Por André Campos e Carlos Juliano Barros
Da Repórter Brasil
Na última semana de junho, representantes de importantes fundos de investimento internacionais com ativos estimados em R$ 20 trilhões publicaram uma carta aberta pedindo ao governo brasileiro que detenha o desmatamento na Amazônia. Em maio, um grupo de 40 multinacionais — como a marca de fast-food Burguer King e a rede britânica de supermercados Tesco — já havia colocado em xeque a compra de insumos do Brasil caso o Projeto de Lei 2633/2020, apelidado de “PL da Grilagem”, fosse aprovado pelo Congresso Nacional.
Proposto com o objetivo de agilizar a regularização de imóveis rurais na Amazônia, o projeto de lei vem sendo duramente criticado por ambientalistas que temem o incremento da devastação da maior floresta tropical do mundo. Só nos cinco primeiros meses de 2020, a área derrubada foi 64% superior em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A explosão do desmatamento na Amazônia entrou no radar de governos e grupos empresariais estrangeiros. Porém, parte expressiva do produto dos crimes ambientais ainda é consumida no Brasil. No caso da indústria da carne bovina, reconhecidamente o principal vetor de expansão da fronteira agrícola e de derrubada de vegetação nativa, cerca de 76% da produção ficam no país, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).
Ao longo do mês de junho, a Repórter Brasil publicou uma série de reportagens que revela como fazendas na Amazônia e no Cerrado envolvidas em diversas irregularidades — de desmatamento ilegal à criação ilegal de gado em terras indígenas — estão ligadas a importantes frigoríficos. Essas empresas, por sua vez, abastecem as três maiores redes de varejo do país, responsáveis por um terço de todo o faturamento do setor de supermercados: Carrefour, Grupo Pão de Açúcar (GPA) e Grupo Big, ex- Walmart.
Rastreabilidade em xeque
A investigação mostra que os sistemas de monitoramento dos frigoríficos, criados para restringir a compra de gado de propriedades com problemas, apresentam falhas e vêm sendo driblados por pecuaristas. Por meio de diferentes estratégias que ocultam a origem ilícita do rebanho, os bois podem ser vendidos a multinacionais de proteína animal, como JBS e Marfrig, e a abatedouros de alcance regional — como Frigol e Mercúrio.
A reportagem questionou se as três principais redes de supermercados do país também dispõem de ferramentas de controle para garantir que suas lojas não comercializem carne bovina de gado alimentado em áreas críticas. Por meio de suas assessorias de imprensa, as companhias emitiram notas oficiais de conteúdo bastante semelhante — e genérico.
O Carrefour, por exemplo, afirma que “exige de toda a sua cadeia de fornecimento o cumprimento à legislação ambiental e aos direitos humanos e repudia qualquer prática ligada ao desmatamento”. Já o Grupo Big diz que que “não compactua com quaisquer práticas contrárias à sua política de responsabilidade corporativa”. Por fim, o GPA “informa que acionou os quatro frigoríficos mencionados pelo Repórter Brasil solicitando esclarecimentos sobre os casos apontados”. Leia aqui a íntegra das respostas.
Ao longo da última década, os principais grupos empresariais do Brasil ligados ao setor da carne bovina — incluindo redes de supermercados — assinaram diversos compromissos públicos para limar de suas cadeias de fornecimento produtores que exploram trabalho escravo e devastam florestas sem permissão.
Esses pactos foram criados por organizações da sociedade civil, como Greenpeace e Instituto Ethos, e também por órgãos de Estado — como o Ministério Público Federal (MPF). Basicamente, as empresas incorporaram aos seus sistemas de compra de matérias-primas uma série de dados oficiais organizados por órgãos públicos ambientais e trabalhistas.
Porém, como mostram as investigações da Repórter Brasil, especialistas acreditam que essas políticas chegaram a um limite e já não dão conta de afastar da indústria da carne os produtores envolvidos em irregularidades. “Parece que os acordos chegaram a um nível em que não andam mais para frente”, afirma Adriana Charoux, responsável pela Campanha Amazônia do Greenpeace Brasil.
“Chama a atenção como os supermercados no Brasil têm pouquíssima informação pública disponível sobre suas cadeias de fornecimento”, analisa Gustavo Ferroni, coordenador de Direitos Humanos e Setor Privado da Oxfam Brasil. A organização de origem inglesa mantém um programa global que monitora varejistas do mundo todo. “Sobre a cadeia da carne, eles até têm um pouco mais de informação, mas mesmo assim é quase nada. É um compromisso sucinto, um posicionamento genérico sobre cadeia de fornecimento. Eles não falam especificamente como vão cumprir”, acrescenta.
Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, vai na mesma linha. “Todas as ferramentas de rastreabilidade, de mitigação de riscos e de prevenção de irregularidades socioambientais precisam ser revistas — todas!”, enfatiza. “Temos que reconhecer os avanços, eles foram muito importantes. Porém, a tecnologia que hoje está instalada nos computadores e nas métricas de todos que controlam rastreabilidade já não é suficiente”, afirma Magri.
Falta de transparência
De acordo com Gustavo Ferroni, os supermercados brasileiros ainda estão longe de atender aos princípios construídos pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a chamada “devida diligência”.
Originalmente aplicável aos departamentos de contabilidade das empresas, o conceito foi expandido para as áreas de sustentabilidade e de direitos humanos. Resumidamente, ele se refere às medidas concretas que as companhias privadas precisam desenvolver para checar de fato se seus fornecedores cumprem as legislações ambientais e trabalhistas.
“Os princípios da ONU falam de cumplicidade por parte dos supermercados com seus fornecedores — independentemente se é uma relação comercial que envolve um ou vários elos na cadeia. E não dá para alegar ignorância porque fazer a devida diligência deveria ser uma obrigação”, afirma o coordenador da Oxfam Brasil.
Em outras palavras, as redes varejistas deveriam ser mais proativas no processo de checagem permanente de fornecedores — e não apenas responder a denúncias por parte de organizações e veículos de imprensa. Mas, na avaliação de Adriana Charoux, “os supermercados desde sempre parece que vêm a reboque das decisões das indústrias frigoríficas”.
Outra premissa da devida diligência é a transparência de informações. Por exemplo: disponibilizar em site de fácil acesso uma lista com a identificação precisa dos fornecedores. “Se esses dados fossem divulgados, as organizações da sociedade civil também poderiam vigiar. Mas as empresas não divulgam. Elas dizem que são ‘informações estratégicas’, mas não deveriam ser”, critica Ferroni. Adriana, do Greenpeace, concorda: “se os supermercados estão fortalecendo seus sistemas internos de controle, eles não estão comunicando a sociedade”.
Para Caio Magri, é preciso criar mecanismos “participativos” de rastreabilidade para atuar em conjunto com as comunidades impactadas. “Por que as redes de varejo não dialogam e criam um link com os territórios onde eles têm fornecedores importantes e críticos para saber o que está acontecendo lá, semanalmente?”, questiona o diretor-presidente do Instituto Ethos. “Como fazer isso? Ainda não temos solução. Mas precisamos de inovação e tecnologia social”, finaliza.