Em números, a farra fiscal do agronegócio

Em 2019, o Brasil arrecadou um centavo a cada R$ 323 exportados pelo setor. Cifra representa 0,000003%. Agrotóxicos entram no país sem impostos. Reforma Tributária precisa enquadrar os grandes proprietários rurais

Do site do Outras Palavras

Todas as vendas de produtos do agronegócio para fora do Brasil em 2019 renderam aos cofres públicos apenas R$ 16,3 mil em imposto de exportação. A cifra representa 0,000003% do valor total das vendas, ou seja, o Estado brasileiro arrecadou um centavo em imposto de exportação a cada R$ 323 mil faturados. A alíquota oficial é 30% – a mesma aplicada na Argentina, por exemplo –, mas a legislação permite que o governo altere o percentual tributado para estimular setores específicos da economia.

Esse e outros dados reveladores sobre o modelo agroexportador foram reunidos no artigo Agrotóxicos, capital financeiro e isenções tributárias, escrito por Marcelo Carneiro Novaes e Thomaz Ferreira Jensen. O texto é um dos 38 que compõem o livro Direitos Humanos no Brasil 2020, lançado nesta segunda-feira (7) pelo Movimento Humanos Direitos e pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 

Novaes é advogado, membro da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e do Fórum Paulista de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos. Jensen é economista, assessor sindical e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). 

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e sua família são defensores ferrenhos das isenções fiscais e dos subsídios estatais ao agronegócio. Em novembro, quando o governo de São Paulo retirou a isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre alguns insumos agrícolas para 2021, as redes sociais bolsonaristas, incluindo dois dos filhos do presidente, se referiram ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), como “inimigo do agronegócio” e “inimigo da nação.”

Adubos e fertilizantes, milho em grão, farelo de soja, sementes, produtos veterinários, agrotóxicos e rações são alguns dos itens que hoje são isentos e sobre os quais passará a incidir taxa de 4,14% no estado. O artigo de Novaes e Jensen não menciona essa medida específica, mas deixa claro que mudanças pontuais não alteram a lógica de “agro-dependência”.

Indústria do veneno

“Não há crise de governança em matéria de agrotóxicos. Trata-se da consecução de uma política estrategicamente pensada e aplicada, direcionada para o fomento do agronegócio, um dos eixos fundamentais do modelo de reprodução do capitalismo rentista e especializado na exportação de bens primários, com baixíssimo valor agregado”, diz o texto, acrescentando que cerca de 80% do agrotóxico consumido no país destina-se para apenas quatro culturas: soja, cana de açúcar, milho e algodão.

Os autores ressaltam que o mercado de fabricação de agrotóxicos é oligopolizado por empresas estrangeiras e movimenta, em média, US$ 10 bilhões – mais de R$ 55 bilhões – anualmente no Brasil. 

As indústrias do setor desoneram-se integralmente do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Programa de Integração Social e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (PIS/COFINS). Além disso, são beneficiadas por desoneração parcial de ICMS.

“Chega-se, assim, a […] um subsídio tributário direto de uma quantia próxima a US$ 3 bilhões por ano, correspondente a 30% das vendas do setor, o que está em consonância com a carga tributária vigente no país, que beira os 35%”, concluem os autores.

Os agrotóxicos são considerados insumos para atividade agrícola, assim como os fertilizantes, sementes, aviões e maquinário. Por isso, o gasto com a sua aquisição é abatido integralmente nos tributos sobre a renda, o que os autores chamam de “subsídio indireto.”

Financeirização

Cerca de 90% dos agrotóxicos são vendidos diretamente a grandes e médios produtores rurais.

“Troca-se o ‘pacote tecnológico’, composto por sementes e agrotóxicos, por parte da produção futura”, descreve o texto, em uma operação complexa que classificam como escambo.

“O produtor rural emite um título de crédito que é repassado às indústrias e aos outros agentes da cadeia de financiamento, tais como bancos, securitizadoras, serviços de estocagem e comercialização externa (tradings), gerando novos títulos de crédito em cada fase da operação, que é finalizada, no mais das vezes, com um contrato de hedge para ‘trancar o preço futuro’.”

“Trata-se de uma operação estruturada e complexa que envolve, numa perspectiva contida, a emissão de cinco títulos creditícios (existem mais de vinte à disposição dos operadores), calculados com o valor-base da venda. São US$ 9 bilhões comercializados mediante ‘escambo’, com a operação lastreada em cinco títulos, no mínimo. Isso representa US$ 45 bilhões que alimentam o sistema financeiro e a circulação da riqueza-capital”, completam os autores.

Os títulos de crédito do agronegócio, em sua grande maioria, são isentos de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), cuja alíquota é de 0,38%, além de Imposto de Renda incidente sobre o lucro da operação. O montante poderia chegar a US$ 1 bilhão ao ano.

Agro-dependência

O artigo reúne ainda dados que mostram a baixa participação do agronegócio nas receitas públicas.

Em 2019, a União arrecadou, excetuadas as contribuições previdenciárias, R$ 1,04 trilhão de reais, sendo que o setor da Agricultura, Pecuária e Serviços Relacionados contribuiu com apenas 0,27% dessas receitas. 

Em São Paulo, a participação da agricultura e pecuária na receita do ICMS não passa de 0,1% do total. O texto mostra ainda que o estado concede ao setor agroexportador subsídios que representam mais que toda a economia estimada com a reforma da Previdência do Servidor Público paulista e com a venda de empresas e fundações públicas em dez anos.

Na conclusão do artigo, os autores defendem que a financeirização do capital investido no agronegócio e as “absurdas benesses tributárias” concedidas pelo Estado brasileiro evidenciam a necessidade de se atacar o problema da agro-dependência em sua totalidade, tendo em vista um projeto de Nação com soberania popular e alimentar.

Marcelo Carneiro Novaes e Thomaz Ferreira Jensen ressaltam, entre outras medidas, a urgência de revogação da Lei Kandir, que veda a tributação de ICMS incidente sobre as operações de exportação de bens primários e semi-processados, e uma “tributação agressiva sobre as atividades rentísticas do mercado financeiro e dos grandes complexos agroindustriais.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *