Coluna de Ayrton Centeno, no Brasil de Fato
Acabaram as vacinas no Rio de Janeiro. Aracaju, Manaus, Salvador, Natal, Florianópolis, Curitiba e Cuiabá tendem a reproduzir o drama carioca. Além das capitais, a vacinação começa a travar no interior. Espanto? Nenhum, ora. É o Brasil de Bolsonaro em ação. Ou inação, como preferirem.
Antes do sumiço, a tragédia sanitária instalara-se por conta de outras carências: falta de informações, distanciamento, equipamentos de proteção, pessoal, leitos, testes, respiradores. Se tudo isso faltou, obviamente faltariam os imunizantes. Em contrapartida, houve oferta graúda de mentira, negligência, soberba e irresponsabilidade.
:: “Houve uma política deliberada”, diz infectologista sobre falta de vacinas no Brasil ::
Agrotóxicos
Talvez tudo seja explicável pela ordem das prioridades. Até porque, se escasseiam as vacinas, sobram os venenos.
Ao fim de 2019, seu primeiro ano de mandato, Bolsonaro já batera o recorde nacional de liberação de agrotóxicos, abrindo a porteira para a aplicação de 474 novos pesticidas, fungicidas e herbicidas.
Parece – e é – muito, mas é menos do que o “Liberou Geral” de 2020, quando autorizou o uso de 493 venenos. Foram quase mil novos produtos que as megacorporações do setor chamam carinhosamente de “defensivos agrícolas”.
:: Entrevista: com liberação recorde, governo fomenta violações com uso de agrotóxicos ::
Grande parte dos registros de 2020 foram de genéricos. Significa que princípios ativos circulando no mercado serão manipulados por mais empresas para produzir mais agrotóxicos.
Uma das substâncias favorecidas, o paraquat, está proibida na Europa desde 2007. É associada à depressão do sistema nervoso central e à indução ao suicídio. Outra é a atrazina, banida da União Europeia em 2004. Ambos são herbicidas usados nas lavouras de soja, milho e cana-de-açúcar.
:: Como a política pró-agrotóxicos de Bolsonaro transfere riquezas para fora do país ::
Atuação da Anvisa
Prescrito como inseticida, acaricida e fungicida, o tolfenpirade irá para as culturas de tomate, trigo, repolho, alface, maçã entre outras. Foi considerado “altamente tóxico” pela própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Também responsável pela liberação de vacinas, a agência, ao lado do Ministério da Agricultura e do Ibama, compõe o trio que opera como um carimbador maluco distribuindo vistos de entrada a rodo no país para os mais variados venenos.
30% dos agrotóxicos admitidos no Brasil estão barrados na Europa. Dos ingredientes ativos autorizados no país, 153 figuram na lista de “altamente perigosos” elaborada pela Pesticide Action Network, a PAN, uma rede de 600 ONGs de 90 países. O Brasil comanda o consumo planetário de venenos agrícolas, cabendo a cada brasileiro 7,3 litros de agrotóxicos/ano.
A farra dos venenos e o golpe contra Dilma
Na realidade, a farra dos venenos está intimamente ligada ao golpe contra Dilma Rousseff, em 2016. Entre 2005 e 2015, a média foi de 140 permissões anuais. Temer mais do que dobrou esta média já no seu primeiro ano. Como prosseguimento dos eventos de 2016, Bolsonaro conduziu o processo ao apogeu.
No ano passado, o herdeiro do golpe incentivava aglomerações, contrariava o uso de máscaras, mandava invadir hospitais, fazia pouco da covid-19 e debochava das pilhas de cadáveres se avolumando.
Negava a necessidade, a eficácia e a urgência da vacina, enquanto desfrutava da ocasião para aprovar dez venenos por semana, valendo-se da pandemia para passar sua boiada tóxica.
A atuação — no caso dos venenos — e a inércia — no caso das vacinas — mostram que o Brasil de Bolsonaro sabe como perseguir seus objetivos.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais “Os Vencedores” (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017).
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho