Crise climática pode causar perda de safras e aumentar a fome. Mas candidatos das capitais do agro não se importam

Analisamos os planos de governo de candidatos a prefeito nas cidades mais ricas do agronegócio. Adivinha o que eles esqueceram?

Por Nayara Felizardo
Do Intercept


Imagine um país que perde, em 35 anos, quase 270 milhões de toneladas da sua produção de arroz e mais de 310 milhões de toneladas de feijão por causa das mudanças climáticas. Imagine um país com fome. 

Perda de safras e de áreas onde é permitido plantar legalmente, menos terras para plantio de alimentos e uma queda brutal no valor da produção agrícola são algumas das projeções de um dos relatórios do “Projeto Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”.

Desde a época do estudo, 2015, já se prevêem grandes prejuízos para o agronegócio com eventos extremos, como secas ou enchentes. Ou seja: as mudanças climáticas afetam diretamente o setor.

Com base em um documento da Articulação Nacional de Agroecologia, a ANA, que listou propostas de políticas públicas municipais importantes para combater a fome e a emergência climática, analisamos os programas de governo dos candidatos às prefeituras dos cinco municípios mais ricos do agro, segundo a pesquisa Produção Agrícola Municipal, de 2023. 

Juntas, as cidades de Sorriso, Campo Novo dos Parecis e Sapezal, no Mato Grosso, Rio Verde, em Goiás, e São Desidério, na Bahia, foram responsáveis por cerca de R$ 43 bilhões da produção agrícola brasileira em 2022, 5% da produção nacional. A principal lavoura é a soja.

Ao todo, avaliamos 17 programas de governo. Nenhum deles aborda políticas para mitigar a crise climática ou para restringir atividades de monocultivos. Também não propõem criação de zonas livres de agrotóxicos ou proibição de pulverização aérea.

Não tratam, ainda, da implantação de assentamentos municipais para famílias agricultoras sem-terra, ou de políticas para reconhecimento e valorização dos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais. 

Todas essas propostas, segundo o documento da ANA, têm como referência mais de 700 políticas públicas, programas, projetos ou leis que já existem em alguns municípios brasileiros e, portanto, não são uma utopia.

Os planos de governos que analisamos até mencionam termos como desenvolvimento sustentável, meio ambiente e agricultura familiar. Ao mesmo tempo, também propõem incentivar a implantação de agroindústrias e outras ações voltadas ao agronegócio. 

Área recém desmatada de cerrado na divisa com a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, na região do Jalapão. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress.
Área recém desmatada de cerrado na divisa com a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, na região do Jalapão. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress.

De acordo com Paulo Petersen, membro do núcleo executivo da ANA, mesmo que mencionem alguns termos e sugiram fortalecer a agricultura familiar, muitas propostas eleitorais ficam apenas no campo retórico. “Na prática, se mantém o controle de grandes corporações sobre os sistemas agroalimentares”, disse. 

Em Sorriso, o maior produtor agrícola do Brasil, conhecido como a capital nacional do agro, o candidato Alei Fernandes, do União Brasil, propôs o “Agro na Escola”, mas não deixou claro como o programa vai funcionar.  Entramos em contato com o candidato, mas não tivemos retorno.

Apoiado pelo atual prefeito Ari Lafin, do PSDB, Fernandes é dono do Grupo Irrigar, uma concessionária representante da multinacional americana Valley. A empresa oferece tecnologia de irrigação e energia solar. De acordo com seu site, contribui “com o agronegócio através do uso eficiente dos recursos hídricos e energéticos”. 

O único candidato que faz referência à crise climática é o Pastor Edson, do Republicanos. Ele concorre à prefeitura de São Desidério, município baiano que é o quinto maior produtor agrícola do Brasil e faz parte do Matopiba. Pastor Edson também não retornou nossos contatos.

A região de Cerrado reúne alguns municípios do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é considerada um dos principais vetores de crescimento do agronegócio brasileiro nos últimos anos.

Pastor Edson fala de “adversidades climáticas” no seu plano de governo, mas é no contexto em que comemora o aumento da produção no município, mesmo diante das dificuldades, por meio da expansão da área cultivada – ou seja, mais latifúndio. 

“Os produtores foram capazes de mitigar parte dessas perdas aumentando a área destinada ao cultivo de soja. [Isso] foi um fator crucial para garantir o crescimento na produção total, compensando as adversidades”, diz o texto.

Um tiro no próprio bolso

A questão é que o desinteresse dos candidatos em propor políticas públicas que realmente enfrentam a crise climática pode ser um tiro no próprio bolso do agro.

Os relatórios do “Brasil 2040” indicam que a soja será a cultura mais afetada pelas mudanças climáticas nas próximas décadas. As piores previsões apontam que até 2040 haverá perda de 39% da área em que se pode plantá-la legalmente com baixo risco climático. No melhor cenário, a perda seria de 11%.

Considerando os dados por região, a situação mais grave quanto ao plantio de soja seria no Sul, que perderia 99% da área legal agricultável de baixo risco climático. No cenário mais favorável, a perda seria de 32%.

O estudo ainda mostra queda no valor da produção nas próximas décadas devido aos eventos extremos. A maior perda acumulada em 35 anos também seria no preço da soja – R$ 8 trilhões, de acordo com a pior projeção. 

Outros dois cenários indicam perda de R$ 7 trilhões e de quase R$ 4 trilhões. Apenas um cenário é positivo, indicando aumento de R$ 3 trilhões. 

As projeções foram obtidas a partir de dois modelos de previsão climática, além de diferentes cenários para as emissões de gases de efeito estufa no Brasil nas próximas décadas, um com alta taxa de emissão e outro, com uma taxa média. 

Um dos modelos aponta resultados mais severos, com temperaturas maiores e redução das áreas consideradas de baixo risco climático para o plantio de todas as culturas, principalmente soja, milho, feijão, arroz e trigo. 

O outro modelo também confirma o aumento das temperaturas em todo o Brasil, mas prevê aumento de chuvas em algumas regiões. Esse cenário projeta redução das áreas consideradas de baixo risco climático para plantio de seis das 10 culturas analisadas. 

No pior cenário, o estudo prevê que o agronegócio deixaria de produzir, em 35 anos, 18 bilhões de toneladas de soja, 10 bilhões de toneladas de milho, 560 milhões de toneladas de trigo, 310 milhões de toneladas de feijão e quase 270 milhões de toneladas de arroz. 

Os números se referem ao acumulado de 2005 até 2040, segundo o pesquisador Eduardo Assad, um dos integrantes da equipe executora e autora do estudo. 

No caso do arroz, a perda de safra estimada – em média, mais de 7 milhões de toneladas por ano – representa mais da metade de toda produção de 2022, que foi de quase 11 milhões de toneladas, segundo o IBGE.

Essa cultura é a única que sofre impactos negativos em todos os cenários e variáveis, tanto na agricultura familiar quanto no agronegócio. A previsão é de redução da sua área colhida, no número de estabelecimentos agrícolas, na quantidade de toneladas produzidas e no valor da produção.

Impacto da crise climática por região

A mudança no regime de chuvas é apontada como o principal fator de risco climático para as lavouras, porque a agricultura no Brasil é essencialmente não irrigada.

As safras de milho, arroz, feijão e trigo serão mais afetadas nas regiões Sudeste ou Nordeste, dependendo do modelo climático utilizado na projeção. 

O estudo aponta, ainda, “uma extensa área com alto risco na região do semiárido brasileiro, se estendendo por terras de todo o Nordeste, exceto o Maranhão, abrangendo o norte de Minas Gerais e o Espírito Santo”. O alto risco ocorre por causa dos poucos meses de chuva durante o ano.

A distribuição irregular de chuvas também eleva o risco para as plantações no Mato Grosso do Sul e na região que se estende do oeste paulista ao noroeste do Paraná.

No Nordeste, deve haver uma pressão adicional sobre os estabelecimentos agropecuários, o que, segundo o estudo, aumenta a demanda por políticas públicas.

De acordo com Petersen, as evidências de que a agricultura é o setor econômico que mais sofre com a crise climática já eram contundentes quando os relatórios do “Brasil 2040” foram feitos, em 2015. Agora, se tornaram incontestáveis. 

Mais insegurança alimentar

A perda da capacidade de produção, além de atrapalhar os lucros do agro, pode agravar a insegurança alimentar dos brasileiros nas próximas décadas – um problema que já é preocupante agora.

Segundo o último relatório divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan, apenas quatro entre 10 famílias estavam em segurança alimentar em 2022. Os outros seis lares se dividiam entre os que tinham medo de faltar alimentos e os que passavam fome – estes, já eram 33 milhões de brasileiros.

Outra pesquisa, divulgada em 2023 pelo Banco Mundial, aponta que as mudanças climáticas podem levar mais de 3 milhões de brasileiros à pobreza. Um dos motivos é o aumento da inflação sobre os alimentos, que deve chegar a quase 2% ao ano em uma década no Brasil.

Hoje, o agronegócio prioriza técnicas de monocultura e tem alta dependência de insumos químicos. Isso faz com que a agricultura seja, ao mesmo tempo, suscetível às mudanças climáticas e sua causa principal, segundo Petersen. 

“Estamos produzindo cada vez menos comida e mais commodities agrícolas para exportação ou para a indústria de ultraprocessados”, afirmou.

Diante desse cenário, ele considera que as políticas públicas devem pensar a insegurança alimentar e a questão ambiental e climática de forma conjunta. É aí que entra a agroecologia, pautada na produção diversificada de alimentos e voltada para o mercado local ou próximo. 

Sistema Agroflorestal do Assentamento Chapadinha, em Brasília. Foto: Dênio Simões/Agência Brasília.
Sistema Agroflorestal do Assentamento Chapadinha, em Brasília. Foto: Dênio Simões/Agência Brasília.

Segundo Petersen, isso torna os sistemas agrícolas mais adaptados às mudanças climáticas. “A agroecologia pensa na distribuição dos alimentos que não sejam processados ou que são apenas processados minimamente, mas não ultraprocessados, como faz o agronegócio. Ela resolve o problema alimentar no curto prazo e a questão climática no médio e longo prazo”, explicou. 

O termo agroecologia é quase inexistente nos programas de governo dos candidatos dos municípios mais ricos do agro. Apenas Jânio de Carvalho, do PSD de São Desidério, usa a palavra.

Ele propõe desenvolver uma “ação em projeto de Extensão Agroecológica e Extrativista” para promover “boas práticas sustentáveis e educação ambiental”. Não explica, contudo, como isso se daria. Procuramos o candidato, mas não tivemos resposta.

Petersen destacou que não é um simples rótulo que faz a proposta ser favorável. “A política de agroecologia deve fortalecer cooperativas, sindicatos e associações nos territórios, para que eles sejam protagonistas da organização dos sistemas alimentares”, afirmou.

O relatório Brasil 2040 conclui que “as escolhas que a sociedade pode tomar sobre seus recursos”, agora, afetam diretamente “as possibilidades de adaptações às condições climáticas” para a agricultura nas próximas décadas. 

No que depender dos futuros prefeitos das capitais do agro, as escolhas não são promissoras.

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