com o setor produtivo, com fabricantes de agrotóxicos e cooperativas agrícolas, mostrando que tínhamos um problema e precisávamos dar resposta à sociedade”, explica o gestor da Cidasc.
O percurso
Em paralelo às análises técnicas, a Companhia investiu em comunicação, aproximando agricultores e apicultores e divulgando as ações para a sociedade.
“Só pelas ações tomadas no sentido da divulgação [dos danos], este ano já reduziu muito a mortalidade de abelhas por agrotóxicos no estado”, ressalta o apicultor Ivanir Cella, presidente da Faasc.
A partir desse diálogo, consolidou-se um protocolo de atendimento às ocorrências e responsabilização dos culpados.
“O Fipronil não é um inseticida de choque, mas tem efeito retardado. Então, a abelha tem contato com o princípio ativo, volta, e ao se comunicar com outros indivíduos leva ao colapso de toda a colmeia”, diz Fraga.
“A abelha voa até 5 km de raio na busca de alimentos. No nosso cenário agrícola, isso abrange até 300 propriedades. Então, localizar o responsável por uma possível contaminação é muito difícil. Por isso, a gente decidiu focar na prevenção.”
Ou seja, considerou-se necessário estabelecer medidas restritivas ao uso do Fipronil. O gestor da Cidasc lembra que outros estados tentaram fazê-lo por meio de ações do Ministério Público, que não prosperaram após a reação de monocultores.
No caso catarinense, a portaria foi resultado de diálogo com todas as partes envolvidas. Por isso, o engenheiro agrônomo acredita que a chance de sucesso é maior.
“Em Santa Catarina, há menos monocultura do que nos estados vizinhos, como Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. Então, os casos de contaminação por agrotóxicos são menos frequentes”, acrescenta Ivanir Cella.
Algumas das maiores fabricantes, como a alemã BASF, já indicavam no rótulo que a aplicação foliar do Fipronil não era recomendável.
“Então, houve uma restrição de um produto que já nem deveria ser usado naquelas condições. Era um uso indevido”, conclui o presidente da Faasc.
O vereador Marquito afirma que o próximo passo será enfrentar os outros usos do Fipronil, para além da aplicação foliar.
“Produtos à base do Fipronil são usados para combate a parasitas em animais domésticos, e não sabemos como será esse controle. De toda forma, a Cidasc abriu o debate, e o que nós queremos é, a partir dessa decisão, avançar para o banimento desse princípio ativo”, finaliza.
Edição: Rodrigo Durão Coelho