Por Nathan Fernandes, do Yahoo Finanças
O herói Rick Grimes, da série The Walking Dead, está para os zumbis assim como os críticos dos agrotóxicos estão para a liberação em massa destes produtos, que aconteceu em 2019. Para especialistas, ativistas e outras pessoas preocupadas com a qualidade dos alimentos que ingerem, o número recorde de novos pesticidas aprovados pela Anvisa soa como um tsunami de mortos-vivos.
O ataque é especialmente assustador para as abelhas, já que a última leva de novos registros colocou mais 57 produtos no mercado no dia 3 de outubro, quando ironicamente se comemora o Dia Nacional da Abelha — entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, foram registradas as mortes de 500 milhões destes polinizadores por conta do uso de agrotóxicos.
No total, já são 382 registros de novos agroquímicos no mercado brasileiro. Mas o número pode chegar a 410 se considerarmos que 28 desses registros, que entram na conta de 2018 do Ministério da Agricultura, só foram publicados no Diário Oficial em janeiro de 2019.
Seja qual for a quantidade escolhida, o número de novos registros é sem precedentes na história do Brasil, considerando o período de janeiro a outubro.
Segundo o diretor-presidente da Anvisa, William Dib, a medida visa acelerar os processos de liberação, esvaziando a fila de agrotóxicos à espera de um mercado e modernizando os pesticidas. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Dib afirmou: “Vivíamos num cinismo. Você usa um agrotóxico extremamente perigoso porque o novo que é mais evoluído está na fila há oito anos. Aí eu tiro da fila e vocês gritam. É o seguinte: agora conseguimos encontrar um equilíbrio. Temos os registros em dia e agora vamos estudar os mais críticos e sua retirada”.
Além disso, para o engenheiro agrônomo Pedro Yamamoto, do Laboratório de Manejo Integrado de Pragas da Esalq/USP, o número excessivo de novos produtos não significa um aumento no uso. “A maioria são produtos técnicos que um dia podem vir a se tornar produtos comerciais. Poucos realmente são novos e muitos são genéricos”, explica. “O lançamento de genéricos tem a vantagem de aumentar a competitividade e melhorar os custos ao produtor. O que alarma é não termos produtos novos sendo lançados.”
Ao comparar o Brasil com seis dos maiores países exportadores de produtos agrícolas do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), um levantamento feito pela Folha de S.Paulo mostrou que, dos 96 ingredientes ativos que fazem parte dos agrotóxicos liberados até setembro, cerca de 30% são proibidos na União Europeia (UE), ou 28, em números absolutos. Já na Austrália são 36; na Índia, 30; e 18 no Canadá. Os Estados Unidos proíbem apenas três dos 96 ingredientes liberados aqui.
Entre aqueles proibidos na Europa, por exemplo, estão dois campeões de vendas no Brasil: o acefato e a atrazina, que já foi associada a casos de câncer, efeitos neurotóxicos e infertilidade.
“As liberações não transparecem uma preocupação com a saúde da população”, afirma Iran Magno, da campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace, reforçando que, apesar de consumir, os brasileiros não digerem tão bem a ideia dos agrotóxicos. Segundo uma pesquisa publicada em junho pelo Datafolha, 78% dos brasileiros consideram inseguro o consumo de alimentos com agrotóxicos, enquanto 72% acham que os alimentos produzidos aqui têm mais agrotóxicos do que deveria.
“Essa discussão se aqueceu no ano passado quando tinham dois projetos de lei que estavam sendo discutidos no Congresso: um era o Projeto de Lei [6299/2002] que ficou conhecido como ‘Pacote do Veneno’, que ia no sentido de afrouxar a liberação e o uso de agrotóxicos; outro propunha a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA) [PL 6.670/2016]”, lembra Magno.
Através da plataforma online Chega de Agrotóxicos, foram arrecadadas mais de um milhão de assinaturas em pouco tempo em favor do PNaRA. “Isso não é uma coisa usual quando falamos de discussão ambiental, entendemos que as pessoas apoiam um novo rumo que não seja venenoso para o país.”
Mas, como este drama alimentar é um zumbi que se recusa a morrer, os dois projetos ainda estão em andamento na Câmara dos Deputados.
As palavras e as coisas
Além da flexibilização do uso de agrotóxicos, o “Pacote do Veneno” também se dedica a explorar áreas que ultrapassam as plantações e chegam no campo da linguagem. É que uma das medidas propostas pelo PL é a alteração do termo “agrotóxico” para “pesticida”, como são conhecidos os produtos em outros lugares do mundo.
Não é difícil imaginar por que uma palavra que carrega o termo “tóxico” seja negativa para o setor agrícola. Por isso, não é raro ouvir variações como “defensores agrícolas” ou “fitossanitários”, já que, do ponto de vista do setor, são produtos que, de fato, defendem as plantações de formas de vida “não convidadas”.
O termo “agrotóxico” surgiu em 1977, no livro Pragas, Agrotóxicos e a Crise Ambiental: Problemas e Soluções, do PHD em agronomia Adilson Paschoal, pesquisador do Departamento de Entomologia e Acarologia da Esalq/USP. Em 1989, a palavra foi adotada pelo governo federal na Lei dos Agrotóxicos, e até hoje é usada pelo departamento do Ministério da Agricultura responsável pelo registro desses produtos, a Coordenação-Geral de Agrotóxicos e Afins.
Junção dos vocábulos gregos “agros” (campo) e “toxicon” (veneno), Paschoal defende que o termo é correto não apenas etimologicamente, mas também cientificamente, já que a ciência que estuda os efeitos desses produtos é a “toxicologia”. Em entrevista à Agência Pública, o pesquisador declarou: “[Alterar o nome] é um retrocesso inadmissível e tendencioso, visando ocultar a verdadeira natureza desses produtos, isto é, sua natureza tóxica”.
Políticos da bancada ruralista tendem a defender um debate livre de ideologias, mas, segundo um estudo conduzido por seis pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de Caxias do Sul, o uso do termo “defensivo agrícola” carrega um maior viés ideológico do que “agrotóxico”.
Entre 2005 e 2015, os pesquisadores analisaram a produção científica da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. Entre os 20 trabalhos encontrados com o termo “defensivo agrícola”, 15 tinham conotação positiva, representando 75% das obras. Segundo o grupo, a escolha do termo não é aleatória, mas, sim, “uma tendência antiga ligada aos interesses da indústria e do comércio de agrotóxicos em valorizar os aspetos positivos em defesa dos cultivares e da produtividade; deste modo, permanece uma confusão para os agricultores, os consumidores e a sociedade em geral”.
Logo, não é à toa que especialistas como o agrônomo Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz, se surpreendam com o fato de que, ao disponibilizar uma consulta pública sobre o uso do glifosato — herbicida tido como “provavelmente cancerígeno” pela Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc), da Organização Mundial de Saúde —, a Anvisa deixou de classificar o produto como “extremamente tóxico”, sua antiga classificação.
“Isso era importante em termos de alerta ao trabalhador”, afirma Meirelles. “Praticamente não existem mais produtos perigosos, ou altamente tóxicos. Mudaram os critérios e chamaram isso de modernidade. É como se tivessem colocado um manto santo no capeta, mas isso não muda nada”, acredita Meirelles.
A ideia de tentar mudar a percepção sobre algo alterando seu nome é bem definida nesta frase de Michel Foucault, do ensaio Debate sobre o Romance: “A realidade não existe, só existe linguagem”. Afinal, como mostra este drama agrotóxico, quem domina a palavra também domina a verdade sobre ela.
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