Por Daniel Giovanaz
Do Brasil de Fato
O Brasil recebeu três embarcações com fosfatos extraídos ilegalmente do Saara Ocidental nos últimos dez meses, totalizando cerca de 110 mil toneladas e consolidando-se entre os quatro maiores importadores mundiais do minério.
A informação foi obtida pelo Brasil de Fato junto a organizações que monitoram o comércio de recursos naturais retirados daquele território sem nenhum tipo de compensação pelo Reino de Marrocos.
O destino dessas cargas são indústrias de fertilizantes agrícolas, segundo a organização Western Sahara Resource Watch (WSRW, em português Observatório dos Recursos do Saara Ocidental).
As informações levantadas por ativistas que acompanharam o trajeto dos navios até a costa brasileira e, em seguida, rastrearam caminhões de transportadoras em solo nacional, conduziram aos endereços de duas empresas em Cubatão (SP), a 30 km do porto de Santos (SP): a Cesari Fertilizantes (Cefértil), que pertence ao Grupo Cesari, e a Copebras, vinculada ao grupo chinês China Molybdenum (CMOC).
O Grupo Cesari afirmou à reportagem que não importa nem utiliza fosfato saaráui nos produtos fabricados pela Cefértil [confira a resposta ao final da reportagem]. A Copebras não respondeu aos questionamentos do Brasil de Fato até o fechamento deste texto.
Localização do Saara Ocidental / Michele Gonçalves
Fertilizantes fosfatados são produtos oriundos da extração, moagem e tratamento de rochas que apresentam concentração significativa de fósforo. A aplicação permite que a planta acesse um volume de nutrientes superior ao que o solo tem capacidade de fornecer, potencializando o rendimento das culturas.
Anualmente, são usadas no planeta em média 53 milhões de toneladas de fertilizantes fosfatados, processados a partir de 270 milhões de toneladas de rochas de fosfato. O Brasil é o quarto maior consumidor mundial de fósforo como fertilizante agrícola.
O Marrocos e o território do Saara Ocidental ocupado ilegalmente abrigam a maior reserva de fósforo do mundo.
Contexto
O Saara Ocidental é a última colônia africana, segundo o Comitê Especial de Descolonização das Nações Unidas. A Espanha, metrópole até 1976, abandonou o território sem descolonizá-lo, estabelecendo um acordo tripartite ilegal com Marrocos (vizinho do Norte) e Mauritânia (vizinho do sul), repartindo a área e garantindo um percentual da exportação dos recursos naturais.
Sem pretensões expansionistas, a Mauritânia recuou em seguida e deixou o território a cargo das forças marroquinas. A promessa de um plebiscito mediado pela Organização das Nações Unidas (ONU), para assegurar a autodeterminação do povo saaráui, nunca foi cumprida.
“O Marrocos ocupa o Saara Ocidental devido a suas grandes riquezas minerais”, afirma Jadiyetu El Mohtar, delegada da Frente Polisário, movimento de libertação saaráui fundado em 1973.
“O Saara é rico em metais diversos, gás natural, ferro, cobre, urânio e telúrio. Também há reservas de petróleo, ainda não exploradas, areia para produção de cimento e para alargamento de praias, além de uma das zonas de pesca mais abundante da África”, enfatiza.
A ocupação do território e a exploração de fosfato saaráui pelo Marrocos violam a Resolução 1514 das Nações Unidas, segundo a qual os povos podem, para seus próprios fins, dispor de suas riquezas e recursos naturais, com base no princípio do proveito mútuo e do direito internacional.
“Será posto fim a toda ação armada e a todas as medidas de repressão dirigidas contra os povos dependentes, para permitir a estes povos exercerem pacífica e livremente seu direito à independência completa, e a integridade de seu território nacional será respeitada”, diz o texto.
Ou seja, nenhum governo está autorizado a extrair e comercializar os recursos alheios de territórios em processo de descolonização. É o caso do Saara Ocidental e outros 16 territórios considerados “não-autônomos” pela ONU.
“Serão tomadas medidas imediatas nos territórios sob tutela, os territórios não-autônomos e todos os outros territórios que ainda não atingiram a independência, pela transferência de todo poder aos povos desses territórios”, completa a resolução das Nações Unidas. “Toda tentativa visando destruir total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com as finalidades e os princípios da Carta das Nações Unidas.”
Diferentes decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, entre 2016 e 2019, reafirmaram que Marrocos e Saara Ocidental são territórios distintos e que a extração e comercialização dos recursos sem consentimento do povo saaráui são ilegais.
Não há nenhum documento, de nenhuma corte ou organização internacional, que permita ao Marrocos explorar os recursos daquela região do planeta, como ocorre até hoje.
A população do Saara Ocidental é estimada em 650 mil pessoas, dividida em quatro grupos. Além dos que vivem no exílio e nos territórios ocupados, cerca de 170 mil saaráuis moram em campos de refugiados em outro país vizinho, a Argélia.
As violências cometidas contra saaráuis nos territórios ocupados estão descritas em relatórios do Comitê de Direitos Humanos da ONU e envolvem, por exemplo, denúncias de tortura e prisões arbitrárias, além de restrições à liberdade de expressão.
Restam cinco
O Marrocos controla quase 70% do total de reservas de fosfato no mundo, o que equivale a cerca de 50 bilhões de toneladas. A maior parte da produção é proveniente da mina de Bou Craa, no Saara Ocidental.
Ao comercializar fosfatos para produção de fertilizantes pelo mundo, o Marrocos não faz distinção entre os recursos que provêm de seus territórios e aqueles retirados das reservas saaráuis.
Cabe aos próprios importadores, com auxílio de organizações e ativistas de direitos humanos, monitorar a origem e o trajeto das cargas.
Na última década, empresas de países desenvolvidos vêm interrompendo essas importações para se desvincular da violência e das ilegalidades ocorridas naquela região.
Muro de 2,7 mil km construído por Marrocos em 1980 divide o Saara Ocidental de norte a sul / Stringer / AFP
Quando o WSRW começou a monitorar o trajeto dos navios, em 2011, havia 12 países compradores. Hoje, são apenas cinco: Índia, Nova Zelândia, Brasil, China e Japão.
“Houve uma mudança significativa no perfil das exportações dos últimos dois anos”, ressalta Erik Hagen, pesquisador do WSRW. Para se ter uma ideia, até 2019, metade do fosfato extraído no Saara Ocidental tinha como destino Estados Unidos ou Canadá.
“A companhia que adquiria 50% dos fosfatos que chegavam na América do Norte era a canadense Nutrien, com fábricas no Canadá e nos EUA”, lembra Hagen.
“Um ano atrás, eles pararam de comprar, a exemplo do que haviam feito a União Europeia e países como Austrália, Colômbia e Venezuela. É nesse contexto que as primeiras remessas chegam ao Brasil”, aponta.
Uma das empresas suspeitas de receber fosfato saaráui no Brasil, a Cefértil é parceira da Mosaic Fertilizantes, vinculada ao conglomerado estadunidense The Mosaic Company.
Em 2015, a matriz informou ter suspendido as compras da matéria-prima roubada do Norte da África justamente após ser questionada das violações de direitos da população saaráui.
O Brasil de Fato escreveu à Mosaic Fertilizantes para esclarecer a natureza do vínculo com a Cefértil e ações implementadas para evitar a compra de fosfatos extraídos ilegalmente.
“A Mosaic Fertilizantes confirma que tem o Grupo Cesari/Cefértil como seu parceiro em atividades industriais e de armazenagem e não como fornecedor de matérias-primas”, diz nota enviada à reportagem. “A empresa reforça que não compactua com a utilização de matérias-primas oriundas de extração ilegal e […] encontra-se em conformidade com todas as normas de saúde e segurança, exigindo a mesma conformidade de todos os seus parceiros de negócios”.
Segundo o texto encaminhado pela assessoria de comunicação, a Mosaic Fertilizantes “não é a responsável pela compra de nenhum dos produtos dos navios provenientes da região da Saara Ocidental e destinados à Cesari no último ano.”
Do Saara ao Brasil
O fluxo de navios carregados de fosfato saaráui com destino ao Brasil aumentou significativamente nos últimos dois anos, segundo a WSRW.
Em 2019, foram registradas duas embarcações, que atracaram nos portos de Salvador (BA) e Antonina (PR). No ano passado, foram três navios, que saíram diretamente de El Aaiún – maior cidade do Saara Ocidental e reivindicada como capital da República Árabe Saarauí Democrática (RASD) – com destino ao porto de Santos (SP).
A viagem do Norte da África ao Brasil costuma durar cerca de duas semanas.
A primeira embarcação identificada em 2020 chamava-se Golden Bonnie. Com capacidade para armazenar 32,2 mil toneladas de rocha fosfática, o navio deixou El Aaiún no dia 31 de março e atracou em Santos em 14 de abril.
Primeira carga de fosfato recebida pelo Brasil em 2020 / Michele Gonçalves
O segundo navio, Lalis D, suportava até 55,6 mil toneladas. Essa embarcação saiu de El Aaiún em 6 de junho e chegou ao Brasil em 20 de junho.
Segunda carga de fosfato recebida pelo Brasil em 2020 / Arte: Michele Gonçalves
A terceira carga chegou em 27 de dezembro. O navio chamava-se Regius, com capacidade para transporte de aproximadamente 33,4 mil toneladas, e havia deixado o Saara Ocidental carregado de fosfato no dia 14 de dezembro.
Terceira carga de fosfato recebida pelo Brasil em 2020 / Michele Gonçalves
Os dados acima foram obtidos pelo Brasil de Fato a partir do cruzamento de informações fornecidas pela WSRW e por Anselmo Fariña, integrante do coletivo Sáhara Acciones.
Para estimar a quantidade de matéria-prima que cada navio carrega, as organizações se baseiam pela medida do calado – distância da lâmina d’água até a quilha do navio –, que varia conforme a carga transportada.
Relações anteriores
Em 2 de junho de 2017, Anselmo Fariña conta que registrou um provável recebimento de fosfato saaráui pelo Brasil. Naquele caso, um navio chamado Neptune saiu de El Aaiún com destino ao porto de Paranaguá (PR), mas antes fez uma parada no porto marroquino de Jorf Lasfar.
A medida do calado informada pelos responsáveis pela embarcação indicava que o carregamento de fosfato teria sido realizado no Marrocos, portanto a extração e a exportação seriam legais.
A passagem anterior do navio por El Aaiún foi o que despertou a desconfiança de Fariña. Segundo ele, são comuns adulterações na declaração da medida do calado para ocultar a origem saaráui dos fosfatos.
“Uma coisa são os fosfatos que o próprio Marrocos possui, em seu próprio território, outra é fosfato roubado do povo saaráui”, diz o ativista.
“Este último permite que o Marrocos determine o preço dessa matéria-prima no mercado internacional, controlando entre 70% e 80% do tráfico mundial de fosfatos”, explica.
A estatal marroquina Office Chérifien des Phosphates (OCP), controlada por Mohammed VI, rei do Marrocos, possui escritórios no Brasil desde 2010.
No Norte da África, a companhia controla quatro centros de extração de fosfato de rocha – três no Marrocos e um no Saara Ocidental. Este último fica próximo à mina de Bou Craa, que possui um depósito de fosfato estimado em 1,7 bilhões de toneladas e fica 115 km a sudeste de El Aaiún.
Em 2008, a OCP criou uma joint-venture junto à multinacional de origem holandesa Bunge, maior exportadora do agronegócio do Brasil, para construção de uma planta de refino de fosfatos em Jorf Lasfar. Cinco anos depois, Fariña ressalta que a OCP comprou 50% da Bunge, tornando-se proprietária única daquela planta.
Países que ainda recebem fosfato do Saara Ocidental / Michele Gonçalves
O que está em jogo
Em 13 de novembro de 2020, o Marrocos rompeu um cessar-fogo de 29 anos e atacou um grupo de saaráuis que protestava em uma região conhecida como “fenda de Guerguerat” – uma das vias por onde são escoados os recursos extraídos do Saara Ocidental. Na mesma semana, o movimento Frente Polisário declarou o recomeço da guerra.
O pesquisador Erik Hagen, da WSRW, chama atenção para a gravidade da extração ilegal, patrocinada por empresas do agronegócio brasileiro.
“Essas empresas estão comprando os fosfatos da entidade errada. A população do Saara Ocidental é dona desses recursos. Sobre esses minerais, o povo saaráui poderia construir um país independente. Então, é profundamente antiético”, explica.
“O Marrocos está violando leis internacionais ocupando outro território, e essas empresas estão facilitando esse processo, que configura uma das piores agressões cometidas por um Estado depois da Segunda Guerra Mundial”, completa Hagen.
Jadiyetu El Mohtar lembra que o direito à luta armada pelos povos sob dominação colonial é garantido pelas Nações Unidas. Em paralelo à guerra, a delegada da Frente Polisário afirma que o movimento continuará contestando judicialmente as ações marroquinas.
“Não podemos permitir, em qualquer parte do mundo, que se violem os direitos dos povos, a legalidade internacional, pisoteando os direitos humanos. Se permitirmos isso em um lugar, ainda que nos pareça distante, estamos assumindo que isso pode acontecer conosco também, em qualquer momento”, alerta a ativista saaráui.
O Marrocos, que hoje controla dois terços do território do Saara Ocidental, não reconhece o recomeço da guerra contra a Frente Polisário e se autodenomina controlador legítimo daquela área.
A Associação de Solidariedade e pela Autodeterminação do Povo Saaráui (Asaaraui) prometeu denunciar a postura das empresas brasileiras.
“Ao legitimar o recebimento de cargas de fosfato do Saara Ocidental roubadas pelo Marrocos, o Brasil está, através do mercado, legitimando ações que reforçam essa ocupação ilegal”, afirma a ex-deputada Maria José Conceição, presidenta da Asaaraui.
“Nós, ativistas, vamos denunciar sistematicamente todas as vezes que tivermos conhecimento dessas situações”, ressalta.
Outro lado
O Grupo Cesari, dono da Cefértil, respondeu ao Brasil de Fato que possui um terminal logístico com 300 mil m² ao lado da fábrica de fertilizantes, em Cubatão, mas “recebe somente cargas nacionalizadas, que já tenham passado pelo crivo dos órgãos anuentes de importação.”
A nota enviada à reportagem afirma que a Cefértil não utiliza o fosfato saaráui em suas formulações. “Além disto, nossos contratos de industrialização e armazenagem contém cláusulas específicas em que o cliente se responsabiliza pela procedência do produto”, diz o texto.
O conglomerado também afirmou que nenhuma de suas empresas atuam como importadoras. “Por fim, o Grupo Cesari não tomou conhecimento da extração ilegal de fosfato na região conhecida como Saara Ocidental, e entende que qualquer ação para coibir o uso do produto deve ser adotada pelos órgãos federais competentes”, completa a nota.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria de Assuntos Econômicos Internacionais da Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia. A reportagem perguntou se a pasta considera problemática a importação de fosfato do Saara Ocidental, ou tem algum posicionamento ou ação acerca do tema. Não houve retorno até o momento.
Edição: Leandro Melito