Grilagem de terras, trabalho escravo, desmatamento, investimentos internacionais e de fundos de pensão, além do apoio governamental estão entre os pilares das grandes queimadas no Brasil nos últimos anos
Por Rosilene Miliotti¹, da Ong Fase
“Se ainda há Pantanal, Cerrado e Amazônia em pé, é porque esses povos estão com os pés em seus territórios, defendendo as matas, as águas, os bichos e a biodiversidade!”. É com essa afirmação que o grupo formado por organizações e movimentos sociais, entre eles a FASE, termina sua apresentação na plataforma Agro é Fogo, lançada nesta quarta (14). O dossiê “Agro é Fogo: grilagem, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal”, reúne análises e denúncias sobre as múltiplas dimensões da devastação ambiental e dos conflitos por terra que se dão no rastro do uso criminoso do fogo pela cadeia do agronegócio, evidenciando a relação intrínseca entre a questão ambiental e a questão agrária e fundiária no Brasil.
Considerado o ano da “boiada”, 2020 encerrou com recorde de queimadas, o maior da última década de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram 222.798 focos, contra 197.632 em 2019, um aumento de 12,7%. Os números só ficam atrás do recorde de 2010, quando o país registrou cerca de 319 mil focos. Do infame “Dia do Fogo”, em agosto de 2019, aos incêndios florestais que acarretaram o encobrimento total do céu de São Paulo por grossa nuvem de fumaça, em setembro de 2020, os últimos dois anos foram marcados pela aceleração da devastação ambiental desses biomas.
Ao contrário do uso tradicional, o uso do fogo na cadeia da grilagem e do agronegócio ocorre em grandes extensões de terra e está, direta ou indiretamente, associado ao desmatamento que acompanha a expansão da fronteira agrícola. Nesses casos, o fogo é utilizado para consolidar a grilagem, tanto no sentido de encobrir a invasão de terras públicas e o crime ambiental (desmatamento ilegal). O fogo – associado ao desmatamento – é, ainda, muitas vezes utilizado como arma contra povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e de base camponesa. Mas quem lucra quando a “boiada passa”?
Interesses internacionais
Falar do agronegócio é falar do controle das grandes corporações e atores financeiros sobre as cadeias produtoras de commodities destinadas aos mercados internacionais. As dinâmicas nos territórios tornam-se altamente conectadas com os mercados futuros agrícolas (Bolsa de Chicago) e são impulsionadas por redes que articulam agentes e operadores dos territórios, elites locais e grandes corporações e fundos de investimentos internacionais. Recentemente, percebe-se o crescimento do peso de investidores institucionais (fundos de pensão, seguradoras e fundos de investimentos etc.) e de instrumentos financeiros complexos, em particular, títulos e securitizações (valorização dos ativos alternativos) que aceleram a mercantilização da terra.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em recente parecer técnico, e o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), em julgamento realizado em outubro de 2020, reconheceram que dois dos maiores compradores estrangeiros de terras agrícolas no Brasil – os fundos de pensão da TIAA-CREF (Teachers Insurance and Annuity Association of America – College Retirement Equities Fund) e o fundo de investimentos da Universidade de Harvard (Havard Management Co.) – adquiriram ilegalmente centenas de milhares de hectares de terras agrícolas no Cerrado brasileiro.
Desde 2008, esses fundos acumularam cerca de 750.000 hectares no país, com seus negócios agrícolas estando ligados à apropriação ilegal de terras, à expulsão violenta de comunidades tradicionais e rurais, ao desmatamento, incêndios e outros danos sociais e ambientais na região. Tudo isso burlando a legislação brasileira que limita o controle de terras por estrangeiros.
Em maio de 2019, o Incra emitiu um parecer sobre a questão, detalhando como todas as terras adquiridas pela TIAA após 2010 foram realizadas em violação à Lei Federal nº 5.709/1971 e ao entendimento fixado pelo Parecer LA-01 da AGU, de 2010, que impõe limites à aquisição e arrendamento de terras agrícolas também por empresas registradas no Brasil, mas efetivamente controladas por empresas estrangeiras. Segundo o Incra, as compras de terras pela TIAA que foram realizadas através da empresa brasileira Radar Propriedades Agrícolas e outras subsidiárias brasileiras devem ser consideradas nulas, pois, apesar destas empresas serem registradas no país, a maior parte de suas ações são de propriedade de empresas estrangeiras.
As empresas associadas foram caracterizadas como parte do mesmo “grupo econômico”, constituindo uma arquitetura financeira que mascara o real controle exercido pelo fundo TIAA-CREF. Como resultado, o setor do Incra responsável pela supervisão e fiscalização das aquisições de terras por entidades estrangeiras, recomendou a anulação dos títulos de todas as fazendas adquiridas através das subsidiárias da TIAA, desde 2010, cobrindo mais de 150.000 ha.
Além disso, o Incra constatou que as aquisições de terras da TIAA foram baseadas em esquemas de grilagem de terras comumente utilizados na região, por meio da apropriação ilegal de terras públicas e posterior reivindicação fraudulenta de sua titularidade legal. O Instituto declarou que este era um motivo adicional para a anulação dos títulos de terras de TIAA.
Harvard tem tentado vender as propriedades da Caracol Agropecuária e suas outras fazendas brasileiras em face de críticas crescentes e protestos dos próprios estudantes da instituição. Incapaz de encontrar um comprador, decidiu transforma a sua divisão de terras agrícolas em uma empresa independente de capital privado chamada SolumPartners e trazer o grupo de seguros AIG como sócio. Embora não esteja evidente quais terras agrícolas foram transferidas para a Solum e quais permanecem sob gestão de Harvard, a responsabilidade pelos incêndios e conflitos de terras gerados pelas compras de terras agrícolas de Harvard no Brasil permanece com a Universidade. Conforme reconhecido pelo parecer do INCRA sobre o caso TIAA, sob a lei brasileira, as terras ainda seriam consideradas controladas pelo mesmo “grupo econômico”.
Legislar para grilar
Da colonização europeia até o atual momento, o regime jurídico da propriedade privada tem seu significado e abrangência redefinidos para cumprir com o seu papel de despossessão dos povos e captura dos bens comuns em exclusão das presentes e futuras gerações.
Se aprofundarmos a análise dos títulos das grandes propriedades de terras no Brasil, na maior parte das vezes, encontraremos vícios que nos remetem à ação orquestrada dos setores públicos e privados para a apropriação privada e ilegal de terras públicas. Apesar da história fundiária brasileira demonstrar a estreita relação entre as legislações de terras, a acumulação de riqueza por uma reduzida elite proprietária e a consequente promoção de violências no campo, os últimos cinco anos evidenciaram como nunca esta correlação, intensificada pelo contexto de corrida global por terras e de interesse, cada vez maior, de grandes corporações financeiras por um estoque estratégico de garantia de dívidas.
O novo desenho da malha fundiária brasileira permitida pela Lei 13.465/17 – e outras legislações – prometem uma concentração da terra rural sem precedentes, com ampliação do desmatamento e destruição de habitats e a incorporação do uso e ocupação do solo por este modo de produção industrial de commodities, culminando com uma crescente expulsão de milhares de agricultores, povos e comunidades para as periferias urbanas. A produção industrial do espaço rural e urbano, se coloca como um caldeirão para futuras pandemias e crises sanitárias.
Sobre a articulação Agro é Fogo
A Articulação AGRO é FOGO reúne movimentos, organizações e pastorais sociais, entre eles a FASE, que atuam há décadas na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal e dos direitos de seus povos e comunidades, mobilizando o debate público a partir de algumas mensagens comuns, que são aprofundadas nos artigos desta Plataforma: A intensificação do desmatamento e incêndios florestais; a responsabilidade do agronegócio; a cumplicidade do governo; os incêndios criminosos do agro; o fim dos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais; direitos territoriais e; a contenção do desmatamento.
[1] Jornalista da FASE com informações do dossiê.