Por Larissa Mies Bombardi C. P. C. A. P. V. e Coordenadora do Laboratório de Geografia Agrária USP
Vivemos um momento muito peculiar de nossa trajetória histórico-política.
De alguma forma, esta peculiaridade pode ser traduzida por três propostas políticas em voga que têm como pano de fundo o fortalecimento e consolidação do “agronegócio” e da indústria química em contraposição a um projeto maior, que visaria o bem comum: a saúde da população e do ambiente.
Eduardo Galeano, no prefácio à edição brasileira de 2010 de “As Veias Abertas da América Latina”, trouxe uma reflexão sobre a inserção dos países latino-americanos na economia mundial que define exatamente os perigos aos quais estamos sujeitos neste momento histórico:
“A independência se restringe ao hino e à bandeira, se não se fundamenta na soberania alimentar. Tão só a diversidade produtiva pode nos defender dos mortíferos golpes da cotação internacional, que oferece pão para hoje e fome para amanhã. A autodeterminação começa pela boca.” (Galeano, 2010, p. 5)
A autoderminação começa pela boca!!
Pois bem, o que está posto à nossa mesa e diante dos nossos olhos são três grandes ameaças à nossa “boca”, pois todas as três dizem respeito à facilitação e ampliação do uso de agrotóxicos no Brasil.
São elas:
1. O Projeto de Lei 3200/2015. De âmbito nacional, visa alterar a atual Lei de Agrotóxicos, de 1989´substituindo a expressão “Agrotóxicos” por “defensivos fitossanitários”.
2. O Projeto de Lei nº 63/2016 – SP. De âmbito estadual, tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo, e “Autoriza o Poder Executivo a efetuar pulverização aérea no combate ao mosquito aedes aegypti no Estado”, abrangendo áreas urbanas.
3. Documento “A economia agropecuária brasileira – o que fazer?” . Elaborado pela bancada ruralista no congresso nacional, elenca um conjunto de medidas para que o modelo baseado em agrotóxicos, produção de commodities e concentração de terra seja ampliado ainda mais.
1. O Projeto de Lei 3200/2015
Trata-se de um projeto de Lei de âmbito nacional que visa alterar substancialmente a nossa atual Lei de Agrotóxicos, de 1989. De acordo com este Projeto de Lei, proposto por um dos deputados da chamada Bancada Ruralista, o Deputado Covatti Filho do PP do Rio Grande do Sul, não existiria mais a expressão “Agrotóxicos” na Lei, esta seria substituída por “defensivos fitossanitários”, o que escamoteia o perigo que estes produtos contêm em si; aliás, se assim não fosse, 25 mil pessoas não teriam sido intoxicadas com estas substâncias entre 2007 e 2014, tampouco 1200 delas teriam morrido em função destas intoxicações.
Também de acordo com este Projeto de Lei, a regulamentação dos agrotóxicos ao invés de ser uma competência de três ministérios como é hoje: do Meio Ambiente, da Saúde e da Agricultura Pecuária e Abastecimento, passaria exclusivamente à competência do Ministério da Agricultura (MAPA) que, evidentemente, tem como foco o elemento econômico subordinando a importância da saúde humana e a do ambiente. De acordo com este PL ficaria, assim, alocada no MAPA uma “CTNfito” à qual caberia desde analisar novos registros até manifestar-se sobre pedidos de cancelamento ou impugna& ccedil;ão de produtos já registrados.
Cabe ainda acrescentar que uma aparente “pequena alteração” na redação de um trecho da Lei traz um grande ameaça. No texto atual da Lei de Agrotóxicos temos que ficam proibidos no Brasil o registro de agrotóxicos que: “revelem característica teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica” no Projeto de Lei 3200/2015 acrescentou-se no início desta frase a expressão “risco inaceitável”, ficando desta forma o texto proposto: “Fica proibido o registro de produto defensivo fitossanitário … que revelem um risco inaceitável para características teratogênicas, carcinogênicas…”. Ora, cabe-nos perguntar: o que é um risco inaceitável de características que provoquem malformação fetal e câncer? Melhor seria perguntarmo-nos: o que é um risco aceitável de produtos com tais características? O que estamos dispostos a “negociar”?
Há, evidentemente, outros aspectos a serem discutidos sobre este Projeto de Lei, mas estes três apontamentos dão o “tom” da alteração que a bancada ruralista visa.
2. O Projeto de Lei nº 63/2016 – SP.
Trata-se de um Projeto de Lei de âmbito estadual, em tramitação na Assembleia Legislativa de São Paulo, segundo o qual “Autoriza o Poder Executivo a efetuar pulverização aérea no combate ao mosquito “aedes aegypti” no Estado”.
Os venenos atualmente utilizados no Brasil para o “combate” ao mosquito são venenos de uso agrícola. A questão das doenças tropicais é abordada como se de fato se tratasse de uma guerra ao inseto, pois não se questiona o padrão de urbanização brasileiro que, em ambiente tropical (quente e úmido), congrega falta de saneamento básico e lixo a céu aberto: verdadeiros “criatórios” de insetos.
Dentre os principais venenos utilizados nas campanhas de saúde pública destacam-se os seguintes agrotóxicos de uso agrícola: malathion, pyriproxyfen e fenitrothion, uma parte deles, inclusive, importada. Estes agrotóxicos têm uso permitido, por exemplo, no feijão, na soja e no trigo.
Todos estes agrotóxicos têm estabelecido, em sua inscrição monográfica na Anvisa, um LMR (Limite Máximo de Resíduos) para os alimentos nos quais têm permissão de uso, assim como têm também, estabelecidos, o seu IDA “Ingestão Diária Aceitável” ou seja, quanto um corpo humano, em função de seu peso, pode suportar a ingestão desta substância. Todos estes agrotóxicos têm, por conseguinte, um risco implícito, o que é evidenciado pelo estabelecimento da conta de consumo diário aceitável (sic) pelo nosso corpo.
Ora, como mensurar ou avaliar os riscos de uma exposição também respiratória a tais substâncias? Uma exposição que se soma à da alimentação! Sobre a qual não temos controle.
Na União Europeia a pulverização aérea sobre áreas agrícolas é proibida há muito tempo. Aqui, visamos além da pulverização de áreas agrícolas, também a de áreas urbanas!?
3. Documento “A economia agropecuária brasileira – o que fazer?”
A chamada “Bancada Ruralista”, organizada para um possível novo governo “pós Dilma”, elaborou um texto intitulado “A economia agropecuária brasileira – o que fazer?”. Ao menos dois aspectos deste texto merecem total atenção. O primeiro deles diz respeito a uma pressão para que o registro de agrotóxicos seja aprovado com maior velocidade, literalmente: “São urgentes as medidas de desburocratização da pesquisa agrícola, realizando-se esforço que concretize as chances de promover atividades mais ágeis, sem a problemática camisa-de-força que atualmente tolhe e o desenvolvimento do setor. A Anvisa, por exemplo, precisa ser capaz de aprovar muito mais rapidamente as novas ofertas tecnológicas, de moléculas aos diferentes processos inovadores que promovam a integração virtuosa entre a ciência e a produção”, nota-se portanto, a primazia da economia em relação à saúde “camisa de força ao desenvolvimento”. Exatamente o mesmo espírito presente nos dois PL’s comentados anteriormente.
O segundo aspecto que merece ser mencionado, dentre outros, é aquele que se refere à proposta de extinção do INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária, sob o argumento de que não há mais necessidade de reforma agrária e de que, ainda, todas as ações governamentais no sentido da reforma agrária foram iníquas, lê se no referido texto: “a política de redistribuição de terras mostrou-se incapaz de oferecer chances econômicas às famílias rurais mais pobres e não alterou os índices de concentração fundiária. Como não existe mais demanda social pelo acesso à terra, a extinção do INCRA é uma consequência lógica e deveria ser substituído por um “Instituto de Terras”, conforme propõe o sindicato dos técnicos da autarquia”.
A literatura científica brasileira já apontou os inúmeros e inestimáveis ganhos sociais dos projetos de reforma agrária levados a cabo no Brasil, aliás, poucos, diga-se de passagem, muito aquém da verdadeira demanda.
Entretanto, causa-nos espanto a afirmação da não necessidade de redistribuição de terras em um país em que apenas 34 imóveis, aqueles com área maior do que 100.000 hectares ocupem uma área superior a quase um milhão de imóveis rurais com área entre 5 e 10 hectares. Dados do INCRA!
Vale ressaltar que as experiências de agroecologia, de agricultura biodinâmica e das várias formas de agricultura não industrializada encontram-se sobejamente em áreas de pequenas propriedades.
Isto significa que a construção da soberania alimentar do país – ou seja, em quantidade para todos e com qualidade para todos, seja do ponto de vista de sua diversidade, seja daquele que diz respeito à saúde ambiental das práticas agrícolas – pode e deve ser consolidada pelo trabalho camponês, em pequenas unidades.
Toda a argumentação do referido documento é pautada em seu primeiro parágrafo em que há a afirmação da importância da agricultura e da pecuária na economia brasileira, particularmente na balança comercial brasileira.
É fato.
Entretanto, há que se considerar os riscos do fato!
Quais os desdobramentos de virmos transformando alimentos em commodities e em agroenergia? Quais os desdobramentos do lastro econômico do país estar pautado em produtos primários? A qual modelo de nação aspiramos? Como construímos a nossa “autodeterminação” se a nossa lógica de produção de alimentos é pautada pelo mercado global?
Estejamos atentos aos projetos de Lei que nos cercam, bem como às propostas do grupo político que se avizinha a um possível novo governo, pós-golpe.
Como diria Eduardo Galeano: a autodeterminação começa pela boca!!!