Em dossiê entregue ao relator do organismo internacional, coletivo detalha a adoção de projeto pelo Estado em favor dos venenos.
por Lizely Borges, da Terra de Direitos
Com o extinção de espaços de participação e controle social pelo Executivo Federal, perseguição às organizações, lideranças populares e pesquisadores e diante da adoção de medidas de estímulo e flexibilização do uso de agrotóxicos pelo Estado brasileiro, um conjunto de mais de 100 organizações – reunidas em torno da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida – entregou em Brasília (DF), nesta terça-feira (03), um dossiê sobre a grave problemática dos agrotóxicos no país para o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para implicações da gestão e eliminação ambientalmente racional de substâncias e resíduos perigosos, Baskut Tuncak.
A agenda de escuta à sociedade civil operacionalizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados dá início à uma série de atividades do relator no país e ocorre no Dia Internacional de luta contra os agrotóxicos. A data faz alusão ao crime socioambiental de vazamento de 40 toneladas de Isocianato de Metilo (MIC), um pesticida em formato gasoso de alta toxicidade, em 1984, da fábrica de agrotóxicos da empresa estadunidense Union Carbide em Bhopal, na Índia. Três mil pessoas morreram na hora e outras 15 mil nas semanas seguintes.
Com holofotes direcionados ao país, em maior intensidade, desde 2008, ano que o Brasil alçou ao posto de líder mundial no uso dos agrotóxicos, o conjunto de medidas adotadas pelo novo governo (veja infográfico abaixo) evidencia os esforços para consolidar um projeto em favor das indústria de agrotóxicos e o agronegócio, setores vinculados na cadeira produtiva.
Sob atual comando de Teresa Cristina, ruralista ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) tem usado dos seus expedientes para avanço do registro desse produtos químicos. Em pouco mais de onze meses de governo de Jair Bolsonaro (PSL), o Ministério liberou a marca recorde de 467 registros de agrotóxicos. Somada à liberação dos registros, a nova classificação dos agrotóxicos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), implementada ao final de julho, confere ainda maior risco ao meio ambiente e à população na medida em que recategoriza muitos agrotóxicos como de menor toxidade, entre outras medidas de flexibilização. Com a reclassificação da Anvisa, por exemplo, apenas 43 dos 698 agrotóxicos são divulgados como “extremamente tóxicos”.
“A liberação desenfreada dos agrotóxicos está provocando uma enxurrada de veneno sobre a agricultura familiar, camponeses e povo que consome alimentos. Temos definição de produzir alimentos, mas alimentos saudáveis. Temos como obrigação definir que nossa tarefa é produzir comida saudável, portanto temos que priorizar a luta contra o veneno”, denuncia a integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Antônia Inoveide de Melo Silva.
Canal internacional de denúncia
Para Antônia, a escuta realizada pelo representante da ONU se configura como abertura de um canal importante de visibilidade internacional ao problema dos agrotóxicos. “A visita do representante da ONU é importante pra realizar a denúncia do que está acontecendo no Brasil, da retirada de direitos, inclusive de produzir com nossa semente e com a qualidade de produção que precisamos. Abre-se um canal de denúncia internacional sobre o que estamos passando no Brasil”, complementa ela.
A escuta à organizações e redes ganha outra dimensão na medida em que os canais institucionais internos de participação social ligados à administração pública federal, como espaços de conselhos e comitês, foram extintos ou esvaziados pela publicação da Medida Provisória 870, em janeiro e o Decreto 9.759/2019, em abril deste ano. Um dos colegiados que atende pela defesa da garantia da segurança alimentar e nutricional em todo o país e enfrentamento à ampla liberação de agrotóxicos no país, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), sofreu nestes meses de extinção, recriação e veto presidencial à restituição do espaço.
Para a assessora jurídica da Terra de Direitos e representante da Campanha Nacional na audiência pública a criação de espaços de oitiva, como a agenda desta terça-feira, e a vista do relator adquire um caráter ainda mais importante diante do cerceamento à participação social na temática. “Nesse momento temos cerceados, minimizados ou extintos espaços de controle e participação social, em que tentam silenciar as vozes da sociedade civil, de movimentos sociais, e organizações e pesquisadores, é preciso reverter essas denúncias em espaços internacionais, que se mostram atentos ao cenário de retrocessos ambientais e sociais que vivemos no Brasil”, destaca Naiara.
A elaboração de subsídios ao organismo internacional dialoga, desta forma, diretamente com a obstrução dos espaços nacionais ao debate sobre impactos dos agrotóxicos para pessoas, alimentos e meio ambiente. “A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida sistematizou algumas informações para subsidiar a análise do relator de resíduos tóxicos da ONU, Sr. Baskut Tunkak, já que o espaços institucionais federais têm minimizado a ação para responsabilização de danos aos direitos humanos”, complementa. Entregue nas mãos relator, Baskut se comprometeu a analisar e solicitou mais informações.
:: Acesse aqui o Dossiê entregue ao relator da ONU.
Impactos intensificados
De acordo com a professora da Faculdade de Medicina do Cariri (CE), Ada Pontes Aguiar, ainda que o conjunto da população urbana e rural seja afetado pelo acesso à água, terra e alimentos contaminados por agrotóxicos, é necessário que a sociedade e o Estado reconheçam grupos populacionais ainda mais vitimados pelo uso e circulação livre de venenos.
“São principalmente os trabalhadores que estão dentro das fábricas que produzem agrotóxicos e commodities agrícolas para exportação [como soja e milho] de uso dos agrotóxicos, e comunidades que vivem no entorno desses empreendimentos que, muitas vezes, não trabalham nestas empresas e de forma involuntária respiram o ar contaminado, bebem água contaminada e plantam seus alimentos sem agrotóxicos, mas numa terra contaminada, que não tem escolha se querem ou não estar expostos a agrotóxicos. O nível de contaminação destas pessoas é muito elevado e elas são obrigados a conviver cotidianamente com substâncias perigosas que causam problemas agudos e crônicos à saúde”, destaca.
Os impactos dos agrotóxicos em populações e povos tradicionais e camponeses recebem um capítulo especial no dossiê elaborado pela Campanha. “Essas populações, que sofrem historicamente violações de direitos humanos e são desprovidas do acesso a políticas públicas, tornaram-se as principais atingidas pela ascensão do agronegócio e do uso de agrotóxicos no Brasil”, aponta um trecho do documento.
Em consonância com o levantamento, Ada destaca ainda os perversos efeitos da pulverização área sobre estas comunidades e a intensificação dos impactos em crianças e mulheres. Objeto de denúncia de organizações e de projetos em lei, a pulverização aérea de insumos químicos responde, por exemplo, pelos graves casos de Lucas de Rio Verde e Rio Verde, ambos situados em Goiás. “A prática já foi proibida em vários países da União Europeia e tem causado verdadeiro genocídios de populações tradicionais, agricultores e crianças. Há, inclusive, relatos de pulverização área criminosa – como os dos indígenas guarani kaiowá, no Mato Grosso do Sul”, relata sobre episódio de contaminação da aldeia Tey’ijusu, em 2014.
Além da contaminação direta na pele pelo contato com o químico, há outros agravantes na prática. De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a contaminação das águas, das terras, dos animais e dos trabalhadores por agrotóxicos é potencializada pela pulverização área na medida que a prática resulta em forte escoamento do produto químico para além do alvo da aplicação.
O Brasil não possui, até o momento, legislações federais que proíbam a prática em todo território nacional.
Subnotificação e fragilidade do sistema
Outro agravante que impede a construção de uma visão mais consolidada dos impactos do agrotóxicos nas pessoas diz respeito a frágil estrutura do sistema de saúde – privado e público – na identificação, atendimento e notificação de casos de contaminação.
“A gente tem uma cadeia de incompetências na área de saúde que facilitam e visibilizam os problemas de saúde relacionados a agrotóxicos. Desde a formação dos profissionais de saúde, para temas da saúde do trabalhador e relação com meio ambiente, são quase nada vistas durante a graduação. Então esses profissionais atuam no SUS [Sistema Único de Saúde] e no privado e não conseguem notificar não só por problema de ingerência do sistema, mas porque não chegam nem a suspeitar que se trata de uma contaminação por agrotóxicos. Se não suspeitam não diagnosticam, se não diagnosticam não tratam e notificam e não aparece no sistema de informação, o que impacta em uma inexistência de política pública para o problema”, destaca Ada.
A professora ainda destaca a dificuldade em estabelecer relação entre a exposição aos químicos e os agravos, ou seja, os sintomas da exposição ao produtos. “Como os sinais são inespecíficos, como dores de cabeça, abdominal, tontura diarreia, vômito, etc, muitas vezes as pessoas não procuram sistema de saúde porque, ou foi um processo naturalizado de presença destes sintomas, ou o sistema de saúde trata de forma uniforme – como virose, infecção gastrointestinal e raramente é investigada a relação entre sintoma e exposição aos agrotóxicos”, relata.
Com cortes crescentes no orçamento destinado às áreas sociais como saúde e seguridade social, o atendimento às vítimas de contaminação por agrotóxicos devem, por consequência, se deparar com maior desamparo público. “Os ônus causados às comunidades não repercutem sobre aqueles que mais lucram, repercutem no SUS, nas políticas de assistência, na seguridade social”, pontua.