por Franciléia Paula, Letícia Tura e Rosilene Miliotti no Le Monde Diplomatique Brasil
Setembro é um mês marcado por datas comemorativas relativas ao meio ambiente, como o dia da Amazônia (05), do Cerrado (11), de luta contra os monocultivos de árvore (21) e de defesa da fauna (22). Seriam datas a se comemorar se não estivessem nossas comunidades, animais e florestas passando pelos piores incêndios da história e virando cinzas
Este ano, até o dia 18 deste mês, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal já foram identificados mais de 125 mil focos de incêndio. Biomas com áreas de transição entre si, que têm em comum importantes bacias hidrográficas, uma sociobiodiversidade rica e que estão sofrendo com os incêndios avassaladores. Você pode até pensar: “mas todo ano essas regiões pegam fogo”. Entretanto, nos últimos anos, esses biomas estão queimando em proporções nunca vistas e de forma descontrolada, sem apoio governamental para o seu combate e dependendo, muitas vezes, de voluntários brigadistas e moradores dessas regiões.
É muito sério o que está acontecendo. Junto com o fogo, além da vegetação, animais silvestres estão morrendo e comunidades sendo incendiadas, perdendo suas colheitas e casas, deixando um rastro de fumaça e destruição.
Mesmo com os alertas emitidos pelos órgãos de monitoramento sobre o risco de grandes queimadas, providências não foram tomadas pelos governos. Em maio deste ano, pesquisadores do Centro Nacional para Monitoramento de Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) e do Inpe emitiram uma nota técnica prevenindo que, em função das mudanças do clima, observava-se um aumento da temperatura do Oceano Atlântico acima da média, que poderia causar, na parte sudoeste da Amazônia Legal e áreas adjacentes – que atinge o Pantanal mato-grossense -, uma severa seca, que somada às elevadas taxas de desmatamento – já observadas naquele período[1] -, intensificaria as queimadas e, consequentemente, induziria um aumento da poluição do ar e na demanda por tratamentos respiratórios e atendimento por parte do Sistema Único de Saúde (SUS), que já se encontrava saturado por conta da pandemia de Covid-19. Infelizmente, alguns meses depois, estas previsões se confirmaram. As secretarias de saúde ligaram o alerta com a alta na demanda por leitos para tratamento de doenças respiratórias.
Estima-se que o fogo já tenha destruído 3 milhões de hectares do Pantanal. Em Mato Grosso, estado de transição entre os três biomas e o mais atingido, as queimadas já consumiram mais de 1,7 milhão de hectares este ano. No último dia 15, o governo estadual decretou estado de calamidade. A previsão é que o pior ainda esteja por vir, pois, historicamente, setembro tem a média mais alta de focos de incêndio e as chuvas costumam chegar somente a partir da segunda metade de outubro.
Em 1 ano retrocedemos uma década
O Brasil vive um intenso e acelerado processo de desregulação ambiental e desconstrução do aparato institucional, das políticas e governança ambiental, que vem repercutindo, desde 2019, no crescimento dos focos de queimadas e do desmatamento, principalmente, na Amazônia e no Cerrado. Como combater esses acontecimentos, se logo nos primeiros dias do governo Bolsonaro houve uma profunda reforma administrativa, que, entre outras coisas, esvaziou o Ministério do Meio Ambiente, com cortes drásticos no seu orçamento, inclusive aquele previsto para a prevenção e controle de incêndios florestais?
É bom lembrar que houve, ainda, a suspensão de convênios e extinção ou enfraquecimento de secretarias que respondiam por políticas e programas de mudanças climáticas, combate ao desmatamento e queimadas, apoio aos povos indígenas e comunidades tradicionais. Com efeito, os constantes cortes orçamentários – como mostram os estudos do Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos (Inesc) -, e o desmonte das equipes e estrutura dos escritórios regionais do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), desmantelaram as estruturas de fiscalização, monitoramento e controle destes órgãos, e, consequentemente, reduziram a quantidade de multas aplicadas.
Como resultado, os dados consolidados do desmatamento na Amazônia Legal no último período, de agosto de 2018 a julho de 2019, divulgados pelo Inpe, mostram um aumento de 34,41% (10.129 km2 de corte raso), em relação ao período anterior. Em um ano, retrocedendo dez anos nos índices de redução do desmatamento, pois não víamos números tão altos desde 2008.
Queimar para desmatar
De acordo o PrevFogo do Ibama, 98% das queimadas no bioma Pantanal são oriundas de ações humanas. Mas de quem são as mãos responsáveis por essas queimadas? Como áreas úmidas e alagadas pegam fogo? Será que é só o tempo seco que favorece as queimadas? Se por um lado o governo desmonta mecanismos de fiscalização, de outro, suas medidas acabam por incentivar a grilagem de terras e a super exploração dos bens naturais, para comercialização de commodities, favorecendo o agronegócio e o capital estrangeiro.
No Brasil, as questões fundiária e ambiental estão entrelaçadas. De acordo com estudo do Instituto Centro de Vida, desde o dia 1º de julho, início do período proibitivo de queimadas, nove focos iniciais de fogo se alastraram e atingiram cerca de 324 mil hectares do Pantanal mato-grossense. Destes nove pontos de incêndio, cinco ocorreram em áreas que estão no Cadastro Ambiental Rural (CAR)[2], sendo 95% em áreas de vegetação nativa.
Por incrível que pareça, em meio a essa crise sanitária e ambiental, tramita no Congresso o PL 2633 (ex-MP910), que pretende permitir a regularização fundiária sem vistoria, por autodeclaração, o que levará a legalização da grilagem de terras no Brasil. Alguns estudos têm mostrado que, se aprovado este PL, além da privatização de milhões de hectares de terras públicas, poderemos observar um crescimento ainda maior do desmatamento.
Com o mal exemplo vindo de cima, observa-se ainda a relação entre as queimadas e o aumento dos crimes ambientais. As recentes investigações feitas pela Polícia Federal, indicaram que o incêndio que destruiu, até o momento, cerca 25 mil hectares de áreas de preservação ambiental no Pantanal, no Mato Grosso do Sul, não foi acidental. A suspeita é que o fogo tenha sido utilizado para transformar a área em pasto para o gado, atividade de agropecuária. No Brasil, as questões fundiária e ambiental estão entrelaçadas.
Injustiça ambiental
São inúmeras as denúncias da perda da biodiversidade, da flora e fauna ocasionados pelo desmatamento e queimadas, mas o que temos ouvido falar sobre os povos que habitam esses biomas?
São os povos indígenas, as comunidades quilombolas e tradicionais que historicamente se colocaram na linha de frente das lutas socioambientais no país, porém são os que mais sentem em seus corpos as violações e injustiças ambientais. Há ainda uma ofensiva da invisibilidade da existência e luta desses povos promovidos pelo agronegócio e o governo brasileiro. Adota-se uma política de extermínio, onde os interesses do capital financeiro se sobrepõem a vida das pessoas.
O governo federal e dos estados ainda buscam criminalizar e transferir a responsabilidade dos problemas ambientais para as populações tradicionais. Nesta semana o governador do Mato Grosso culpabilizou os povos indígenas e pescadores pelos focos de incêndio no Pantanal. Mesmo com todos os indícios das investigações apontando para as atividades do agronegócio como a principal causa das queimadas. Daí surge a necessidade da luta socioambiental, tanto para conservação e proteção dos biomas, como de seus povos. Tudo está conectado nessa relação ser humano e natureza.
É possível que, para responder às exigências atuais do mercado internacional, consiga-se conter o avanço no desmatamento, mas não as mudanças profundas. O Brasil não alcançará a desaceleração do desmatamento se não pensar na justiça ambiental. O cenário atual só comprova a tese de que a medida que a desigualdade socioeconômica aumenta, as desigualdades ambientais se intensificam e trazem sérios danos ao meio ambiente. Não se alcançará, efetivamente, o equilíbrio ambiental, a redução estável e efetiva do desmatamento com tamanha situação de desigualdade ambiental, fundiária, social, econômica, de classes, de gênero, raça e etnia – nada disso está separado de uma perspectiva socioambiental.
É necessário pensar em outros modos de produção e de consumo e da relação sociedade-natureza. É preciso repensar nossa economia, nossas infraestruturas logísticas, com o encurtamento dos circuitos de comercialização, a diversificação produtiva e alimentar, a descentralização econômica, a distribuição de renda e a democratização dos processos decisórios.
Se você é a favor da conservação da vida, você também deve lutar para que a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado e seus povos também sejam protegidos.
Em memória de Welington Fernando Peres Silva, brigadista que morreu no dia 1º de setembro, em Goiás, e de Luciano da Silva Beijo, zootecnista que morreu no dia 9, enquanto combatia incêndio no Mato Grosso.
Franciléia Paula é educadora da Fase no Mato Grosso; Letícia Tura é diretora executiva nacional da Fase; e Rosilene Miliotti é comunicadora da Fase.
[1] De agosto/2019 a maio/2020 os alertas de desmatamento já indicavam um crescimento de 78%, em relação ao mesmo período entre 2018/2019, segundo o Deter/Inpe
[2] Registro público eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais, que tem por finalidade integrar as informações ambientais referentes à situação das áreas de preservação permanente (APP), de reserva legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa, das áreas de uso restrito e das áreas consolidadas das propriedades e posses rurais do país.