Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia, com fotos de Raíza Tourinho
Um grito de alerta para a sociedade e a defesa da reforma agrária. Esse foi o tom do lançamento do Dossiê Abrasco – Um Alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na Saúde realizado na noite de ontem (28/04), na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Com a participação de pesquisadores, representantes de movimentos sociais e agricultores, dentre outros setores, cerca de 200 pessoas acompanharam relatos sobre o atual cenário nacional. O livro com mais de 600 páginas traz uma revisão das três partes desenvolvidas em 2012 e um quarto eixo inédito com dados atualizados do agronegócio e as lutas de resistência da agroecologia como um novo modelo de desenvolvimento para o país. É uma co-edição da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz e da editora Expressão Popular.
O setor agrícola brasileiro comprou, no ano de 2012, mais de 800 mil toneladas de agrotóxicos, sendo que muitos deles são proibidos em outros países. O lucro com o uso dessa substância aumentou em 288%, entre os anos 2000 e 2012, atesta o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag). Segundo a Anvisa, 64% dos alimentos estão contaminados por agrotóxicos. O faturamento dessa indústria no Brasil em 2014, de acordo com a Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), foi de mais de U$ 12 bilhões. Esses são alguns dos dados levantados pela publicação, que já pode ser acessada na internet.
Na mesa de lançamento estiveram representados, além da Abrasco, o INCA, a Fiocruz, o CONSEA, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o IDEC, o MPT, através do Fórum de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, a Articulação Nacional de Agroecologia, o Conselho Nacional de Saúde e o MST.
De acordo com Karen Friedrich, uma das organizadoras do livro, são 44 autores apontando os malefícios dos agrotóxicos no meio ambiente e na saúde dos brasileiros. O objetivo é tirar o silêncio do tema inspirado na escritora norte americana Rachel Carson, que há 50 anos lançou a consciência ambiental moderna. Envolvendo pesquisadores de várias universidades do país, da Fiocruz, Inca e Embrapa, dentre outras instituições, e intelectuais, como Boaventura de Sousa Santos, além de movimentos sociais, o livro é um grito de alerta para o que acontece nas florestas e águas no Brasil, disse a pesquisadora da Fiocruz.
“São mostradas 10 ações urgentes que podem ser implementadas para vencer os impactos do agrotóxico. O agronegócio não alimenta o mundo, mostramos num gráfico o aumento da produção da cana, milho e soja, representando quase 70% da produção do país, com redução do feijão, mandioca e arroz. E essas commodities, que correspondem a 80% de agrotóxicos, vão aumentar muito nos próximos 3 anos com mais consumo e impactos. Mas temos propostas de resistências, como a Campanha Contra os Agrotóxicos que completou 4 anos, e iniciativas de agroecologia em todo Brasil. Defendemos a agroecologia e a reforma agrária para por fim no consumo de agrotóxicos e construir um país mais saudável e justo”, afirmou.
“É uma satisfação grande a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) abrigar um conjunto de pesquisadores e militantes não só da reforma sanitária, mas também da reforma agrária e outros setores”, afirmou Luis Eugenio Souza, presidente da organização. Segundo ele, está provado cientificamente que o agrotóxico faz mal à saúde e o dossiê registra também o conhecimento dos atores sociais envolvidos nas pesquisas. “É um instrumento poderoso de pressão sobre os tomadores de decisões políticas, pois esse modelo de desenvolvimento já se mostrou insustentável. Este livro mostra que estamos conseguindo construir um arco de alianças que vai conseguir inverter esse lobby dos poderosos e políticas públicas que ainda insistem em um modelo que é prejudicial à saúde e ao ambiente”, disse.
“Essa publicação pode ser usada com uma peça jurídica de ação política e a Fiocruz tem se dedicado muito em tirar esse tema da invisibilidade”, afirmou Valcler Rangel, representante do presidente da instituição. “São vitórias parciais e às vezes alguns recuos, estamos num momento difícil. O assunto merece novas narrativas para termos uma compreensão diferenciada desses problemas, e esse dossiê cumpre esse papel. Sua natureza e modo como foi construído traz um aprendizado. É um instrumento de luta política para que conquistemos mais qualidade de vida aos brasileiros”, disse.
Esse material complementa os dois filmes Veneno Está na Mesa, produzidos pelo cineasta Silvio Tendler, que estava presente no lançamento, como instrumentos para massificar o debate da problemática dos agrotóxicos, avalia Nívia Silva, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Nesse processo do dossiê foram estreitadas relações com pesquisadores que são comprometidos de coração e mentes com as causas do povo, acrescentou a militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Colocar a agroecologia e a reforma agrária para por fim ao agrotóxico e um Brasil mais saudável é questionar a ciência. A construção do conhecimento a partir de outras práticas nos trouxe um grande aprendizado, e permitiu a uma ampla rede de pesquisadores mostrar como a questão dos agrotóxicos é estrutural na forma como o capital se coloca no prato dos brasileiros. Esse modelo é incompatível com a produção de alimentos saudáveis, é impossível outra perspectiva enquanto tiver essa forma de organização do campo com o agronegócio. Daí a necessidade da agroecologia e outra forma massiva de organização no campo”, observou.
A ciência questionada
Os organizadores do lançamento do livro tentaram realizar a atividade na Academia Brasileira de Ciências, mas não foram acolhidos pela instituição, relatou Paulo Petersen, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Daí a necessidade de questionar as instituições científicas e seus métodos, pois ao não receber um estudo com outras formas de construção do conhecimento mostra de qual lado elas estão, complementou o autor do prefácio da obra. “Nossas ciências agronômicas estão sempre procurando problemas e tecnologias para solucioná-los, por isso é preciso reorientar o foco da ciência, sobretudo aquela que está procurando uma nova relação com a natureza e distribuição de riquezas. Entender o não uso da monocultura, a diversidade de produção, não ver a terra como um meio físico de extração de riqueza no curto prato. O verdadeiro combate ao agrotóxico só se faz com a reforma agrária. É preciso reformar os sistemas agroalimentares, rever desde a produção até o consumo. Precisamos lutar pela execução do PRONARA (Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos), aprová-lo por uma razão de saúde coletiva é essencial”, sugeriu.
Recentemente o INCA (Instituto Nacional do Câncer) lançou um documento expondo os malefícios dos agrotóxicos. Para resgatar a participação desse órgão na luta pela reforma sanitária, Luis Antonio Santini, diretor-geral, lembrou os princípios que norteiam as mudanças necessárias: a saúde do trabalhador, a política de saúde e a questão ambiental. Ele deu como exemplo bem sucedido a campanha contra o tabaco, que conseguiu reduzir o consumo na população e abaixou a mortalidade de câncer de pulmão na sociedade. “Muitas vezes não há essa percepção clara pela sociedade dos fatores de risco ambiental e da alimentação, aspectos do cotidiano, que têm importância na gênese e possibilidade de evitar o câncer. Por isso o Inca tem interesse e compromisso de participar, buscando bases técnicas e científicas para sustentar essa discussão. Esse exemplo do tabaco é muito importante de articulação da sociedade e serve como experiência exitosa que pode ser usada nessa luta”, destacou.
Apoio jurídico
O Ministério Público do Trabalho tem sido um grande aliado nesse processo. Graças à sua ação trabalhista a multinacional Delmonte Fresh Produc foi condenada pela morte do agricultor Vanderlei Matos, na Chapada do Apodi, no Ceará, por intoxicação com agrotóxicos. Esse é um dos casos raros no Brasil que, com o apoio da universidade federal, conseguiu provar o nexo causal da morte com os venenos. Daí a necessidade do direito de informação conforme prevê a nossa constituição, explicou Pedro Serafim, Procurador Regional do Trabalho (MPT-PE) e Coordenador do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Esse dossiê, segundo ele, vem atender um direito fundamental e informa a sociedade sobre nossa triste realidade de forma corajosa e contundente.
“O dossiê alcança isso ao abrir a situação caótica na problemática dos agrotóxicos. Seu conteúdo e forma como é articulado favorece mais uma vez o direito à proteção da saúde, do trabalhador, do consumidor e meio ambiente. O desconhecimento do judiciário e do MP é imenso sobre o tema, tanto que a legislação trabalhista além de ser muito cartesiana continua não admitindo a responsabilidade objetiva: o uso do agrotóxico não é seguro. Não precisa provar a culpa do empregador, só o risco ao utilizar já é crime”, defende Serafim.
Alimentação Saudável
O conceito de alimentação adequada deve ser massificado, defendeu Maria Emília Pacheco, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Para ela, esse é um momento histórico muito importante que provoca um compromisso profundo de cidadãos, organizações e coletivos em defesa da vida. Esse conceito chama atenção para garantia do acesso permanente ao alimento, respeito às diferenças culturais, os prazeres dos saberes e sabores dos alimentos, que devem ser livres de contaminantes e transgênicos, complementou. “Uma definição fundamental, fruto de uma mobilização social cunhado numa conferência com mais de mil pessoas. Está em disputa na sociedade qual alimento comemos. Esse dossiê é também precioso porque deve dialogar com o Novo Guia da Alimentação Brasileira, que não contém em seu final esse livre de contaminantes e transgênicos. Deve dialogar ainda com outra publicação do Ministério da Saúde, a de alimentos regionais, que não teremos mais sem travarmos uma luta por uma mudança no sistema agroalimentar. Precisamos nos mobilizar em defesa do PRONARA, e que o ministro dê um basta às decisões da CTNBio”, reivindicou.
Essa coalização nacional construída em defesa do consumidor foi elogiada por Teresa Liporace, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). Sua organização tem um programa de Alimentação segura, saudável e sustentável para conscientizar o cidadão, e desenvolve um mapa das feiras orgânicas onde qualquer pessoa pode localizar grupos de agroecologia, feiras de alimentos orgânicos e informar onde estão surgindo novas iniciativas nesse sentido. “É importante reforçar e fortalecer essa gama de associações e pesquisadores que estão defendendo seus interesses frente a empresas tão poderosas. Daí a importância desse dossiê, porque uma das nossas bandeiras é a questão da necessidade de transparência nos processos decisórios para um consumo ético. Existe uma grande assimetria de informação, temos que dar uma alternativa ao consumidor, que muitas vezes não sabe aonde consegue o alimento não contaminado”, afirmou.
A escola contaminada
No dia 03 de maio de 2012 a Escola Municipal São José do Pontal, próxima a Rio Verde, no Goiás, viveu momentos de terror. Um avião fazendo a pulverização aérea da região, que é tomada pela produção transgênica, despejou agrotóxicos na hora do recreio em cima dos alunos e trabalhadores do colégio. O atentado, segundo o diretor Hugo Alves dos Santos, atingiu 29 crianças e 8 funcionários. Sua maratona de sofrimento persiste até hoje, pois as crianças ainda apresentam sintomas embora não recebam mais remédios e dois funcionários morreram, além de quatro professores que já passaram por cirurgia: um com câncer na boca e outra precisou retirar o útero. Ele relata que já perdeu cerca de 8 companheiros na escola por conta do câncer, e que em sua região tem mais de 300 casos da doença sem contar os registros do hospital de Goiânia. Esse é um dos casos apontados no novo dossiê da Abrasco.
Hugo relata que logo após a aplicação dos agrotóxicos começou a passar mal, e só acordou no caminho do hospital 57km depois. As crianças passaram mal no pátio da escola, e os bombeiros foram chamados. Todos foram atendidos e liberados, mas continuaram a passar mal. Como achavam que tinha caído um avião em cima da escola, a cidade estava toda mobilizada e a imprensa logo chegou. Mas o diretor, desde então, passou a receber ameaças do filho do dono da empresa e produtores da região. Mudou 8 vezes de residência em um ano, hoje mora num condomínio fechado e chegou a andar com escolta durante 3 meses. O prefeito é amigo particular do senador Ronaldo Caiado (DEM), um dos expoentes do agronegócio no país, disse.
“Recebi ameaça pelo filho do dono no meu celular, falando que ia me dar um café e resolver isso e os meninos estavam bem. O secretário de educação me ligou cobrando o ano letivo, e os produtores começaram a ameaçar por causa do movimento de ambulâncias. As crianças começaram a ficar internadas, mães ligando dizendo que seus filhos iam morrer. Me ligaram dizendo para eu calar a boca, e o secretário de educação me proibiu de falar com a imprensa. Esse pessoal do agronegócio tem muito dinheiro e poder, mandam matar. Depois que tudo passou é o esquecimento com as crianças. Hoje elas não têm direito nem ao dipirona que tomavam antes, e o secretário não me atende há 8 meses. Vejo todo dia as crianças passando mal, reclamando de dor na barriga e cabeça. Mas valorizo muito o trabalho dos pesquisadores, porque todo dia e hora alguém é envenenado no Brasil”, desabafou.
Ao final do evento foram apresentados três depoimentos em vídeo, dentre eles um do João Pedro Stédile, da direção do MST, que criticou o domínio do monopólio dos meios de comunicação. “Os meios de comunicação escondem da população os verdadeiros problemas e suas causas que a sociedade enfrenta no dia a dia, seja nas periferias ou nos programas de saúde pública em relação aos alimentos que vão para mesa dos brasileiros todos os dias. O agronegócio que só pensa no lucro para meia dúzia de fazendeiros e empresas não tem limites, e está usando todos os tipos de venenos, inclusive proibidos em outros países”, criticou.