Por Rafael Oliveira*
Há quase um ano, em março de 2021, uma estranha tempestade de poeira invadiu as comunidades quilombolas Chumbo e Jejum, em Poconé (MT), município pantaneiro localizado a 100 km da capital Cuiabá. Nos dias seguintes a esse episódio, dezenas de pessoas – entre elas crianças, mulheres grávidas e idosos – começaram a sentir alguns sintomas, como forte irritação na pele, náuseas, dor de cabeça e nos olhos.
O que aquelas pessoas estavam sentindo, inicialmente, poderia ser confundido com enfermidades triviais, como enxaqueca ou resfriado, mas, na verdade, era intoxicação por agrotóxicos. “As famílias das comunidades Chumbo e Jejum estão cercadas pelos latifúndios de soja e pecuária, que a cada ano vão invadindo mais seus territórios. O fazendeiro aplicou o veneno na soja, passou uns três dias e foi fazer a colheita. A partir desse manejo e com a força do vento, o resíduo daquela poeira envenenada contaminou as famílias”, relata Francileia Paula, engenheira agrônoma e educadora da ONG Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) no Mato Grosso.
À época, a Secretaria de Saúde do município foi notificada e pressionada a fazer um acompanhamento àquelas pessoas atingidas. De acordo com Francileia, que também é integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o caso expôs a fragilidade dos órgãos municipais em lidar com uma questão grave como essa. “Muitas vezes nós tivemos que capacitar os agentes públicos sobre o que fazer. As equipes de vigilância e saúde abertamente se posicionaram afirmando que não tinham parâmetro para poder lidar com casos de contaminação de agrotóxicos”, afirma.
A violência ocasionada pelo uso de veneno nas práticas do agronegócio, além de envenenar água e adoecer corpos, também extermina modos de vida ancestrais, segundo Laura Ferreira da Silva, quilombola e coordenadora estadual da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no Mato Grosso. “Hoje em dia é difícil produzir como antigamente, devido ao excesso de veneno jogado nas lavouras próximas às nossas comunidades. As famílias não conseguem mais produzir hortaliça agroecológica, em função do veneno pulverizado nas lavouras, por exemplo. Por mais que a gente faça o trabalho de resgate das sementes crioulas, essa violência tem colocado em jogo essa cultura tradicional que ainda resiste na comunidade. O pouco que conseguem produzir, ainda acaba sendo contaminado por agrotóxico”, protesta a liderança.
Mesmo diante de uma onda de ataques de diversas frentes, a luta por uma produção baseada na agroecologia, por soberania alimentar e pelo direito à vida segue pautando os trabalhos, aponta Francileia. “Junto com as famílias, nós temos incidido em espaços de combate ao agrotóxico no estado, para denunciar e cobrar dos órgãos políticas públicas de preservação da vida. Nossa pauta inclui cobrar implementação de territórios livres de agrotóxicos nas regiões do Pantanal e mostrar como isso impacta o modo de vida dessas famílias afetadas”, conclui.
Em meio a casos tão urgentes, um grupo foi formado para aprofundar o debate sobre os malefícios causados pelo uso de agrotóxicos nas atividades do agronegócio. Uma pesquisa conduzida, entre maio e junho de 2021, pela ONG Fase e pelo Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (NEAST), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), constatou a presença de oito tipos de agrotóxicos nas águas que abastecem as comunidades Chumbo, Jejum e outras. Dos agrotóxicos identificados, cinco estão banidos em países da União Europeia, no Canadá e na Austrália por serem uma ameaça à saúde humana e ao meio ambiente.
“Encontramos os agrotóxicos em tanques de piscicultura das comunidades – que estão a menos de 10 metros do plantio de soja -, na água do poço artesiano e, até mesmo, na água da chuva. Isso demonstra uma exposição ampla a essas substâncias e uma contaminação no próprio sistema como um todo”, alerta a professora Marcia Montanari, integrante do NEAST e do Instituto de Saúde Coletiva da UFMT.
A professora Marcia já realiza o monitoramento das águas do Mato Grosso há mais de 10 anos e, segundo ela, os dados têm sido cada vez mais alarmantes. “A gente sempre constatou a presença de componentes químicos, mas nunca encontramos tanto quanto agora. Todas as vezes que vamos fazer essas amostras, encontramos uma quantidade maior”, relata a pesquisadora.
Não é coincidência que casos como o das comunidades Chumbo e Jejum e o relato da professora Marcia estejam acontecendo com maior frequência. O Brasil fechou o ano de 2021 com 562 aprovações de agrotóxicos: o maior número já registrado desde o início da série histórica iniciada em 2000. Nos três anos do governo do presidente Jair Bolsonaro já foram liberados 1.529 agrotóxicos.
Recentemente, a ofensiva do agronegócio pela liberação ainda mais ampla de veneno ganhou um novo capítulo mórbido. Em 9 de fevereiro deste ano, a Câmara dos Deputados, em caráter de urgência, aprovou o Pacote do Veneno (Projeto de Lei – PL 6.299/2002). Agora, o projeto segue para apreciação do Senado.
O que já estava fragilizado, encaminha-se para um cenário ainda mais preocupante. Em nota oficial, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida afirma que o Pacote do Veneno “flexibiliza ainda mais o uso de agrotóxicos no país e substitui o atual marco legal (Lei 7.802), vigente desde 1989. Com violação a diversos artigos da Constituição e acordos e tratados que o Brasil ratificou, o projeto prevê a liberação de agrotóxicos cancerígenos; maior poder ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), e desautorização da Anvisa e Ibama; e abre espaço para uma ‘indústria’ de Registros Temporários”.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referência nacional nessa temática, lançou forte posicionamento em manifesto direcionado ao Senado Federal: “A Fiocruz atua na temática de Agrotóxicos e Saúde há muitas décadas, seja na pesquisa, na formação, na vigilância e no monitoramento laboratorial dessas substâncias na água, alimentos e nos ambientes, incluindo o do trabalho. A expertise acumulada ao longo de décadas de atuação nos permite afirmar que o PL irá impor graves retrocessos à sociedade, ampliando a contaminação ambiental e a exposição humana aos agrotóxicos, e que podem se materializar em adoecimento e morte da população, em especial daqueles em maior situação de vulnerabilidade”.
*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo / Brasil de Fato
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